O MURO - Silvia Helena De Ávila Ballarati


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O MURO
Silvia Helena De Ávila Ballarati

"Estranho, esta carta não parece ser para mim. Está na minha caixa de correio, apesar de não ter meu nome. Tenho direito de abri-la, afinal de contas moro só". Pensava enquanto manuseava o envelope.

Pensou em queimar a correspondência, mas a queimaria depois de ler para que ninguém soubesse de sua infração.

Dirigiu-se para o canto da cozinha, para perto do gás.
“Queimariam também seus medos?” 

O aviso “Urgente” em vermelho acelerou sua intenção.  Foi quando percebeu que apesar de estar em 1998,  o carimbo do correio no envelope mostrava 1989. Certo tremor o balançou.

Veio à memória a fatídica partida de sua amada. O mochilão pela Europa seria "a" despedida! Depois voltaria ao Brasil e enfim se casariam.  Era o que João também esperava.  Concordara com a viagem da namorada a contragosto, nunca fora muito seguro de si, era temeroso em relação a tudo.

A viagem não seria uma despedida de solteiro convencional, com bebidas, brincadeiras picantes entre amigas em bares joviais.  Para ela seria o encerramento de uma etapa da vida, por isso o mochilão pelo centro europeu. Ousado demais para um namoro sério.  Ele temia que ela não voltasse, que não o amasse mais, que conhecesse outros rapazes. Como sofria, João! Consumia-se em pensamentos negativos "os espanhóis galanteadores, os alemães que amam as brasileiras". Ainda lhe causa hesitação essa lembrança.

Do envelope sai, enfim, a revelação do mistério. 

Agora a carta explica em detalhes, pois, foi justo na Alemanha, ao pegar um pedacinho do tijolo do muro de Berlim, caído há questão de horas, que a fez mudar de ideia.  O país que se apresentava, o vislumbre de novos tempos, o cair por terra de anos de separação em que os próprios alemães se estranhavam, um momento tão importante para o mundo e ela ali, parte integrante da história.  Tinha que ficar, ainda que custasse outras infindáveis brigas por telefone com o namorado.

Do quarto do albergue onde se hospedara com duas amigas brasileiras, naquela noite decidiu não sair.  Pensamentos, ideias em ebulição, sentimentos humanitários, queria a paz mundial!  As amigas voltaram às ruas, Berlim estava em festa, mas ela resolvera ficar para explicar a João e, na verdade, explicar a si mesma, através da carta, a sua existência, sua nova essência depois da queda do muro de Berlim.

A longa carta afirmava seu amor, o desejo real de se casarem, mas não mais naquele momento.  Algo muito forte se passava dentro dela.  Queria conhecer os tais muros cinzas de Dresden, os antigos carros Lada, as construções uniformes, o atraso que assolara o lado oriental alemão.

E ainda diz que ele receberia a carta através de um amigo, porém não cita o nome dele. Embora fosse pragmática, estivesse certa de sua decisão, e conhecendo bem o namorado, mandaria a carta dentro de outra endereçada ao tal amigo. 

No entanto, parece, que as coisas não aconteceram como programadas.

Têm vidas que parecem ter saído de novela,  nem ela e nem o amigo dela quiseram ser os portadores da notícia. E, foi assim foi que João nunca soube por que a namorada desaparecera de sua vida.

...Onze anos mais tarde, quando o assunto já não surtiria o efeito catastrófico do passado, o amigo deixou a antiga carta na caixa de correio de João.


— "Poxa, se eu soubesse! Por que só agora?  Seria tudo diferente anos atrás!

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