A COMPULSÃO = Antonia Marchesin Gonçalves.

  




A COMPULSÃO

Antonia Marchesin Gonçalves.

 

                        Tenho que conseguir o mais rápido possível a procuração da minha mãe e irmã, pois já consegui do meu irmão Ronaldo, falou Branca para seu adversário de jogo. – Não me interessa como você vai fazer, mas te dou 48 horas para você pagar o que me deve, senão vai pagar com a vida ou eu invado a sua casa. Branca estava na fase de ganhar e até quebrar a banca. Mas a sorte mudou e ela estava prestes a perder tudo e perdeu. Poupança, dólares economizados por anos pela mãe já tinham ido.

                        A vizinhança onde moravam ela e a mãe, todos haviam ajudado. Teve os melhores empregos, até ganhando bem, mas sempre saía deles dando mil desculpas, inclusive de assédio dos chefes, mas sempre era por pedido emprestado dinheiro de todos os colegas. A mãe a recolhia cada vez de volta em casa, já viúva, vivia modesta e feliz com a sua única casa, construída pelo marido. Essa filha não tem sorte, dizia. Bonita e vistosa, Branca vestida sempre bem, chamava a atenção, com seu carisma de infortunada, convencia a todos a lhe dar ajuda.

                        Telefonou para a irmã dizendo que iria vender a casa, pois não suportava mais viver nela, disse que o Ronaldo já havia dado a procuração, - preciso da mamãe e sua. Nessa época, a mãe doente morava com a irmã, essa nem desconfiava das dívidas, muito menos a ponto de morrer e por motivo de jogo em cassinos clandestinos. À noite, ela estava com uma senhora do cartório e um senhor de boa aparência, usando a acompanhante da mãe como testemunha. Nesse período, a mãe ainda conseguia assinar, a irmã não teve alternativa, teve que assinar também.

                        Assim, a casa da família se foi. A esperança da mãe era de retornar para sua casinha, ela nunca soube da verdade. Outra verdade era o ódio que ela nutria pela mãe, por ser muito rebelde desde pequena, apanhara muito dela, foi à forma de se vingar, fazia questão de falar abertamente.

A Carta - Adriana Frosoni

 




A Carta

Adriana Frosoni

 

Foi há mais de trinta anos e até hoje não consigo esquecer nenhum detalhe, nem mesmo do ruído do automóvel freando em frente da minha casa; eu estava no alpendre. Os vidros com insulfilme escuro não me permitiam ver quem estava no carro. O ronco do motor que não foi desligado indicava que o assunto seria rápido. Senti a ansiedade me invadir, espremi os olhos ansiosos para o vidro que se abria e um sorriso conhecido surgiu. 

— Oi, Aninha! Não posso descer para matar a saudade, só vim para entregar-lhe um presente.

Era Henri, meu namorado, corri para pegar o pacote na janela do carro. Pelo seu semblante, o sorriso sem graça e a tristeza no olhar, eu soube: havia um problema sem solução. A irmã dele estava na direção e me deu um sorriso amarelo, parecia mais um pedido de desculpas do que um cumprimento. Fiquei onde estava, com os olhos cravados no rapaz e o coração acelerado. Eles partiram antes que o vidro fosse fechado.

Abri o embrulho ali mesmo, de pé na calçada, e a primeira coisa que vi foi um envelope vermelho. Não havia somente isso, mas esse foi o item que mais me intrigou. Tinha também uma barra de chocolate, um pingente em forma de coração e um cartão postal da Alemanha, com apenas três palavras no verso: “Espere por mim!”.

Fechei a caixa, tomei um longo fôlego e caminhei de volta para casa, onde o silêncio do meu quarto poderia me oferecer algum conforto emocional. Criei coragem e abri a carta com cuidado. A caligrafia pequena de Henri saltou-me aos olhos, e suas palavras começaram a tecer a história que ele precisava me contar. As letras se confundiam em minha frente, borradas pelas lágrimas que começavam a surgir. Algumas expressões saltavam aos meus olhos e meu peito apertava. 

“Partirei em breve. Meus pais não me permitiram ficar.” Doeu-me ler aquelas palavras, mesmo compreendendo a situação dele e dos seus pais. Naquele momento minha decepção era tão grande que consumia toda a minha capacidade de compreensão, e o que me restou foi engolir a dor. Embora ele tenha prometido: “Voltarei quando atingir a maioridade.”, as lágrimas escorriam sem controle e silenciosas. Isso aconteceu por meses, assistindo filmes, ouvindo músicas ou simplesmente à toa. 

Um dia elas secaram, e isso foi na data em que Henri fez seus dezoito anos e eu ainda não havia recebido nenhuma correspondência dele. Eu havia escrito várias e nem sequer podia enviá-las, já que não sabia o endereço. Assumi que a promessa dele de voltar era vazia e munida de coragem escondi o pacote de presente com tudo dentro, tirá-la de vista me ajudou muito. Meu sorriso voltou gradualmente.

Hoje voltei a abrir a caixa, havia ficado até então esquecida na casa de meus pais. Não chorei, doeu-me de uma forma diferente. Essa foi apenas a primeira das muitas decepções amorosas que tive. Joguei o pingente no lixo. Rasguei o cartão postal e a carta sem emoção alguma, mas, quando o fiz, percebi que a resistência do envelope vermelho sugeria haver mais do que uma folha de papel ali dentro. Hesitei por um instante, não resisti à curiosidade e puxei a ponta do que parecia um cartão de visita, que, naquele dia, não percebi que estava entre as dobras do papel. Nele havia um endereço em Berlim.

De repente, não senti ódio nem raiva. Continuei a olhar para aquilo e apenas senti pena do fim. Aquele cartão de visitas me fez aceitar que houve um mal-entendido, encerrando um capítulo sem fim. 

 

 

 

 

 

Aquela casa velha da rua Baronesa de Itu - Ledice Pereira

 

Aquela casa velha da rua Baronesa de Itu

Ledice Pereira


Recém-formados em Engenharia Civil no MIT – Massachusetts Institute of Technology, os primos William e Johnny realizavam aquele sonho sonhado desde a adolescência, de conhecer países distantes com culturas diferentes daquela vivida em Boston, onde nasceram e cresceram.

Durante anos, aprofundaram-se na pesquisa sobre o Brasil, país do carnaval, do futebol, das mulheres bonitas e, sobretudo, das grandes oportunidades. Até se inscreveram num curso de língua portuguesa, dado por um professor português, que os iniciou no idioma, para que não tivessem dificuldade de se comunicar.

Tiveram que enfrentar o descontentamento dos pais, que achavam aquilo uma loucura. Não podiam aprovar a ideia de morar naquele fim de mundo, sendo que ali teriam todas as facilidades para iniciar a carreira.

Chegara o grande dia. A despeito de não concordarem, os pais os acompanharam ao aeroporto, contrariados.

Os jovens estavam ansiosos, coração batendo, mãos suadas, tentando, em vão, disfarçar as lágrimas que insistiam em brotar do canto dos olhos. Sabiam que não teriam, lá fora, o porto seguro com o qual sempre puderam contar ali.

O voo foi tranquilo, embora a ansiedade os mantivesse acordados a maior parte do tempo. Era o voo mais longo de todos que já haviam feito.

Tentavam enxergar a paisagem através das nuvens.

O avião pousou na cidade de São Paulo, pontualmente às onze horas da manhã local, e, após todos os trâmites, tomaram um táxi que os levou ao hotel indicado por um amigo dos pais, no bairro dos Jardins.

Passava das três horas da tarde quando finalmente se instalaram. Estavam famintos.  

Os primeiros dias foram de reconhecimento do local. Traziam algumas indicações de restaurantes, shoppings, bares, cafés, recomendados por amigos que já haviam estado na cidade.

Depois de uns dias, já, mais ambientados, entraram em contato com algumas imobiliárias, pois o objetivo era encontrar uma casa antiga, que pudessem comprar e reformar. Para isso, tinham economizado bastante e podiam contar com a ajuda dos pais.

Além disso, vinham também com carta de recomendação para poderem trabalhar na construção civil. Tinham informação de que a cidade estava em grande ascensão imobiliária.

Encontraram a tal casa, mais cedo do que imaginavam. Ficava no bairro de Santa Cecília, onde restavam várias casas antigas que o mercado imobiliário ainda não dominara. A rua tinha um movimento de carros constante. Baronesa de Itu – quem seria? Tiveram curiosidade. Disseram-lhes que se tratava de alguma nobre senhora dos tempos em que o ciclo do café estava no auge e os barões instalavam-se em alguns bairros, dando às ruas seus nomes ou sobrenomes.

Tratava-se de um sobrado com porta de ferro que encontrava a calçada, escadas para chegar a uma pequena sala, dois pequenos quartos, cujas janelas davam para a calçada, e tinha ao fundo, de um lado, a cozinha, de outro o banheiro.

Estranharam que tivessem que subir escadas para a casa. Só depois repararam em duas pequenas janelas abaixo das janelas dos quartos, indicando haver ali algum cômodo.

Com certeza, seria um velho porão inutilizado.

Fecharam negócio depois de muito pechincharem e, como o imóvel estava à venda já há dois longos anos, o proprietário aceitou a condição que lhe ofereciam, ainda mais que a entrada seria em dólar.

Como pretendiam iniciar logo a reforma, continuaram morando num hotelzinho próximo dali para facilitar o acompanhamento da obra.

Resolveram iniciar pelo que achavam que seria um porão desativado.

— Tem que ter uma maneira de chegarmos lá – pensou William.

Ao examinar o chão minuciosamente, encontrou um pequeno rebaixamento em uma das tábuas. Era quase imperceptível. Ao tocar o lugar, ouviu um tec, significando que havia aberto alguma coisa. Puxou a tábua, que cedeu prontamente, levantando uma tampa, espécie de porta, desvendando uma escada que levava ao andar debaixo.

— Bingo – gritou, chamando Johnny, que veio correndo e ficou olhado pasmo para o que podia se apreciar dali de cima:

Um escritório montado com mesas, cadeiras, estantes cheias de arquivos, livros e um computador antigo. Estava tudo empoeirado e, com apenas aquelas duas janelinhas entreabertas, não conseguiram ficar por mais de dez minutos no lugar. Ambos subiram com acesso de tosse, quase sem poder respirar. Estavam diante de um problema.

No dia seguinte, munidos de uma máscara de proteção, desceram ao lugar para descobrir alguma porta escondida por onde alguém poderia ter tido acesso ao local. Descobriram atrás da estante, um portão de ferro já bastante enferrujado que teria sido fechado por fora com uma parede de tijolos. Olhando por fora, ninguém imaginava existir um portão ali.

O ex-proprietário foi chamado para esclarecer e contou que havia adquirido a casa há quase três anos, de um alemão que precisava voltar imediatamente para a Europa e, portanto, havia feito uma proposta irrecusável. Achando que seria um bom negócio, ele, em seguida, colocou o imóvel à venda, desconhecendo a existência de qualquer porão.

Os primos foram aconselhados a chamar a Polícia Federal. O local foi vistoriado, os arquivos e o antigo computador foram levados para análise.

O ex-proprietário foi obrigado a devolver aos jovens o sinal. O negócio foi desfeito.

Aquele sonho de reformar uma velha casa numa terra distante deu lugar ao desejo de voltar pros braços dos pais e arrumar um emprego em Boston, onde eram mais do que conhecidos. Ali, resolveram reformar velhas casas e revender, negócio que deu super certo.

Através do ex-proprietário do imóvel de Santa Cecília, ficaram sabendo que aquele esconderijo havia pertencido a uma gangue especializada em roubos de bancos, cujo mentor havia sido preso e levado para uma prisão de segurança máxima. Com base nos elementos encontrados, a Polícia Federal, que há anos estava à procura do bando, pôde chegar ao esconderijo, no norte do país, onde eles arquitetavam grandes novos roubos, chefiados pelo antigo mentor que, de dentro da cadeia, continuava a chefiar o grupo.



CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CARTAS - LEDICE PEREIRA

 




CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CARTAS

LEDICE PEREIRA

 

Nos dias de hoje, em que as redes sociais tomaram conta de toda uma sociedade, quem se interessaria por enviar cartas a alguém?

Tenho saudade do tempo em que nos comunicávamos por meio de cartas.

Era quase um ritual, escrever, envelopar, selar e colocar no correio.

Durante muitos anos, troquei cartas com três grandes amigas que se mudaram de São Paulo. E, após me casar, trocava cartas também com meu pai, que foi morar em Santos.

Como não tínhamos telefone, era a forma que havia para nos mantermos a par do que nos acontecia. Eu colocava no papel toda minha rotina com os filhos e ele assim conseguia acompanhar os nossos movimentos. Tenho guardadas, até hoje, as cartas que trocamos. Com elas pude traçar um cronograma dos acontecimentos que passávamos e sentir o carinho que acompanhava aquela troca. Aguardava ansiosa as palavras carinhosas que ele me enviava. “Minha querida Ledice...”

Eu procurava responder com o mesmo carinho, “Papai querido, saudades...”

Para uma de minhas amigas, que já partiu para outra dimensão, cheguei a mandar uma carta numa espécie de paródia da música do Chico Buarque de Holanda, “Meu caro amigo”.

Eu andava numa ‘roda-viva’ (olha o Chico aí outra vez) e não tinha tempo de parar e escrever. Ela, solteira, ficava me cobrando. Resolvi mandar aquela carta, contando tudo que acontecia comigo, marido e crianças em forma de versos.

Sei que tenho cópia daquela carta, mas não encontrei. Começava assim:

“Minha cara amiga, me perdoa, por favor,

há muito tempo não te escrevo...”

 

E assim, continuava contando as peripécias da semana com as crianças. Ela adorou e a carta ficou na história.

Saudade de escrever longas cartas e trocar com pessoas queridas.

Hoje, procuro trocar mensagens com duas delas e com todos os meus grupos de amizade. Apenas, essas mensagens não perpetuarão como aquelas cartas de papel.

 

ÚLTIMA CARTA. - Yara Mourão

 



ÚLTIMA CARTA.

Yara Mourão.

 

Jade, envolta em seu xale enegrecido, começava a fazer parte da paisagem. Sempre sentada sobre as pedras em frente ao posto do correio, do outro lado da rua, onde havia, ainda, algumas casas de pé.

Ali ela passava muitas horas, como uma sombra imóvel, na desesperança que a saudade traz. Lentamente, a espera a consumia.

 O garoto do correio ia chegar com os pacotes em algum momento. Às vezes era o menino magrinho, outras vezes o homem de uniforme. Levantavam poeira e cinzas do chão com suas bicicletas com os pacotes da correspondência.

Jade havia enviado muitas cartas a Jonathan; para lugares e endereços tão estranhos, tão desconhecidos. Nem sabia se ele as recebia. Ela relatava fatos cotidianos, dava notícia dos filhos, da casa ainda de pé. Enviava mensagens de fé, de que um dia aquela guerra acabaria e tudo seria bom como antes.

Meses atrás, viera uma resposta: Ah! Ele estava bem, tinha recebido mantimentos e roupas de frio. A ferida na perna estava cicatrizando, logo estaria na ativa de novo!

Isso foi no início do outono, ainda. Agora, o inverno já instalado, Jade temia pela falta de notícias. Ela mandou dúzias de cartas e nenhuma resposta chegou. Sabia que os grupos se dispersavam, mudavam de cidades até. Talvez não fosse fácil achar um posto que coletasse a correspondência.

Quando anoitecia, Jade voltava para casa a passos lentos, fechada em seu silêncio, espantando, como podia, os pensamentos tristes de seu coração. Se dormisse, sonhava com Jonathan indo para tão longe, numa terra iluminada e florida, cheia de belezas! Acordava banhada em suor, trêmula. Não podia crer em ilusões.

As horas morriam sobre as horas e pela manhã ela se apressava para ir ao posto.

Um dia, o menino chegou cansado. Pousou o pequeno pacote sobre o balcão do posto e saiu lentamente. Acenou para Jade, quase um adeus.

Ela correu para o posto. Ah! Finalmente!

— Será que chegou algo para mim? – Perguntou.

O velho buscou entre os envelopes sujos.

— Sra. Jade?

— Sim, disse ela com voz embargada.

— Aqui está; sem remetente.

Ela nem se importou. Isso era um detalhe dispensável nas circunstâncias. Abriu a carta. Leu de um lance porque eram só quatro linhas.

A primeira falava da saída no jipe.

A segunda falava da coragem de Jonathan.

A terceira falava da bomba no carro.

A última falava que todos morreram.

Jade guardou a carta junto do peito, se enrolou no xale e voltou para casa a passos lentos, pois as crianças precisavam de comer e a vida tinha de continuar, já esquecia até por quê.

 

O Veredicto. - Silvia Villac Vicente de Carvalho.

  




O Veredicto.

Silvia Villac Vicente de Carvalho.

 

 

 

Alice estava consternada com o telefonema que acabara de receber do contador. Afinal de contas, a gerente trabalhava com ela já havia sete anos e, além da relação profissional, a considerava como parte da família e sua melhor amiga. Aliás, mais do que isso, a tinha como uma irmã e sabia tudo de sua vida pessoal!

 

E ali se encontrava ela com aquele envelope que iria definir como seria a vida administrativa de sua clínica daqui para frente. Antes de abri-lo, começou a passar um filme em sua cabeça, desde o início de carreira, atendendo inúmeros convênios, sublocando uma sala em um consultório, até o dia em que conheceu a futura gerente que chegou como paciente, pessoa humilde que logo se tornou sua amiga e, mais tarde, passou a ser sua funcionária. Juntas passaram por tantos “perrengues”, enfrentaram a pandemia, usaram de toda a criatividade para atrair novos pacientes, e, quando a médica começou a ser reconhecida por sua excelência, não se esqueceu da amiga e funcionária de luta e a promoveu, investindo em cursos e lhe oferecendo o que mais de moderno havia em cuidados com a pele e tratamentos de beleza.

 

Mas era preciso encarar a realidade dos fatos. Ela havia solicitado a auditoria e o resultado estava ali, em suas mãos. Serviu-se de um café, sentou-se, respirou fundo e, com as mãos trêmulas, rasgou o envelope para ver o tamanho do rombo. Já fazia mais de três anos que a gerente estava desviando dinheiro e, embora não fosse muito boa com números, com os olhos incrédulos e marejados, conseguiu enxergar vários vermelhos na relação.

 

Um misto de decepção, desânimo, tristeza, mágoa e raiva tomou conta dela e se pôs a chorar, copiosamente. Como é possível ser traída dessa maneira? E veio à mente a “pichação” que estava há mais de uma semana no muro na esquina da clínica: “O mundo está doente. Socorro! ”.



MEU SONHO NO ENVELOPE - Antonia Marchesin Gonçalves

                   


MEU SONHO NO ENVELOPE

Antonia Marchesin Gonçalves

 

             O ônibus está atrasado. Os clientes não me deixavam fechar a lanchonete, tudo está atrasado. Não acredito, justo hoje, que é o dia do correio passar. A minha vida depende dessa última carta, será tudo ou nada. Cheguei em casa quando o carteiro estava saindo, fui direto para a caixa e lá estava ela com o timbre que eu esperava, o da marinha. Minha mão tremia, resolvi esperar, subir e só abrir sentada no sofá.

             Até o elevador está parando de andar em andar, essas crianças que apertam todos os botões deviam seus pais pagar uma multa. Quando se está com pressa, vira um inferno essa demora. Entrei e sentei no sofá com o coração disparado, a mão tremendo, levantei o envelope para luz da lâmpada, nada vi. Li de novo o meu nome, virava de um lado para outro com medo de abrir e ler o conteúdo contendo negativa ao meu pedido.

             Virando o envelope, comecei a lembrar desde quando estou esperando essa carta. Veio na memória o dia em que vi o primeiro desfile das forças armadas, fiquei deslumbrada com a altivez dos soldados, a precisão dos passos acompanhando a banda. De todos, o que mais me surpreendeu foi ver mulheres desfilando e, em especial, as da marinha. Com seus uniformes brancos, divisas azuis e douradas, os quepes brancos com detalhes também azuis e dourados e de saias impecáveis.

             Foi ali que decidi ser uma delas, contei para a minha mãe que me respondeu: precisa estudar muito, fazer vestibular e ser selecionada, a concorrência é grande. Não desanimei, mais uma razão para me motivar a alcançar o meu sonho, que me parecia importante. Aqui estou eu com o envelope na mão, com medo de abrir e não conter a resposta esperada.

             Fui pegar o abridor de envelope, não queria arriscar rasgar a correspondência. Com todo cuidado, ao abrir, tirei a carta dobrada. Meu coração disparou. Contei até três e abri, a vista embaçou e li finalmente a palavra “ACEITA", com compromisso de me apresentar em uma semana.

             Feliz, beijei a carta que trouxe a notícia da realização do meu sonho.

A favorita - Adriana Frosoni

 


A favorita

Adriana Frosoni

 

No tempo em que São Paulo ainda era uma cidade envolta em ruas de terra e casarões coloniais, aqui viviam o Coronel José de Toledo e suas oito irmãs. Ana era a mais jovem, temporã; nem chegou a conhecer a mãe, que não resistiu ao parto. O pai também faleceu poucos anos depois. Como suas irmãs, ela era recatada, estudiosa e passava os finais de semana na chácara da família, um refúgio de tranquilidade às margens do rio Tietê.

Diferente das demais irmãs, que pareciam contentar-se com a vida de solteiras, Ana ansiava por algo mais. O seu coração sonhava com o amor e o casamento, com um lar e filhos, muitos filhos, correndo pelos campos da chácara.

Conhecida por sua beleza e graciosidade, com olhos vivos e sorriso discreto, Ana deixava-se levar pela imaginação, sonhando com um cavalheiro que a resgatasse da monotonia de sua vida cotidiana, assim como nos romances que lia compulsivamente. Seus gestos eram delicados, seu vocabulário, refinado, mas sua vontade de encontrar o amor verdadeiro, era forte e determinada. 

Um dia, durante um passeio com as irmãs, Ana viu um jovem rapaz, filho de um comerciante local. Seus olhares se cruzaram e algo se acendeu dentro dela. O rapaz correspondeu, foi gentil e cavalheiro, e logo os dois trocavam olhares intensos e demorados, não passando desapercebido pelas irmãs. 

O tempo passou e o contato entre eles se tornou mais frequente. Parecia que o jovem adivinhava por onde Ana passaria ou em que loja entraria, e lá estava ele para oferecer ajuda ao subir na carruagem, ou ao apanhar o lenço de cambraia de linho que ela insistia em derrubar quando passava por ele.

Ana estava apaixonada, e o jovem também parecia nutrir sentimentos por ela. Até que finalmente o rapaz dirigiu-se ao irmão da moça, o Coronel José de Toledo, e pediu permissão para cortejá-la.

O coração dela transbordava de felicidade, sabia que finalmente encontrara o amor que tanto desejava. O Coronel a preferia solteira, como as outras; caso contrário, almejava pessoa de família mais renomada e de posição mais elevada na sociedade. Portanto, negou o pedido, tentando fazer o rapaz desaparecer ao negar também o dote que a moça teria, por direito. Estratagema já usado anteriormente, com sucesso, contra os pretendentes das outras irmãs. 

Mas, desta vez, era tarde demais; o rapaz não desistiu, nem tampouco Ana. Ele estava disposto a abdicar do dote; e ela, da posição na sociedade. Mesmo correndo todos os riscos, começaram a se encontrar às escondidas. Tinham longas conversas e faziam passeios a cavalo pela chácara. 

Rosa, a irmã mais velha, até mais que o coronel, tratava a todos com instinto materno. Para a caçula, ela tinha um olhar de proteção ainda maior. Foi por isso que percebeu que não seria possível impedir o jovem casal de seguir com o namoro e temia que comentários maldosos manchassem a honra de Ana. Foi quando tomou coragem e cobrou pessoalmente que o Coronel desse a permissão e o dote para a menina se casar.

Quando questionada duramente pelo irmão sobre qual o interesse dela nesse assunto, a matrona, ao invés de baixar a cabeça como de costume, jogou sobre ele toda a desilusão que ela mesma sentia por estar sozinha numa idade avançada, sentindo-se incapaz de despertar o interesse de alguém. Lembrou-o de que a honra da irmã lhe custaria bem mais do que um dote, seria um vexame sem tamanho ter o nome da família jogado na lama. Além de que faria muito bem a todos se crianças começassem a fazer parte da família e animar a chácara aos finais de semana.

Rosa era a única pessoa que tinha autoridade para colocar aquele ranzinza em seu devido lugar, pois já havia até trocado as fraldas dele. O golpe final foi quando ela sugeriu que ele mesmo deveria arrumar uma esposa para si e sossegar, pois os inúmeros casos que tinha pela redondeza eram conhecidos por toda a família.

Envergonhado, pois achava que tinha sido absolutamente discreto até então, prometeu pensar para encerrar logo aquela audiência desconfortável. Além de se considerar um excelente e zeloso irmão, ele pensava ser suficientemente discreto com seus desavergonhamentos. Com receio do que poderia acontecer se Ana resolvesse fugir com o filho do comerciante, o Coronel resolveu ceder antes que essa história manchasse a honra de todas as mulheres de sua casa. E assim o fez.

O casamento foi celebrado na chácara e as sete irmãs estavam felizes por verem Ana realizando seu sonho. A caçula, que era a alegria da família, a mais querida e protegida de todas, tornou-se a primeira e única das oito irmãs a se casar e ter filhos.

 

 

O PROBLEMA NÃO SOU EU... - Ledice Pereira

 




O PROBLEMA NÃO SOU EU...

Ledice Pereira

 

– Pra mim chega! – Gritou Rodolfo, o mais alto que pôde – Quem ele pensa que é, pra me tratar assim? Só porque é o dono da empresa acha que pode tripudiar em cima de mim.

 Amanhã, sem falta vou resolver isso de uma vez por todas.

O ódio estava acabando com Rodolfo. Duas e meia da manhã e não conseguia dormir. Andava pela casa, de um lado para o outro, sentindo pulsar a veia do pescoço.

Resolveu fazer um chá. Sentiu falta da mãe que lhe preparava a bebida quente toda vez que ele tinha essa inquietação.

— Que falta ela me faz – pensou – era a única pessoa que me compreendia. Fiquei só, neste casarão. Meus irmãos nem se lembram que eu existo. Cada um na sua. Ninguém quer saber se estou vivo ou não, se tenho problemas, se minha saúde está boa.

Estou vivendo o pior momento da minha vida! Um chefe deveria ser uma espécie de pai, acolhedor. Esse imbecil não tem a mínima sensibilidade. Quer que eu faça em um dia, o que levo uma semana para realizar. O problema não sou eu, é ele. Amanhã vou despejar tudo em cima daquele velhaco. Se gostar, gostou. Não serei mais capacho de ninguém.

Depois de dormir apenas três horas, Rodolfo levantou-se, tomou um banho, fez um café que bebeu apressado, engoliu os costumeiros comprimidos e dirigiu-se para o trabalho. Tinha muito que fazer. Precisava agradar o chefe. Não podia perder aquele emprego que custara tanto a arranjar...

Intimamente, sentia uma insatisfação que foi se agigantando. Era uma questão de vida ou morte. Virou uma obsessão, precisava fazer alguma coisa. Aquilo passou a martelar em sua cabeça. Não tinha mais paz, não dormia mais, não se alimentava. Tinha uma ideia fixa, uma ideia de vingança que se não realizasse ficaria desmoralizado para sempre entre os colegas, a família, os poucos amigos que lhe restavam.

Então ele se preparou. Comprou a arma. Matriculou-se num clube de tiro. Treinou como um louco.  Aguardaria a chegada do chefe. Não deixaria rastros. Torturaria o homem até que o velho lhe pedisse perdão. Estariam só os dois.  

Pela janela, viu quando o carro entrou no estacionamento do prédio. Ele costumava passar sempre no almoxarifado. Ficou ali de tocaia. Arma apontada para a porta. Quando o homem se aproximou da porta, foi atingido de raspão na perna. Com o choque estatelou-se no chão.

— Você ficou louco! – Gritou.

Rodolfo sentiu-se poderoso.

— Apenas para lembrar que você não é melhor do que ninguém. Quando você morrer vai pra um caixão como qualquer um. Sua fortuna ficará por aí.

Rodolfo continuava a apontar a arma, fazendo com que o homem, apesar da dor, nem se mexesse.

Estava tão concentrado que nem percebeu quando os seguranças, tendo visto o chefe chegar e estranhando a demora dele para subir à sua sala, resolveram checar o que estava ocorrendo no almoxarifado. Desarmaram Rodolfo, imobilizando-o. Acudiram o chefe e acionaram a delegacia próxima dali.

Rodolfo foi levado e detido por tentativa de homicídio. Pouco tempo depois, examinado por um psiquiatra, foi diagnosticado com um distúrbio de personalidade e encaminhado a um Hospital psiquiátrico no interior de São Paulo.

Lá, passou os últimos dias de sua vida, sem que nem mesmo os familiares o visitassem. Em conversa com os outros pacientes costumava afirmar:

— O problema não sou eu.     

 

 

As Pessoas se Mostram quando há Dinheiro envolvido - Silvia Maria Villac V. de Carvalho

 




As Pessoas se Mostram quando há Dinheiro envolvido

Silvia Maria Villac V. de Carvalho

 

— Ela pode ter certeza de que não vou fazer da maneira como ela quer! Sempre quer dar a palavra final e provar por A + B que está certa! A essas alturas da vida ninguém mais me passa a perna!

Renata estava furiosa com a irmã, Lucia, que havia decidido dividir toda a herança deixada pela mãe. Não conseguia compreender o porquê de ter que pagar aquela fortuna para alguém avaliar as propriedades e depois os impostos de transferência de cada um dos imóveis. E daí que elas tinham filhos que depois também teriam filhos? Isso era problema para eles resolverem no futuro e estava ótimo da maneira como estava, com a empresa familiar criada e o dinheiro dos aluguéis entrando mensalmente em sua conta bancária sem qualquer aborrecimento.

Ela era de difícil trato, sempre agressiva nas respostas e tinha muita dificuldade em se socializar. Estudara Serviço Social na PUC, mas se embrenhara pelo lado místico, se aprofundando nos estudos de tarô, mapa astral, cristais, reiki... E se saía bem nessa área, já que tinha um leque grande e diversificado de clientes. Ou seja, conseguia ajudar as pessoas, mas no campo pessoal era um total desastre. E depois que os pais faleceram, a situação piorou ainda mais. Mantinha pouquíssimo contato com a irmã e bloqueara as primas nas redes sociais. Tivera duas filhas em três relacionamentos e estava só. Nas raríssimas ocasiões em que se via “obrigada” a participar de algum evento familiar, conseguia estragar o ambiente fazendo um comentário desagradável completamente descontextualizado, deixando todos ao redor com aquela cara de “o que é isso, minha gente?”. Em resumo, era uma figura intratável, com mania de perseguição e desconfiada de tudo e de todos.

Lucia era uma pessoa ponderada, apesar de não renunciar às suas convicções. Como advogada, sabia que a divisão era o mais correto a fazer porque facilitaria a vida dos filhos no futuro. Como era possível Renata não compreender esse lado prático e enxergar que também seria bom para as próprias filhas dela?

Após muita discussão e argumentos, Renata se viu por vencida e concordou em chamar um profissional para avaliar todas as propriedades e, uma vez feito isso, uma nova rodada de intermináveis reuniões ocorreram para decidirem quem ficava com o que. Nesse ínterim, Lucia, ocasionalmente, lembrava à irmã que ela ainda não havia acertado sua parte do valor pago ao avaliador e, a cada vez, ela era evasiva, dava uma desculpa e dizia que pagaria quando recebesse os aluguéis do próximo mês. Com receio de que Renata pudesse “dar para trás”, Lucia acabou por desistir de cobrá-la e achou que ainda ia sair barato se pudesse resolver tudo a seu contento.

Quando chegaram as custas do cartório e as taxas dos impostos, Renata fez um escândalo, esbravejando com a irmã e dizendo que ela havia feito um arranjo com o tabelião e parte do dinheiro iria voltar para seu bolso, que os cálculos dos impostos não podiam estar corretos, que se ela soubesse que ficaria nesse montante jamais teria concordado, que a história mais uma vez estava se repetindo com ela sendo passada para trás, e por aí vai. Não houve acordo e Lucia se viu obrigada a arcar com todas as despesas para colocar um fim à questão de uma vez por todas.

A partir dessa data, as duas irmãs nunca mais se falaram.  Soube-se que Renata comprou uma cabine de 1ª classe em navio italiano para fazer um cruzeiro de 3 meses pela Europa. As más línguas dizem que essa viagem foi paga com o dinheiro que havia separado para as despesas da partilha. 

Será mesmo que ela tinha essa intenção de pagar?

BENTO, O PÉ DESCALÇO. - Antonia Marchesin Gonçalves

 

 




BENTO, O PÉ DESCALÇO.

Antonia Marchesin Gonçalves

 

 

             — Olha, o teu pé, Bento, está sangrando – disse Gregório.

 

— Isso não é nada, é só um arranhão, meu pé tem o couro grosso, respondeu Bento.

Bento é apelido do Benedito, fazendeiro da cidade de Pirajuí. Próspero, com duas fazendas, uma de gado de corte e outra de plantação de cana. É na fazenda de gado que ele tem a sua sede, grande, morando a esposa, filho e seus pais. É lá também que ele nasceu e cresceu, sendo na época um pequeno sítio.

             De aparência simples, com seu chapéu de palha, roupas surradas, cursou até a oitava série. A maior briga com seus pais, desde pequeno, era que calçasse os sapatos. Algumas vezes usava chinelos de dedo. Sempre descalço e esse hábito não mudou, nem a esposa o convencia. Só em casamentos e enterros, com muito sacrifício, usava calçados. Por isso o seu apelido, “Pé descalço”. A rodovia Marechal Rondon era o dia-a-dia dele, nas suas idas e vindas entre as duas fazendas. Na cidade, todos o respeitavam e admiravam, sabiam que podiam contar com ele em qualquer necessidade.

             Certo dia, após o café da manhã, estava ele na rodovia com sua camionete e avistou à frente um carro parado na pista e um segundo mais adiante, tombado de cabeça para baixo, todo danificado. Não teve dúvida, estacionou no acostamento e encontrou o idoso Gregório, seu amigo, desesperado, tentando quebrar o vidro do carro. Ao chegar perto, percebeu o motivo do desespero. No carro capotado havia um bebê de uns 2 anos, preso à cadeirinha no banco traseiro.  A criança chorava muito. Sua mãe estava desacordada no banco do motorista.

             Com os vidros já trincados, ele não teve dúvida, com o pé cascudo, chutou duas vezes o vidro, quebrando o suficiente para enfiar a mão e destravar o carro. Abriu a porta e tentou tirar o bebe, mas o cinto de segurança não destravava. Os segundos seguintes foram cruciais, então ele entrou no veículo mesmo tendo avistado gasolina escorrendo no chão.

             Com a faca que sempre trazia à cintura, conseguiu cortar o cinto e retirar o bebê e o entregou para Gregório, dizendo:

— Se afasta com ele, vou tentar desprender a mãe. Novamente, com a faca, cortou o cinto da mãe e com os pés conseguiu empurrar o banco e abrir a porta, agarrando a moça pelos braços, arrastou-a o mais longe do carro.

             Nisso, Gregório já havia acalmado a criança e chamado o socorro, chegando a tempo de ver o carro explodir. Todos socorridos e salvos. Bento só percebeu que tinha cortado um dos pés quando o médico da ambulância quis fazer curativo. Graças ao seu cascão de andar descalço, não foi nada profundo. A sua fama de herói correu pela cidade e vizinhança.