Apalpando
o Olimpo
José Vicente J. de Camargo
Meu mundo é de trevas
cercado de tatos, olfatos, paladar e sons. Entre esses, meus próprios
resmungos, que é o que faço muitas vezes desanimado por não poder enxergar e,
portanto de não compreender muitas coisas que gostaria.
Mas hoje estou mais
animado. Vou dar mais uma chance ao destino de mostrar que a falta da visão não
é empecilho para se viver com alegria.
É o dia da visita ao museu
de Belas Artes que farei com o pessoal da Associação de Apoio aos Carentes de
Visão. Já estive com eles em concertos musicais, em exposições de automóveis,
de botânica, de animais, mas ainda nada relativo às artes. Disseram-me que vai ser
muito interessante. Tomara!
Enquanto preparo meu café
da manhã – espero que Estela tenha deixado tudo no lugar combinado – tenho de
ficar atento nas três buzinadas da van da Associação. Não gosto que esperem por
mim. Sinto uma atmosfera de desconforto e ao mesmo tempo de compaixão, o que me
irrita bastante.
Café pronto, mesa posta,
ligar a TV no noticiário. Com certeza o de sempre: escândalos no Congresso,
inaugurações de obras inacabadas, violências por todos os lados, inflação
subindo.
Não dá outra! Pura repetição...
Fom! Fom! Fom!
Chegou! Pegar a mochila já
pronta e fechar a casa. Estela já deve chegar pra faxina do dia.
─ Obrigado! Digo ao
receber na porta da van a programação da visita em braile.
Sentado, ouço a voz da
guia:
─ Nas visitas especiais como esta, o museu
permite que se apalpem as peças previamente escolhidas. Cada visitante terá um
guia ao seu lado dando as orientações de como se comportar sem comprometer as
obras de arte. Dará também as explicações históricas e outras particularidades
sobre o objeto exposto. São pessoas treinadas para essas funções. O importante
é que vocês, através do tato, formem na mente a imagem anatômica da obra em
questão. Procurem captar as diferentes nuances, os mínimos detalhes da
anatomia. Se algo parecer intrigante ou mesmo misterioso, perguntem ao guia que
esclarecerá.
Chegamos ao museu e
formamos, como é de praxe em visitas em grupo a locais públicos, uma fila
indiana dando uma das mãos, tendo a frente o condutor. No hall de entrada sou
apresentado ao meu guia.
Chama-se Celina, de voz
doce e compassada. Ao apertar sua mão sinto a pele macia indicando que não é
acostumada ao batente árduo. Diz ser
estudante do último ano de arquitetura. Nas horas e dias de folga ganha uns bons
trocados como guia do museu. Sua especialidade é a história da arte
greco-romana.
Comunica que a visita se
restringirá a Grécia antiga, dado ao tempo necessário para a explicação e
principalmente para o “apalpamento” da obra de arte. Inclusive para algumas das estátuas a serem
visitadas, dado ao tamanho, foram construídos andaimes especiais para facilitar
a analise.
Inicio tocando, quase
acariciando, os contornos de Zeus. Deus dos deuses e dos homens, morador de
Olimpo, domina o céu e os fenômenos atmosféricos. Barba e cabelos longos e
cacheados. Musculoso, segura numa das mãos um raio preparado para castigar
inimigos ousados. Túnica longa e drapeada.
A sensação de apalpar o
mármore frio e polido, de mais de dois anos, de poder sentir os mínimos
detalhes da anatomia esculpidos na pedra in natura, me dá calafrios de
satisfação.
À medida que minhas mãos
descem explorando os contornos, pareço eu o criador da figura mitológica. Neste
instante sinto uma vantagem em relação aos demais visitantes, já que eles só
podem admirar de longe e não sentir a obra como sendo sua.
Seguem-se outros
habitantes do Monte Olimpo: Diana, Hermes, Electra, Perseu, Europa, todos
acompanhados das devidas explicações sobre seus cultos, descendências, mitos e
reinados – quando então resolvemos fazer uma pausa para o almoço.
Aproveitamos esta oportunidade
para nos conhecermos melhor.
Celina, muito polida, me
pergunta não só sobre a origem da minha cegueira, chances de cura,
possibilidade de transplante, mas também dos meus hobbies, trabalho, planos
para o futuro. Percebo, pelos tons de sua voz, que fica surpresa pelos meus
desempenhos de uma pessoa quase normal.
Por meu lado, também lhe
faço praticamente as mesmas perguntas, acrescida de uma se tem namorado. Ela
responde meio embaraçada, acho que pela maneira direta de perguntar, que no
momento nada sério. O que para mim significa “em aberto”.
Não preciso dizer que as
pessoas desprovidas de qualquer um dos sentidos, desenvolvem sensibilidades
acima do normal quanto aos demais. Assim percebi que Celina está se
interessando por mim.
Voltamos ao roteiro da
visita e reiniciamos com Adônis, Dione quando, já me sentindo morador do Monte
Olimpo e personagem da Ilíada, Celina diz que, dado ao horário avançado,
encerraríamos a visita com a próxima estátua, por sinal muito interessante por
guardar um mistério e completa:
─ Se você acertar o nome,
ganha um premio...
Fico curioso em saber que
mistério seria esse de mais de dois mil anos. Algum feitiço, mau presságio? Ou
algo de dar sorte, do tipo ─ esfregou, ganhou?
Inicio a tocar a obra de
arte pelo rosto, de contornos suaves, linhas simétricas, nariz retilíneo, que
não me deixam dúvidas de se tratar de uma figura feminina. Confirmada pelo
pescoço bem torneado, ombros bem formados, seios rígidos e pontiagudos
indicando a idade da adolescência. Ventre sem dobras, liso, indícios da beleza
clássica grega.
─ Opa, mas que é isso?
Digo surpreso ao tatear a parte abdominal inferior. Não está condizente com figura feminina.
Volto a apalpar a parte superior. Encontro os seios bem formados, mas então por
que ela tem...
Ouço a voz de Celina:
─ É a estatua do deus
grego Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite. Era dotado de grande beleza. Um
dia passeando, entrou num bosque a beira de um lago, morada da ninfa
Salmacis. Maravilhada pela beleza do
jovem o tentou seduzir. Sendo rejeitada, invocou aos deuses para uni-los para
sempre em um só, no que foi atendida. Hermafrodito, já transmudado, amaldiçoou
o bosque e o lago para que todos que lá entrassem e banhassem também seriam
transmudados.
─ Interessante história!
Pena que estragou a beleza da escultura e, por cima, perdi o prêmio.
─ Não fique decepcionado!
Diz Celina. São mitos e lendas da antiguidade. Um mistério maior e o prêmio,
ambos reais, vou lhe mostrar mais tarde em casa se aceitar meu convite para um
“happy hour a deux”...
─ Aceito o convite com
prazer. Assim fecho minha visita com chave de ouro. Mas me diga:
“No caminho não vamos
passar por nenhum bosque ou lago, não?”
─ Sem perigo! -
Responde-me - Seria a última coisa que desejaria.
─ Meu Apolo!
─ Ok, minha Afrodite! ...
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