ZEFINHA, UMA HISTÓRIA
FANTÁSTICA
Jeremias
Moreira
Zefinha
nasceu no sufoco. Entre gritos da mãe e zumbidos de bala. Gisleine, a Gigi,
berrava maldizendo a filha que não queria nascer:
—
Sai menina desgraçada! Nasce, sua infeliz!
A
escuridão da noite esvaecia enquanto no horizonte já se espalhava um tímido
clarão magenta anunciando outro dia de muito calor.
Amontoados,
silenciosos, olhares tristes, mas já acostumados, as outras cinco crias
testemunhavam as o parto da mãe. Aconchegados entre si, amenizavam o pavor que
a histeria de Gigi, com seus gritos de dor, e o som matraqueado das
Kalashnikovas lhes causava. Era mais um que chegava. No caso, mais uma. E o
tiroteio, não fosse uma cerrada caçada policial, poderia se entender como
agouro de boas vindas.
O
barraco era igual a tantos outros da Favela do Timbira. Um único cubículo que
servia de cozinha, quarto, sala e banheiro. Construído com tapumes descartados
de construção e velhas embalagens de compensados. Cobertura de zinco, papelão
ou plásticos recuperados do lixão. Fogão improvisado com pilhas de tijolos e um
desgastado colchão, que servia de cama para todos. Na parede, fotos de
artistas, um calendário do ano e um recorte de jornal, com uma foto em preto e
branco, da Gigi desfilando no Sambódromo.
Pudera,
diante de tal cenário, a menina só podia não querer nascer,mesmo! Pra que
nascer se lá dentro era tão quentinho? Ouvir os xingamentos da mãe já não a
abalava. Teve nove meses pra se acostumar. Gigi era assim, gritava com o mundo.
Maldizia o momento que conheceu o Buzú, que punha um filho nela a cada ano.
Falava isso pra ele, que não estava nem aí!
—
Nesse barraco tem home macho e esse é o preço da nossa safadeza!
Respondia
com seu jeito cafajeste e a mão procurando sua bunda. Bunda que já teve seus
momentos de glória, mas que agora se assemelhava a maracujá maduro. Gigi era porta estandarte da Vai-Vai quando
conheceu Buzú. Caiu de quatro assim
quando botou os olhos naquele negrão, alto, forte, sorriso fácil e lábia
afiada. Apaixonar-se por Buzú foi sua perdição. Hoje não restava nada daquela
Gisleine! Tornou-se amarga, ressentida e consumida pelas drogas e bebidas.
No
dia que a menina nasceu, Buzú morreu.
Enquanto
ela lutava pra ficar naquele útero seguro , seu pai brigava pra continuar nesse
mundo, cercado por um comando da Rota, fugindo das balas da meganhada, Buzú era
o marginal mais procurado da cidade. Com a cabeça a prêmio e uma AK 47 na mão,
cuspia bala pra todo lado. Em compensação, recebia o fogo de volta também.
Morreu metralhado. Todo furado de bala, bem na hora que a a criança pulou pra
fora da mãe.
Buzú
morreu xingando, lamentando deixar este mundo. Zefinha nasceu gritando,
lamentando deixar o ninho materno. Era tão pequena que cabia numa caixa de
sapato.
Para
proteger a irmã da sujeira do barraco, Rosalva, de onze anos, amarrou a
caixa acima do colchão, com uma corda
que vinha do teto. Tinha outra vantagem, cada vez que a menina chorava era só
balançar a caixa que Zefinha, tonta, voltava a dormir.
O
que ninguém percebeu é que a criança nasceu cega. Nem ela própria, pois via
tudo cinza, como antes, no útero da mãe. Em compensação seu olfato e audição
eram apuradíssimos. Por isso passou a se aborrecer com a interminável
choradeira da mãe. Gigi não se conformava com a morte de Buzú. Maldizia a falta
de sorte de achar um homem tão danado na cama e tão burro de se deixar pegar
pela policia.
Ela
estava enganada. O pai da menina era a nata da bandidagem. Respeitado, terrível
com os desafetos, mas justo com os companheiros. E, dentro do possível,
afetuoso com os filhos. Só foi pego porque foi dedurado por um “broder” em quem
confiava.
Zefinha
conheceria seu pai de outra forma.
Viver
seus primeiros meses no mundo passou a ser penoso. Esquecida dentro da caixa,
era na base do berreiro que conseguia, algumas vezes, chupar o peito seco da
mãe. Sentir algumas poucas gotinhas do leite descer pela garganta, era muito
bom. Outras vezes, Rosalva passava o dedo sujo de açúcar na sua boca para ela
parar o resmungo.
Mas,
a menina estava sempre atenta a todos os sons e odores que aconteciam no
barraco.
Certa
noite, o bebê dormitava quando sentiu um cheiro de perigo. Acordou assustada. Na viga onde estava presa
sua caixa, surgiu uma ratazana gigante. Maior do que ela. Pelos erriçados, rabo
longo e olhos famintos. A rata avistou Zefinha. Sentiu o azedo de leite
derramado na caixa. Fixou os olhos, que pareciam dois faróis e pôs-se a avaliar
a caça. Não pressentiu resistência. Passos firme, delicados, mas que aos
ouvidos sensíveis da criança cega pareciam pancadas de bate-estaca, a rata
avançou. Alcançou a corda e caminhou rumo à caixa. Os ouvidos da menina sentiam
o tum... tum... tum, cada vez mais perto. O cheiro do medo se aproximava. Como
única defesa, pôs-se a berrar a plenos pulmões. A mãe, que dormia em baixo,
como de costume, apenas esticou a perna e balançou a caixa. A ratona, exímia
equilibrista, deu um tempo e continuou sua descida. Zefinha já não tinha mais fôlego de tanto
gritar.
De
repente, o cheiro cessou. O som do bate-estaca foi substituído por um
dilacerante guinchado. Zefinha teve sua primeira visão: Buzú torcer as mãos e
estrebuchar a ratazana.
O
pai matou a ratona e virou-se para ela, com seu sorriso sedutor:
—
Já passou minha criança. Volte a dormir.
Buzú
morreu para a vida, mas nasceu para filha.
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