A GAITA - Flávia Smith


A GAITA
Flávia Smith

Eram quase 5:00hs da manhã, naquela cidade que um dia havia sido elegante e vibrante, mas onde agora a guerra  havia começado: lúgubre e tenebrosa, soterrando sua magnitude.

 O céu cinzento apontava para um dia plúmbeo com chuva fina, e frio cortante, As sirenes estridentes entoavam um canto agudo e penetrante várias vezes ao dia, despertando os habitantes em cujas casas só uma tênue luz de lamparina ou vela delatavam que ali havia vida.

Os esconderijos abrigavam quantas pessoas podiam que se amontoavam para abrir espaço e para aquecerem seus corpos extenuados.

Não raro nas corridas noturnas entre o formigueiro de multidões, famílias separavam-se e por vezes não mais voltavam a se encontrar.

Assim foi que naquela madrugada às 5:00hs da manhã, após incontáveis vezes soou mais uma vez a aterradora sirene. Entre os vários rostos desconhecidos que estavam em busca de proteção um senhor com sulcos profundos na pele flácida, raros cabelos, mas os poucos fios cor de algodão que restavam mostravam por quantas e quantas primaveras já havia passado, puxava pela mão uma criança, presumivelmente sua neta. O esforço que ambos faziam para não separarem-se era perceptível pelas passadas largas e lépidas de gazela, apesar dos pés pouco mais do que de gueixa da menina, e o suor que gotejava do rosto do velho.

Esforço em vão! As mãos pouco antes entrelaçadas iam só tocando a ponta dos dedos num esforço leonino voltavam a se apertar, até que úmidas não mais se encontraram naquela madrugada de chumbo e de medo.  

Passaram-se horas como se fossem dias e dias,  como se fossem meses. O velho e a menina perderam-se naquele penoso começo de manhã. A casa destruída...

A busca do avô pela neta era infatigável, agora esperava a sirene, não mais angustiante, mas como canto de sereia, na esperança de esbarrar com a amada criatura. 

A guerra chegara ao fim, as sirenes calaram-se, as ruas voltaram a florescer, o velho desesperançado e com sentimentos de culpa que o atordoavam procurava afastar a melancolia tocando como fazia antes da guerra a sua doce gaita.

E foi assim que a menina ao ouvir ao longe aquele som tão gostosamente familiar correu loucamente, seguiu cada nota, saltitante, com suas tranças cor de mel balançando até encontrar novamente aquele velho rosto que tanto amava.


O velho incrédulo olhou fixamente aquele rostinho que sorria com o coração. O abraço entre os dois durou tanto quanto aquelas horas que pareciam dias e aqueles dias que pareciam meses...

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