Agostinho
Batista de Freitas, Circo Piolim no vão do MASP, 1972, acervo MASP, doação
Marta e Paulo Kuczynski, 2016
O prodigioso circo de Paulínia
Ises de Almeida Abrahamsohn
I - O menino
que sonhava com o circo
Agostinho falou pela primeira vez do circo para seu
irmão Júlio, dois anos mais jovem. Descreveu em detalhe os palhaços, a moça que
cavalgava em pé e um carrossel. Enfim, todas as
atrações que circos do interior costumam
ter. Mas, insistiu o menino, o
circo só era visível à noite quando a pacata cidadezinha de Paulínia adormecia.
Paulínia na década de 1940 era rural.
Havia pouca diversão e as crianças desde cedo ajudavam nas tarefas do campo ou
das chácaras.
Júlio, apesar de ter apenas oito anos olhou-o
desconfiado. Sabia que um circo havia
visitado a cidade há cerca de um ano porque as marcas da grande tenda ainda
eram visíveis no terreno baldio atrás da chácara do Seu Kazuo. Entretanto, que ele soubesse, nem ele nem Agostinho
tinham assistido ao espetáculo. Tanto era o entusiasmo das descrições, que
Júlio resolveu acompanhar o irmão nas excursões noturnas. Pelas ruas desertas
chegaram ao extremo da cidade. Munido de um lampião, Agostinho descrevia o
espetáculo que via acontecer no centro da arena de terra batida. Mas Júlio nada
via além do facho de luz que se movia frenético na noite. O irmão não se
conformava que ele não enxergasse as mesmas cenas. Júlio bem quem tentou, mas nada
via além de pedras, terra e algum mato rasteiro; logo desistiu de acompanhar o
irmão.
Na escola a professora notara mudanças no comportamento
de Agostinho. Estava sempre sonolento e passava as aulas a desenhar, sempre
cenas de circo. Perguntado, nada dizia
aos adultos. Apenas alguns colegas ouviam as histórias do circo que o menino
dizia existir no terreno baldio. Desconfiados, mas curiosos, reuniam-se à noite
e, em grupo, iam verificar o circo de Agostinho. Os colegas riam e zombavam, mas este, em seu
delírio, julgava que estivessem aplaudindo as atrações que descrevia.
̶ Olha lá, o
leão vai saltar e atravessar o anel de fogo! Beleza, lá vai ele.... Pulou, é
incrível! Aí vêm os trapezistas, a moça é linda, senhores! Palmas para ela! O
rapaz vai tentar segurar a garota no salto! Balançou e segurou! Desta vez,
conseguiu! Senhores, foi por um triz...
Com o tempo, os meninos da classe foram se empolgando
com as saídas noturnas. Traziam lampiões que faziam bailados luminosos no
picadeiro enquanto Agostinho descrevia
as atrações que se sucediam no
espetáculo imaginário. A cada apresentação, novas e inéditas atrações eram
narradas pelo menino.
Agostinho cada vez mais se alheava na escola. Só desenhava e parou de fazer as lições. A professora da
escola rural conseguiu que ele contasse as visitas noturnas ao circo. Os pais
foram aconselhados a consultar um médico em Campinas. Este, bastante
experiente, considerou que o menino
tinha uma fértil imaginação que exprimia pelas visões noturnas . Ao saber que ele desenhava, sugeriu que alguém incentivasse esse talento. Isso foi
feito na escolinha mesmo, com a dedicada professora que lhe arrumou uma caixa de lápis de cor, papel e algumas
aquarelas baratas.
Mas Agostinho logo percebeu que os colegas
passaram também a se interessar pelos desenhos. Pediam emprestados os lápis de
cor e perguntavam se podiam ajudá-lo a colorir os desenhos das cenas de seu
fictício e maravilhoso circo.
Título : Circo Artista : Agostinho Batista de Freitas (1927-1997) Ano :
1973.
Técnica : Óleo sobre Tela Dim. : 50 x 70 cm
II - De como o
circo chegou à Paulínia
Num período de dois meses o imaginário de Agostinho havia
se espalhado por todos os meninos da classe. Quando a professora ouviu a descrição do circo
noturno ouviu também do menino o
argumento de que os outros da classe
também compartilhavam suas visões.
Cada um foi interrogado individualmente. Alguns realmente
acreditavam ter visto as cenas narradas pelo colega enquanto outros diziam que
iam às reuniões pelo espírito de aventura, mas nunca viram nada de especial na alegada área do
circo. Divertiam-se bastante e todos
confirmaram que tinham visto os desenhos de Agostinho e gostariam também de poder desenhar e pintar.
Os pais foram chamados e a professora explicou as ocorrências e como os
meninos sentiam falta de alguma diversão na pequena cidade e na escolinha de
poucos recursos. Ao relatar o conselho
do médico ao Agostinho, contou que a
criançada também queria ter a
oportunidade de trabalhar com desenhos e cores .
Ela sugeria que algumas salas e o corredor pudessem ser
pintados pelos alunos em cores alegres e não naquele cinza desanimado de repartição
pública. Mas precisavam das tintas. Os
olhares se voltaram para o Seu Januário, o comerciante de tintas da localidade
que não teve coragem de recusar. Afinal, uns três galões de base e uns
quartinhos de cores alegres e mais as trinchas não sairiam caro. Além do mais,
o oferecimento simpático poderia lhe angariar novos fregueses.
A meninada ficou assanhadíssima. Fizeram desenhos de cenas de circo em papel
e, com a ajuda da professora, passaram os contornos para as paredes. O corredor foi pintado, e cada uma das quatro
salas de aula teve uma parede decorada. Com
cuidado, Agostinho e os colegas,
visionários ou não, preencheram com cores brilhantes as formas e figuras. Ao final, assinaram seus nomes próximo ao rodapé. O circo tomou conta da
escola.
Agostinho curou-se das visões e se tornou um
respeitado artista plástico, mas nunca perdeu sua atração pelo circo. Cenas de
circo figuram entre suas obras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário