O RUIVO
Jeremias Moreira
Acostumado com a vida pacata de
Itápolis, Aldo não gostava do agito da Capital. Mas, assuntos de negócios o
obrigava a ir a São Paulo, uma vez ou outra. Acostumou-se a se hospedar no
Hotel dos Comerciantes, que era no centro, perto de tudo e facilitava seus
deslocamentos pela cidade. Naquele dia atravessava o Viaduto Santa Efigênia em
direção ao Largo São Bento quando ouviu a voz que trazia gravada na memória havia
mais de trinta anos. Olhou e logo percebeu o corpanzil, com cabelos e barba
ruivos, que se destacava do amontoado de gente. Aldo parou e ficou observando o
patrício de longe. Ele gesticulava ao falar, com sua voz de barítono e sotaque acentuado,
desafiando as pessoas a apostarem no jogo dos copinhos. O jogo consistia em cobrir
uma moeda com um dos três copinhos dispostos sobre um tabuleiro. O italiano
manipulava os copinhos, pra lá e pra cá, e quando parava, o apostador deveria
apontar sob qual dos copinhos se encontrava a moeda. Se acertasse, ficava com o
dinheiro. Caso contrário, era da banca. Dificilmente alguém acertava!
Seu pensamento voltou para o
dia 12 de outubro de 1931, quando o navio Régina Giuliana partiu do porto de
Genova. Ele estava a bordo com sua mãe Rosa. Tinha sete anos e há dois não via
o pai, Gianni Antonelli, que viera antes para o Brasil e só agora enviara as
passagens, para que esposa e filho, embarcassem
ao seu encontro. Viajavam de terceira classe, em alojamento coletivo. Havia
dois, o das mulheres e crianças e o dos homens. Em ambos dormia-se em beliches
e as condições eram precárias, em tudo. Mas, nada disso importava. O pensamento
de todos era chegar logo ao Brasil e reencontrar parentes ou trabalho. Os
agenciadores de mão de obras divulgavam o Brasil, na Itália, como a terra da
fartura, da esperança e das oportunidades. Os primeiros dias de viajem foram
péssimos. As pessoas enjoavam e sentia-se o cheiro de vômito por todo o navio.
A comida era da pior qualidade. Levou dias até se acostumarem com os sacolejos
da embarcação e cessarem os enjoos. Havia muita solidariedade entre as mulheres,
que se ajudavam. Para as crianças tudo era festa. Brincavam o tempo todo. No
entanto, entre os homens nem tudo era tranquilo. Havia jogatina, se embebedavam
e as brigas eram comuns. Um passageiro lhe chamou a atenção. Era um tipo alto,
ruivo e estava sempre entre os jogadores de baralho. Aldo costumava assistir as
jogatinas e numa dessas vezes viu o ruivo encrencar com um oponente acusando-o
de trapacear. O homem não estava só. Tinha comparsas. Seria uma briga de quatro
contra um. O ruivo foi cauteloso e recuou. O outro riu irônico.
Naquela noite, Aldo estava
brincando no convés, quando viu os quatro trapaceiros discutirem entre si. O
que parecia o chefe, disse exaltado:
— Branco de idioti! Non voglio sentire
da voi!(1)
Os outros ouviram calados e se afastaram
cabisbaixos. Então, o homem acendeu um cigarro e caminhou solitário em direção
à popa do navio. Aldo se afastou a procura
dos outros meninos, quando viu um vulto andar sorrateiro estre os barcos
salva-vidas. Ele andava meio curvado, certamente evitando ser visto. Por um momento o luar iluminou seu
rosto. Era o ruivo. A atitude dele era suspeita. Aldo quis voltar, mas uma parte sua queria ver o que o ruivo tramava. Ele deslocava-se rápido e silenciosamente.
Aldo estava uns vinte metros atrás e passou a andar o mais depressa possível. Chegou
a um ponto em que viu o homem debruçado sobre a amurada. Logo a frente viu o
ruivo sair da escuridão e o chamar:
— Ehi, paisà!(2)
O homem virou-se como se já
esperasse por ele. Tinha uma faca na mão e avançou decidido pra cima do ruivo. Rápido
como um gato, ele saiu para o lado. De repente, tinha uma faca também. Como um
raio, inclinou-se para frente, enfiou a faca na barriga do homem e puxou-a para
cima, rasgando até o peito. O homem esparramou-se no chão. O ruivo debruçou-se
sobre ele e retirou o que tinha nos bolsos. Sem muito esforço, levantou o corpo
e o apoiou na murada. Em seguida, empurrou-o para o mar. Empertigou-se, conferiu
se não tinha sido visto e saiu dali.
Aldo tratou de voltar para o
alojamento. Com o coração disparado caminhou agachado. Tremia, suava e rezava.
Entrou por um corredor entre os botes salva-vidas e praticamente corria.
Avistou a porta que conduzia ao corredor do alojamento. Sentiu um alívio. Deu
dois passos e uma mão segurou seu pé esquerdo. Ele caiu. Quando se deu conta o
ruivo estava em cima dele, com a faca em sua garganta.
— Silenzio! – disse o ruivo.
-- Dove sei stato? (3)
O coração de Aldo batia como um
tambor e ameaçava sair pela boca. Tremendo, olhos arregalados não conseguiu
dizer nada.
— Se si conta nulla uccidere
tua madre! – concluiu o ruivo. (4)
Em seguida, o soltou e
afastou-se rápido. Aldo demorou a conseguir forças para se levantar. Chegou zonzo
em seu beliche. Não conseguiu dormir a noite toda. Amanheceu febril e não quis
sair do catre. Ficou dois dias no alojamento. À sua mãe, respondia que não
tinha nada, apenas fraqueza. No terceiro dia, bastante ressabiado, saiu do
alojamento. Avistou sua mãe numa roda de mulheres e crianças. Aproximou-se,
pegou na mão da mãe e abriu espaço para espiar o que entretinha a todos.
Congelou. No meio da roda estava o ruivo brincando com a garotada com o jogo
dos copinhos. Quem acertasse ganhava uma bala. O ruivo olhou para ele, piscou e
disse zombeteiro:
— Ehi ragazzo, come stai? Ho
sentito che eri malato. (5)
Nessa mesma tarde o navio
atracou no porto de Santos. Na saída da alfândega, viu sua mãe correr para os
braços de um homem, que ele não reconheceu. Era seu pai. Mais ao longe viu o
ruivo. Ele deu-lhe um aceno de despedida.
Agora, passados trinta e dois
anos, lá estava o ruivo. Mais velho, mais gordo, mas ainda forte. Aldo
atravessou a rua e se aproximou. O ruivo
olhou para ele e, com sotaque carregado, o desafiou a jogar.
— Sinhore, a provare la sorte?
(6)
— Come ha trattato la vita? –
perguntou Aldo como resposta. (7)
O ruivo o olhou surpreso:
— Beh! Perche? Chi vuole
conoscere? (8)
— Io sono il ragazzo che ha
assistito l'omicidio sulla nave Regina Giuliana.(9)
O ruivo olhou demoradamente
para ele e sem se abalar respondeu:
—Si desidera continuare con
il segreto? E stata una fiera lotta. Nessuna delle due che è morto non mancava
al mondo! (10)
— Dopo tutto questo tempo qual
è il punto? (11)
— È vero! – concordou o ruivo.(12)
Depois de um tempo em silêncio
Aldo fez a pergunta que sempre quis saber.
— Hai ucciso mia madre? (13)
O ruivo sorriu e disse:
— Perche? Lei non ha fatto
alcun male! (14)
O terror que sentiu, naqueles
dias, com a ideia de sua mãe ser morta pelo ruivo, fora um terrível pesadelo. Ele
blefou, mas nem precisava. Aldo ficara com tanto medo que não diria nada mesmo.
Sorriu para o ruivo e despediu-se:
-- Devo andare! Ci vediamo
intorno! (15)
Já estava distante quando ouviu
a voz forte vinda do ruivo:
— Hai un bel uomo! Che tu
possa vivere a lungo! (16)
Tradução:
1- Bando de idiotas! Não quero
saber de vocês!
2- Ei, você!
3- Silêncio! Onde estavas?
4- Se contar para alguém, mato sua
mãe!
5- Ei garoto, como está? Ouvi
dizer que estava doente.
6- Senhor, quer tentar a sorte?
7- Como a vida o tem tratado?
8- Bem! Porque? De onde nos
conhecemos?
9- Eu sou o garoto que viu o
assassinato no navio Rainha Giuliana.
10- Ainda pretende guardar o
segredo? Fui uma briga justa. Qualquer dos dois que morresse não faria falta ao
mundo.
11- Depois de tanto tempo, para que
contar?
12- Tem razão!
13- Você mataria minha mãe?
14- Porque? Ela não me fez nenhum
mal!
15- Tenho que ir. Nos vemos algum
dia.
16- Ficou um belo homem! Que tenha
vida longa!
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