A Carta
José
Vicente J. de Camargo
A
manhã chuvosa me segura na cama. A culpa do ócio e das horas se esvaindo em vão
fala
mais alto. Levanto-me e num andar sonolento tomo
o rumo da cozinha a procura do aroma fresco do café – espero que ela não tenha
esquecido meu pedido de usar o coador. Passando pela sala deparo com algo
diferente estendido no chão ao lado da porta da entrada. O cérebro desadormece
e toma alguns segundos para eu reconhecer que é um envelope de carta – e do
estrangeiro! – pelo tipo e cores diferentes. Me abaixo com cuidado, para não
molestar o nervo ciático ainda adormecido. Bato os olhos e deparo com um nome
que não é o meu superposto ao meu endereço. Viro o envelope e vejo um nome
feminino no remetente. Chama-me a atenção o país de origem: “Finlândia!” Minha
mente – já a todo vapor – dispara: que relacionamento deve ter essa tal de Maria
das Dores de Helsinque com José Henrique no meu endereço? Meus vizinhos por aqui, pelo que saiba, não
são... Miro o carimbo com a data da expedição – pode ser carta perdida, de
muitos anos! – Mas, não! Coisa de alguns dias...
A
força da vontade de compensar as horas que a manhã cinzenta me roubou com algo
excitante, comanda meus dedos que começam a roçar o envelope. Não me obedecem!
Quando dou conta, o papel dobrado já balança nos meus dedos.
Os
olhos arregalam, os lábios esboçam um vago sorriso – tipo Monalisa! – quando
percorro as primeiras linhas:
“Meu
pé de moleque!
Querido,
safado, me deixastes louca a procura do amendoim quebradinho do teu beijo. Como
podes me abandonar assim? Fugir sem deixar notícias? Deixando-me a paixão a me
consumir nesse inferno branco? ...”
Desvio
os olhos envergonhado da minha intromissão no âmago da alma daquela infeliz. Meus
dedos, segurando o papel, me impedem de continuar. Dobro a folha com cuidado
procurando os mesmos vincos. Pouso a carta refeita em lugar visível para
devolver ao carteiro.
Satisfeito
pelo dever comprido – recordo fugazmente das linhas fogosas trocadas com aquela
que há muito se escondeu no passado. O cheirinho do café me empurra à cozinha com
vontade de sentir seu sabor quente, só que agora de uma maneira diferente:
Mais
intensamente, ardente...
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