TRANE.
Mario Augusto Machado Pinto
A paisagem não é tão deslumbrante,
não tem aquele verde forte, escuro, agressivo. A terra recebe meus passos com
alegria e me incentiva a andar. Não há poeira. O calorzinho faz a folhagem
transpirar perfume. O Sol lhe dá luz suficiente. É área civilizada com mais de
um milhar de anos de vivência, de saber. Isso comanda a diferença. Eu diria que
apresenta o que você vai ver no futuro. Faço uso dela para alcançar o máximo do
gozo visual, fechar arquivo e escaninhos dando descanso aos miolos.
Por que estou aqui? O doutoramento em
Direito Internacional Público me exige dedicação total. Sabe quando você sente
que está no limite de suas forças? Há uns tempos eu estava prestes a cruzá-lo, cansado,
até me esquecia da existência da Clara. Dizia a mim mesmo: Preciso mudar de
ambiente, paisagens, pessoas, comidas, vinhos, não quero ouvir falar em ler tal
livro, preparar um paper, ir àquela conferência,
acompanhar e anotar fatos ligados à cimeira sobre a Arábia Saudita e o Iêmen.
Ufa! Estava pra lá de Bagdad!
Na ocasião pensando em um local para
descanso, não me lembro de qual colega ouvi falar em turismo fluvial. Deve ser
interessante, pensei.
Após a ceia, dispensei Manuela,
servi-me de conhaque e busquei no guia turístico, onde passar. Encontrei o que
queria e parti para experimentar.
Estando mais ao sul, busquei mais ao
norte e, norte por norte, tem que ser pelas serras. Encontrei longe daqui, pelos
lados da Serra da Estrela e do Açor, o Rio Alva com margens apresentando diferença
total na paisagem. Deve ser bom, muito bom, e foi. Aprendi como pilotar
pequenos barcos, cozinhar minha comida, beber pouco, dormir sem receber os
chutes de alguém, a ter cochambranças em terra firme nas praias ribeirinhas de
São Gião, Côja, Secarias e outras. Vivi a vida como ela se apresentava na zona
de lazer das Fronhas, na barragem do mesmo nome. Aprendi a navegar com pequenos
barcos e gostei tanto que desde então tenho feito turismo fluvial ao fim de
cada semestre.
Neste semestre escolhi navegar pelos
rios franceses. Aluguei uma “pénichette”
para dois e navego pela Provence,
região que vai da Côte d´Azur até os
Alpes. Apresenta o máximo de paisagens e luz, e em Arles inspiraram novas técnicas a Van
Gogh e Paul Cézanne. Admiro muito a ambos. Também é a região do domaine Chateauneuf du Pape, vinho que ocupa lugar muito
especial na minha despensa gustativa.
Navego há alguns dias tendo à minha
frente o “Péniche Napoleon”, grande,
para umas doze pessoas. Fico assim porque não tendo experiência com eclusas
aproveito as manobras do barco maior. Eles falam com o éclusier. É experiência toda nova: a agua quando entra lembra o
barulho de uma pequena cachoeira. Também aproveito as paradas nas guingrettes e compro o que preciso para
fazer minha comida, me abastecer de água, etc. É um pessoal alegre, ouvindo o
tempo todo músicas dos anos 40 a 60 tocadas pelas grandes orquestras de Glenn
Miller, Tommy Dorsey, Benny Goodman; algumas que desconheço me parecem de jazz.
Cantores, pra eles, são o Frank Sinatra, o Bing Crosby, o Samy Davies Jr. e a
Lena Horne. No fim da tarde sempre tomam drinks e dançam no pequeno convés.
Após a ceia sempre há um solo de sax com músicas lamentosas, cadenciadas
algumas, mais alegres outras, dando a impressão de improviso.
Está calor agora à noite. Aproveito
para ficar no meu pequeníssimo deck e
consigo ver quem toca o sax: é uma jovem, talvez filha do casal. Contorcendo seu
corpo ao compasso da música propicia espetáculo que excita minha imaginação. Aplaudi
quando terminou de tocar e ela veio até o lado do barco, sorriu e agradeceu.
Fiz o gesto de convidar a passar ao meu barco, gesticulou agradecendo e... nigthy, nada mais.
Com o passar dos dias conheci melhor
essa família de um casal e duas filhas. Fomos apresentados uns aos outros,
biografias, coisa e tal. Beth é a moça do sax. Aceitei seu convite para
percorrer a região entre Carcassonne,
Arles, Avignon, Montpellier. Preferi Arles.
Usamos ônibus e bicicleta na visita à cidade e ao arruinado castelo. Vimos a ponte “Van Gogh”, antiga Langlois, objeto do artista que dela pintou quatro óleos, uma
aquarela e fez quatro desenhos. Gosto muito desse trabalho. Descobrimos que não
somos chegados a esse tipo de passeio.
Debaixo do caramanchão de um barzinho iniciamos namoro de verão. Ela é simplesmente deliciosa. Isso, simplesmente. Voltamos prometendo encontro após a ceia quando tocaria solos da obra prima de John Coltrane, A Love Supreme.
Debaixo do caramanchão de um barzinho iniciamos namoro de verão. Ela é simplesmente deliciosa. Isso, simplesmente. Voltamos prometendo encontro após a ceia quando tocaria solos da obra prima de John Coltrane, A Love Supreme.
Ela veio, tocou sax, “dançou” com a
música, tirou a saída de praia, ficou de micro biquíni. Dançamos e terminamos
no meu beliche. Não nos demos descanso. Ela se dizia a Elizabeth Taylor do
filme Gata em teto de zinco quente.
Que era, era. Prova? Os arranhões nas minhas costas.
Ao se vestir para voltar ao seu
barco notou a falta do cordão de um dos lados que prendia as partes da calcinha
do biquíni. Mea culpa, apressado que
fui. Após várias tentativas lembrei-me que sempre carrego alfinetes de segurança.
Isso resolveu esse problema, havia outro: a grossa trança de seus cabelos se desmanchou
quando deitamos. Transformado em cabeleireiro, fiz uma trança que mais parecia
um amarrado. Disse-me que estava tudo bem. Beijos, abração e nighty.
Acordei tarde. O Napoleon havia partido. Só fui
encontrá-lo fundeado depois da segunda eclusa. Amarrei o barco no poste ao seu
lado. Os bordos se tocavam com o balanço causado pelo rio. A música corria
solta. Eu aguardava ansioso o som do sax. Beth apareceu e me ofereceu um
guisado de cordeiro. Buscando seus olhos semicerrados, olhou-me e vi uma
lágrima escorrer pelo seu rosto. Recusou quando quis abraça-la e voltou ao seu
barco.
Quando a noite já nos envolvia com
seu silencio, Beth em pé na proa começou a tocar. Parou durante uns minutos e recomeçou
tocando When the night has come e Stand by
me, de Ben E. King. Improvisando muito, seu som dava a nítida impressão de
choro lamentoso. Depois, silêncio. Nessa noite acordei com a impressão de alguém
no barco. Chamei: Beth! Sem resposta e sonolento, voltei a dormir.
No dia seguinte pela manhã vi um
envelope com meu nome na mesinha de comer.
Corri para fora da cabine.
Napoleon já havia partido. Entendi: era da Beth, claro! Não abri no
momento. Demorei para ler o que dizia o bilhete: Baby I been thinking of you all the time.
Desta vez a lágrima foi minha.
Reiniciei viagem de volta dois dias depois.
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