A
VÃ FILOSOFIA
Oswaldo Lopes
É um fato quase constante, você
pergunta a uma pessoa sobre a frase ou mesmo do início da famosa frase da peça Hamlet de Shakespeare
que faz menção a filosofia (que se encontra quase que ao fim do primeiro
ato), e se não for uma pessoa muito
ligada ou próxima a obra do poeta inglês, acabará por ouvir ... Vã filosofia.
“There are more things in heaven and hearth,
Horatio, then are dreamt of in your (Quartos 1 e 2 our no 1º
folio) philosophy “
Recentemente foi publicada
uma tradução do famoso quarto de 1603 que vem a ser a primeira publicação
conhecida da peça. Aos não familiarizados com a criação dos tipos móveis para
impressão, textos impressos passaram a ser comuns e muito desejados pelos
consumidores dos séculos XVI e XVII, tal como os iphones do século XXI.
A engenhosidade humana
foi logo melhorando a impressão, de modo que se imprimiam quatro páginas da
obra de uma vez em um dos lados da folha de papel, que depois era dobrada. Como
as impressões eram feitas nos 2 lados da página (o papel era precioso e caro
mesmo sem os ambientalistas) resultava em uma dobradura de fazer inveja aos
origamis japoneses que necessitava abertura dos cantos dobrados para dar acesso
ao texto. Os de certa idade se lembrarão do uso de espátulas para se abrir
livros.
Os originais de Hamlet
foram publicados em forma de quartos duas vezes (1603, também conhecido como
primeiro quarto Q11603 e 1604, também conhecido como segundo quarto
Q21604) ainda em vida de Shakespeare, e sob a forma de folio (impressão mais cara e
maior em que cada folha da impressão continha quatro páginas do original, duas
de cada lado do papel, sendo que em conjunto três páginas impressas continham
doze páginas do original que eram depois justapostas e costuradas), já após sua morte (Fólio 11623). As três versões
diferem entre si quer no tamanho, quer na escrita sendo no conjunto objeto de
muita discussão. A frase transcrita
acima é semelhante nas três impressões (com a exceção já mencionada do your e
our).
Bem, voltando ao assunto da vã
filosofia. Recentemente na muito necessária e boa tradução do primeiro quarto
para o português Jose Roberto O’Shea culpa sucessivas traduções pelo
aparecimento da vã filosofia:
“A palavra vã, entre nós
estabelecida por meio de sucessivas traduções, na realidade, não consta do
texto original”.
Aqui o ponto é controverso! Nenhum dos
tradutores que são considerados no cânone das traduções para o português usou
jamais a expressão vã filosofia. Se não vejamos:
1- Oliveira Ribeiro Neto (Livraria
Martins Editora, 1954).
“Há mais coisas no céu e na terra,
Horácio, do que as sonhadas pela vossa filosofia”
2-
Carlos Alberto Nunes (Melhoramentos, vol. XIII, 1955).
“Há
muita coisa mais no céu e na terra, Horácio, do que sonha a nossa pobre
filosofia”.
Já
percebo o leitor franzindo o cenho e pensando está aí a vã filosofia. Permito-me discordar, pobre não é inútil,
além de outras considerações que agora não cabem sobre a linguagem do tradutor.
3-
Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça (Objetiva 2004[1968]).
“Há mais coisas, Horácio, em céus e
terras, do que sonhou nossa filosofia”
4-
Péricles Eugênio da Silva Ramos (Abril S.A. Cultural e Industrial, 1976).
“Há no céu e na terra, Horácio, bem mais
coisas do que sonhou jamais nossa filosofia”.
5-
Fernando Carlos de Almeida Cunha Medeiros
e Oscar Mendes Guimarães (Abril Editora,1978).
“Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,
do que pode sonhar tua filosofia”.
6-
Geraldo de Carvalho Silos (Editora JB, 1984).
“Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,
do que as contempladas como possíveis na ciência pela qual vós vos
interessais”.
É
sem dúvida uma tradução sui generis, longa e metafórica, mas não é por
isto que Carvalho Silos entrou para a história dos tradutores. O trabalho
tomou-lhe bastante tempo e ele ousou traduzir, utilizando as palavras próprias
de Shakespeare. A linguagem de Shakespeare em algumas peças insere palavras que
costumamos chamar de vulgares, mas de muito efeito quando representadas. O povo
enchia o teatro para ouvir, inclusive estes trechos, na voz dos grandes atores
que compunham o Globo.
Como
nossos tradutores provinham, todos, de classe social elevada e ilustrada,
fugiam dessas “vulgaridades” como o diabo da cruz. Carvalho Silos tem o mérito
de ser o primeiro a não fazê-lo.
7-
Millôr Fernandes (L & PM Editores S/A. 1988).
“Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,
do que sonha a tua filosofia”.
Poderíamos
acrescentar muitas outras, para provar a ausência da vã filosofia nas mais
diferentes traduções. No francês a tradução de André Gide é seca, sem floreios.
Em Portugal as traduções nem cogitam da vã filosofia, igualmente no russo
(Vigotski).
A questão da inútil filosofia nunca
se colocou para os ingleses porque o contexto e seu entorno não indicam esse
caminho.
1-
A
palavra philosophy no século XVI era o estudo da natureza, das
ciências naturais, o conhecimento obtido por observação e não por revelação, ou
seja, o conhecimento racional.
2-
Horácio
e Hamlet são colegas na famosa Universidade de Wittenberg, de onde Hamlet
retornou por causa da morte de seu pai e para onde não retornará, conforme
prometido a sua mãe, e em face dos acontecimentos vividos. Horácio acaba de
chegar para, como pensa, assistir aos funerais do pai de Hamlet.
3-
No
texto do Fólio a palavra usada é our philosophy, se a filosofia é
também dele (Hamlet), mais se insere que ela não é inútil, mas sim contraponto
a tudo que se vê, o fantasma e suas palavras. Hamlet era e é um scholar, não
vai chamar a filosofia que também é dele de inútil.
Afinal quem foi o criador e,
portanto o primeiro a usar a expressão vã filosofia?
Almeida Garrett é a resposta.
Escritor, poeta e político português, teve marcante atividade nos dois lados do
Atlântico. No entanto não é verdade, como apregoado por muitos, que tenha usado
a expressão na obra póstuma, o romance “Helena”.
Este romance se passa
curiosamente no Brasil, no interior da Bahia, mas não é no texto, póstumo, que
se encontra a expressão vã filosofia. Há nele menções a Shakespeare, mas não a
frase procurada.
Fidelino de Figueiredo na sua História
da Literatura, tomo IV, assim classificou o romance:
“Em 1853, achando-se já
doente de cama, escreveu o fragmento de romance Helena, só publicado em
1872. Obra sem valia considerá-la-emos já documento da decadência prematura,
muito verossímil num espírito, que tanto se dispersara, e reconhecida à própria
natureza dêsse espírito, apesar de por essa data as Folhas Caídas
atestarem plena juventude. Considerado serenamente, esse fragmento é tão pobre
de imaginação, tão longe do senso comum, tão pueril por vezes, tão penetrado de
velhice ávida de almofadas e de calor, que a crítica tem de considerá-la, ou
como obra levianamente composta – o que pode ser um subterfúgio – ou como
elemento para seguir e avaliar a trajectória dum espírito e confirmar a lei que
as faculdades mais tarde adquiridas são as que mais cedo desaparecem. A
coincidência de data com as Folhas
Caídas é só ilusória, porque estas estavam já no prelo em 1851 e tinham
sido compostas em anos anteriores, algumas já em princípios de1846. A
decadência é evidente”.
Ufa! Pelo menos nossa
expressão, tão procurada, não se encontra numa obra decadente e póstuma. Vamos
encontrá-la no famoso e cultuado VIAGENS NA MINHA TERRA (1846). Primeiro no corpo do texto a citação
shakespeareana:
“Logo a nação mais feliz, não
é a mais rica.
Logo o princípio utilitário é
a mamona da injustiça e da reprovação. Logo...
There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy.
A sciencia d’este século é
uma grandessíssima tola.
“E como tal presumpçosa, e
cheia de orgulho dos néscios”
E finalmente na nota F
relacionada ao texto acima
“There are more things, etc...................pag 157
A tradução chegada d’estes
memoráveis versos de Shakespeare é:
Há mais coisas no céu, há
mais na terra,
Do que sonha a tua van
philosophia”.
Pronto ai esta, pela primeira
vez na língua portuguesa, a expressão vã
filosofia. A questão que devemos
responder agora é outra:
Teria Almeida Garrett cacife
suficiente para introduzir na língua
portuguesa falada no Brasil essa expressão? A resposta clara é não. Sua
tradução encontrava-se numa nota em que a palavra vã parece ter sido
introduzida para acertar a métrica, embora ele discuta a inutilidade da ciência.
Quem será, portanto o
padrinho na língua portuguesa, falada no Brasil, dessa expressão. Deveria ser
alguém que conhecesse com profundidade a obra de Garrett e também a de
Shakespeare. Uma só figura reuniu naquele tempo esses requisitos: MACHADO DE
ASSIS.
Machado de Assis nasceu em
1839 e Garret morreu em 1854 quando Machado tinha 15 anos, portanto não se
conheceram em vida nem é crível que Machado tivesse qualquer noticia de Garret
nessa época. Depois sim, Machado conheceu
a obra inteira de Garret e até escreveu um romance com o mesmo nome HELENA
(1870). Autodidata leu no original as obras de Shakespeare e traduziu alguns
pedaços, e citou outros em romances. Não efetuou, porém, nenhuma tradução completa de qualquer das peças.
É sabida sua preferência pelo Hamlet que levou consigo na primeira e única vez que
se ausentou do Rio de Janeiro, indo para Nova Friburgo.
Em 1884 publicou um de seus
melhores contos – “A Cartomante” que se inicia da seguinte maneira:
“Hamlet observa a Horácio que
há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma
explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro d
e1869, quando este ria dela, por ter ido, na véspera, consultar uma cartomante.
A diferença é que o fazia por outras palavras”
A citação é perfeita e a
tradução correta com o que está no original. É, no entanto, a partir do seu
primeiro grande romance MEMÓRIAS
POSTUMAS DE BRAZ CUBAS que Machado dará inicio às citações de Shakespeare
que se tornarão até, diríamos abundantes na sua obra. O uso do vã
se fez, de modo geral de forma burlesca, com tom irônico e crítico. Daí para frente suas crônicas irão registrar o
uso do vã em grande quantidade. Se não vejamos:
“É ocasião de emendar Hamlet:
‘Há entre o palácio de Conde dos Arcos e a rua do ouvidor muitas bocas mais do
que cuida vossa inútil estatística’ “(1893)
“Há duas astronomias, a do
céu e da terra; a primeira tem astros e algarismos, a segunda dispensa os
astros, e fica só com os algarismos. Mas há também entre o céu e a terra,
Horácio, muitas coisas mais do que sonha vossa vã filosofia”. (1894)
“Portanto, não admira que a
dinamite continue encoberta; Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha
a nossa vã filosofia. É velho este pensamento de Hamlet, mas nem por velho
perde.” (1896)
Daí o vã como que se instalou no subconsciente das pessoas.
Assisti a uma representação
de Hamlet dita com o texto de Millôr Fernandes em que o ator na maior cara de
pau introduz o vã, sem cerimônia
nenhuma. Se Millôr Fernandes soube disso deve ter procurado os sais ou uma
pistola.
Recentemente surgiram algumas
traduções, com nomes provavelmente de fantasia, em que uma equipe faz a
tradução copiando e plagiando outras traduções. Agora, temos sim, traduções em
que o vã de fato aparece numa
tradução completa da peça de Shakespeare.
Tomemos por exemplo a
tradução publicada Pela Editora ‘Universo dos livros’ no ano de 2007. A tradução é
atribuída a Adriana de J. Buarque. Não há no livro nota ou orelha que traga algum
dado sobre a tradutora! Na internet não é possível obter nenhuma referência a
respeito da pessoa de Adriana J. Buarque Em pleno século XXI em que quase todos
demos adeus à privacidade, a autora da tradução não deixou rastros. Estranho,
muito estranho... Bem, mais lá esta ao final do quinto ato.
“E,
portanto, como estranho deve ser bem-vindo.
Há
mais coisas entre o céu e a terra Horácio,
Do
que sonha sua vã filosofia.”
E como se o ciclo se fechasse,
agora temos o uso do vã em traduções
completas, publicadas no Brasil. A qualidade é duvidosa? A origem desconhecida?
O destino é o uso em classes de estudantes? O custo é barato? Com esses e
outros objetivos menores quem vai se incomodar ou criticar tal procedimento?
Shakespeare por certo não
merece esse tratamento, mas como afastar esse tsunami? Sim, por certo há mais coisas entre o céu e
terra do que aquelas que imaginamos.
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