Alegria, Alegria
José
Vicente J. de Camargo
A
praça fervia sob sol a pino. Os passantes apressados só tinham vista para um
lugar vago nas sombras das árvores e debaixo dos toldos das lojas ao redor. Na
mente, a visão de uma água bem gelada, um suco natural refrescante ou um dos
famosos sorvetes da Sorveteria Italiana. Nesse cenário abafado e pingando suor,
um grito solo rasga o ar vibrando os tímpanos de quem lá está:
“Atenção, Atenção, Senhores e Senhoras! A
alegria chegou em São Simão! Não deixem de participar hoje às 20 horas da
grande première do Circo Andrade montado no campinho da várzea. Famoso em todo
o Brasil e nos países vizinhos. Espetacular show com seu elenco deslumbrante de
palhaços, bailarinas, acrobatas, mágicos acompanhados de leões, tigres,
elefantes, cães amestrados sob a batuta de reconhecidos adestradores e dos
acordes da banda do maestro Mazuca exclusiva do Circo Andrade. Não percam essa oportunidade única. Levem seus
filhos, netos, e passem uma noite inesquecível. Daqui a instantes iniciará o
desfile desse magistral elenco pelas ruas de São Simão, saudando e convidando o
distinto público para a performance dessa e das demais noites...”
Aquela
voz alta e rouca atraia a atenção de todos que se refaziam do calor abrasador
nas sombras disponíveis:
- Quem será? Cochichavam entre si uns e se
entreolhavam indagadores outros.
- Será que tomou muito sol e está divagando?
Alguns
desses semblantes curiosos passaram a mostrar um sorriso zombeteiro, outros um
semblante preocupado pressentindo – apesar da boa aparência do indivíduo - sinais de uma demência precoce ou de um
transtorno psíquico.
No
entanto ninguém ousou aproximar-se do gritador, perguntar se sentia-se bem, se
precisava de alguma coisa, um copo de água talvez.
E
ele, já chamado por uns de louco, desmiolado, invadia o trânsito gesticulando,
voltava à praça, levantava os braços e com gritos cada vez mais altos,
reiniciava a ladainha:
-
“ Alegria, Alegria o Circo Andrade chegou. Daqui
a pouco majestoso desfile dos figurantes pelas ruas...”
Aos
poucos as pessoas ao entorno começaram a diminuir os passos, a olhar curiosos
para a avenida principal que ao largo da praça, como se estivessem aguardando
algo chegar ...
PARTE 2
O
calor infernal parecia não afetar o pobre coitado que continuava a gritar a
chegada do Circo Andrade cidade:
“Atenção
Senhoras e Senhores, a Alegria chegou a São Simão!” Daqui a pouco majestoso
desfile do elenco internacional de artistas, das feras exóticas de vários
continentes e da banda de música do maestro Mazurca, agradecendo a
hospitalidade do distinto público e convidando-o para a première desta noite as
20:00 hrs nas confortáveis dependências do Circo Andrade, armado no campinho da
várzea. Reserve o seu lugar, camarotes para famílias a preços promocionais. Não
percam esta oportunidade de assistir um grande show circense já consagrado em
várias capitais do país e de países limítrofes”.
O
sujeito já estava ali desde a manhã anunciando a chegada do circo, o desfile
dos figurantes e dos bichos amestrados e o convite para a estreia da noite. De
vez em quando fazia uma pausa, ia até a fonte da praça – representando a Diana
Caçadora - bebia a água que jorrava do chafariz, mergulhava a cabeça no
laguinho formado ao redor da estátua e reiniciava aos gritos e com gestos
espalhafatosos, mas sempre educados, a ladainha do circo. Vez ou outra se
aproximava das pessoas e com um olhar vago e distante fazia o convite do show
da noite como se fosse ele o anfitrião. Nestas ocasiões, alguns dos presentes
davam um passo atrás, evitando um eventual contato, enquanto outros acenavam
positivamente suas intenções de comparecerem e já iam se posicionando junto a
guia da calçada da Avenida Principal por onde deveria passar o desfile dos
artistas e dos felinos, atração nunca dantes vista pela pacata São Simão.
O
anuncio da chegada do circo já era o assunto mais comentado entre as pessoas
que circulavam pela praça e dos frequentadores e funcionários do comercio
local, principalmente da Sorveteria Italiana – muito procurada nesses dias
quentes pelo famoso sorvete de poupa de fruta natural, e da Cafeteria e Confeitaria
do Porto – de tradicional família portuguesa - líder de preferência do cafezinho expresso,
dos doces de ovos – dentre estes o incomparável pastel de Belém - e dos biscoitos amanteigados.
− Mãe! Olha o palhaço na perna de pau. Tá
acenando para nós...
−
Onde meu filho? Não vejo nada...
− Ele apareceu e se escondeu atrás da árvore,
aquela grandona na esquina do jardim...
− Ah! Também vi! E ele carrega um macaquinho
nos ombros. - diz um sujeito ao lado com ar de sitiante pelas botas
enlameadas e o chapéu de palha de abas largas...
− E não é que esse “trem” vem mesmo desfilar? Se
intromete um terceiro na conversa palitando os dentes e de cigarro de palha preso
na orelha. Esforçando um pouquinho da até
pra ouvir a tal da banda tocando...
− E também os rugidos das feras enjauladas.
Isso sim eu não vou perder por nada. - replica um funcionário da
limpeza pública de vassoura e pá na mão...
Esses
murmúrios, cochichos de “será que é”, ou “vem ou não vem” vai se alastrando,
tomando corpo – sob os gritos, agora já
roucos, do sujeito da ladainha “Alegria, Alegria, o circo vem aí” como uma onda
se alastrando de cabeça em cabeça, procurando sinais de concordância ou
discordância entre as pessoas que se entreolham e, em número cada vez maior,
convergem seus olhares para a Avenida Principal, que já tem suas calçadas
praticamente tomadas por impacientes espectadores à espera do espetáculo que a
imaginação já considera imperdível.
Das
janelas e terraços das casas, rostos sorridentes aparecem transmitindo uma
alegria convincente aos ainda duvidosos cidadãos que vêm também crianças e
adolescentes carregando cadeiras e almofadas ajudando idosos a encontrarem um
lugar privilegiado. Ouve casais enamorados marcarem encontro na porta do circo
e moças casadoiras trocarem ideias sobre qual vestido usar na première da
noite...
Assim
a cidade inteira se torna uma bolha de fantasia. A alegria anunciada aos brados
por um pobre coitado, considerado por muitos - que ora esticam a cabeça para
ter uma melhor visão - como
desmiolado, se torna uma realidade contagiante. O próprio “pobre coitado”,
satisfeito, cessou sua ladainha gritante, surpreso e sem muito compreender o
motivo de tal aglomeração.
Ao
longe se se ouvem rojões. O povo se agita e se comprime ao longo da Avenida e
das ruas ao redor da praça. Se ouvem aplausos e gritos de “bis,bis”. Gritinhos
de horror se misturam aos rugidos das feras e ao estalar dos chicotes...
Na
manhã seguinte, o jornal da cidade estampa editorial em primeira página sobre a
aglomeração e a alegria da população com a passagem do Circo Andrade: “maior
que nos dias de folia carnavalesca...”
Interessante
é que não estampa nenhuma foto do “esplendido espetáculo”...
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