ZICA
TRICA.
Mario Augusto Machado Pinto
Aguardar na fila do caixa de supermercado não é o
melhor lugar para pensar na perda de alguém que passou na sua vida, mas em
compensação se aprende receitas para a ceia de Natal, há fofocas da região e dá
para mirar algumas senhoras e jovens bem dotadas. Aqui há gente sortuda. Já estive
no pedaço, mas acabou com um tchau e ZAPT! Até mais!
Quando li o recado que a secretária da redação
deixou no tablet imaginei o porquê do Pereira me chama: certeza de encrenca com
algum “pezzo grosso”. Por que eu? Simples: tenho livre trânsito no meio, e sou
arquivo confiável. Prova? Meu premio da Associação com matéria do “bas fond” onde
escrevi “tudo e muito mais”, fui fundo, chupei o sangue deles de canudinho e nada
me aconteceu. Só um aviso: “Agora, vê se serve coxinha pra nós!” Pra bom entendedor...
Bem, liguei e Pereira contou que a Zica, conhecida
como Zica Trica, filha do “Bucca” ou “Tio Mazzolla”, estava desparecida desde
que tivera violenta discussão com o pai após ter comentado que ia se casar com
o namorado Luiz, um pilantra caça dotes. Pro Bucca isso era muito perigoso já
que colocava em risco montes de dinheiro e investimentos feitos por ele em nome
dela. Era tudo “barrani”, Como eu tinha andado pelas intimidades poderia ajudar
evitando ele pisar na bola deles – falou. Entendi, e aceitei.
Peguei o táxi do “33”, cara que me conhece mais que
a palma da própria mão. Foi dar o
endereço e abriu a bocarra num bruto sorriso. - É o Bucca, né? - e começou a
falar coisas do passado comum quando foram fechados o bingo “13” e o Brabuleta,
hotel das “primas”, “reino” dele que denunciei acabando com a “contradança”.
Agora, pela 1ª vez, me disse que achou ruim na ocasião, mas tinha ficado quieto
porque o “cafifa” do reinaugurado “Folias do Primo” lhe deu passe livre. Hoje é
sócio. Controla tudo do “ponto de táxi”.
Enquanto ele falava eu imaginava razões para alguém
acabar com a Zica e não encontrava elementos sérios, finais. Minha cuca girava
pra todo lado, até pensei no maluco do pai ser interessado, ciumento e impulsivo
que é, como quando mandou me avisar pra me afastar da filha ou... Desafiei o “ou”
e no final ganhei “umas férias”. Junto aos “V” de vigarista, violento e vingativo
o cara é “big shot”, não iria se melar botando a mão em cumbuca. Na atual
situação é bicho muito perigoso, bota muito perigoso nisso.
Cheguei de mansinho como alguém que não quer nada,
acenando. Parei ao lado do Delegado Pereira de aparente, mas enganosa bondade: é
letal para os fora da lei.
Enquanto nos afastávamos contou-me que encontrara a
minha ex: feições contorcidas, olhos esbugalhados como tendo visto fantasmas;
boca aberta, gritante; roupa revirada, tronco de costas, quadril e pernas voltadas
pra esquerda, sem um sapato, ferimento na testa. Era melhor não ver. Aguardava o
legista para o exame do corpo. Sentia muito. Agradeci e concordei.
- Quem? Perguntei por hábito.
- Ainda não temos ideia, mas você vai ouvir o pessoal
chegado a ela. Vem. Vamos à Delegacia.
Ali estava a criadagem completa, inclusive o Luiz com
seu tique nervoso, tremelicando, encolhido como sentindo frio; sempre arredio; estava
ao lado, junto, mas não no meio da turma.
A conversa das três senhoras ainda preocupadas com
a ceia de Natal desviava minha atenção para o esboço mental da reportagem que escreveria
pra edição de domingo. Tagarelavam sem parar: “Panetone aqui, ovos moles ali.” Afastei-me
um pouco, olhei pro lado, concentrei-me e consegui pegar o fio da meada.
Interrogados abertamente pelo Pereira, as respostas
deram resultado unanime: Zica foi embora porque não aguentava mais o gênio
ranzinza, briguento do pai mandão. De fato, o Bucca falou que a deserdaria se
casasse. Assim, tendo resposta unanime dispensou a turma, mas pediu ao Luiz
para ficar.
Após todos saírem Pereira iniciou interrogatório
cerrado sobre a vida do careta. Até aquele momento o rapaz respondia
calmamente, sem vacilo. De repente alterou o tom, começou a tremer e a gritar
e, apontando pra mim disse - “Você desfrutou enquanto deu e depois, “até mais
ver”. Lembra?”. Fiquei “P da vida” e
agarrei o cara. O Pereira se meteu no meio e nos apartou.-“Estou zonzo. Preciso
comer alguma coisa. Comer, comer,” gritava ele agitando os braços feito pás de
hélice de helicóptero. Me livrei do Pereira, peguei um saquinho de biscoitos
que sempre tenho e ofereci pro Luiz: -“Toma. Come logo”. Mordeu, mastigou com
sofreguidão enquanto chorava a dizer “- Foi sem querer, foi sem querer. Aconteceu...”.
O Pereira agarrou-o pela gola do casaco, sacudiu-o e gritou mais alto ainda:
- Conta tim tim por tim tim. Desembucha, seu
porrinha de uma figa. Fala!
Ele contou num folego só:
- O Bucca ainda estava esbravejando; eu e a Zica
saímos correndo da casa, pegamos o carro dela e demos o fora querendo sumir
daquela situação. Estava dirigindo e a Zica pediu pra ir ao Centro das Artes
passando antes no mercado. Paramos, desceu, comprou e voltou pro carro. Ofereceu:
- Dá uma mordida. Liguei o motor e ia sair dali quando ela pigarreou várias
vezes. Batia com as mãos no peito, mas o engasgo não passava; então desci do
carro e fui correndo abrir a porta do carona, puxei-a pra fora, abracei-a pelas
costas pressionando seu baixo ventre várias vezes. Ela buscou apoio na janela
da porta. Escorreguei e me segurei puxando a echarpe dela. Com o puxão bateu a
testa violentamente na armação da porta e foi escorregando e eu me segurando pra
não cair puxava a echarpe pra cima. Foi quando parou de arfar e se agitar;
pensei que tinha desmaiado. Apesar dos meus esforços não conseguia reanima-la. Estava
morta! Morta! Deixei o corpo ali, subi no carro e fugi enlouquecido. Não tenho
culpa, foi sem querer, foi sem querer.
Enquanto Luiz contava o sucedido, Pereira atendeu alguns
chamados pelo celular e sua fisionomia foi se distendendo voltando quase ao
normal. Terminado o relato do Luiz, falou calmamente:
- O legista confirma: a Zica Trica morreu sufocada por
uma bolota de barra de cereal mastigada entalada na garganta. A pancada na
testa não ocasionou maiores consequências.
A sequência da vida do Luiz o inquérito vai
determinar De minha parte vou escrever a reportagem exclusiva. Por aqui e agora
me contenho pra não achar ruim com as idosas que ainda tagarelam:
- Vou ter um trabalhão, informou uma.
- Nem diga. E você, caladona, o que está cozinhando?
Perguntou a outra.
- Nada. A ceia vai ser na casa da minha nora.
Problema dela.
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