São Paulo de Piratininga
José
Vicente J. de Camargo
Ele
terminara mais cedo o serviço no
escritório. Estava indo pegar o metro para casa, quando algo, como uma voz
chamando, faz girar sua cabeça e vê a igrejinha do Pátio do Colégio no centro
antigo da cidade. Várias pessoas circulando, outras em pé olhando ou batendo
papo, nenhuma feição conhecida. Mas, esse minuto de parada teve para refletir
que estava no local onde a cidade foi fundada há mais de quatrocentos e
cinquenta anos pelos Jesuítas Manoel da Nóbrega e José de Anchieta. E aquela
voz que ouvira há pouco, parecia agora chamá-lo para entrar no edifício
histórico a sua frente, hoje museu.
Sempre
passava por ali, mas nunca com tempo de visitá-lo. Hoje iria satisfazer a vontade.
Ao
caminhar para a porta de entrada, já se sentia na colina que os jesuítas
escolheram, por razões defensivas, para erguer um barracão em taipa de pilão
coberto de sapé como moradia e capela, onde seriam acolhidos os primeiros
índios para a catequese, hoje tão criticada pelos estudiosos como um erro sociocultural.
No
hall de entrada, vários painéis com textos e fotos expõem a evolução da cidade
desde a fundação. Lê-se que não longe dali, na catedral da Sé, está a tumba do
cacique Tibiriçá, dos índios Tamoios, que apoiou e defendeu a missão jesuítica,
dos ataques de tribos inimigas e dos portugueses em busca de mãos escravas.
A
São Paulo de então, denominada assim por ter sido fundada com uma missa no dia
da conversão de São Paulo ao cristianismo, 25 de Janeiro, era cercada por brejos,
ribeirões, várzeas alagadiças e outras colinas.
A
humilde missão jesuítica prosperou, transformou-se num colégio e deu origem a
megalópole de hoje. Relatos de visitantes da segunda metade do século dezenove descrevem
a surpresa com o grande número de igrejas, cujas torres quebram a sinuosa
monotonia do horizonte:
“As ruas são estreitas,
tortuosas, mal calçadas, mal iluminadas, com casas baixas quase todas de um
mesmo tipo monótono e desgracioso. Cinquenta mil habitantes na sua maioria
funcionários, soldados e estudantes a povoam sem animá-la”.
Num
dos pinéis expostos, vê-se uma foto ilustrativa de um casarão de dois pisos,
tendo o de cima uma fileira de janelões cada um abrindo para um pequeno alpendre
ornado por um quadril de ferro fundido. No piso térreo, grandes portas abertas
para a calçada indicam ser ali um comercio. Aproxima-se e lê: “Rua São Bento – 1865. Foto de Militão
Augusto de Azevedo, fotógrafo pioneiro da cidade”. Encostado à soleira de uma das portas está um jovem bem trajado,
de chapéu, casaca e cachimbo na boca, mirando a calçada em frente, onde uma charrete,
atrelada a um belo baio, está à espera de seu condutor.
Novamente
algo o força a ler a etiqueta de identificação: Rua São Bento...
Pensa,
reflete, esforça a memória...
Sim,
esse era o nome da rua! Da história que meu pai contava que seu bisavô, meu
tataravô, imigrante português da região do Douro, tinha um palacete com um
armazém de secos e molhados no piso de baixo. Começou vendendo banha de porco
num carrinho de mão. Prosperou, ficou rico. O que mais me marcava nessa
história é que ele se apaixonou loucamente por uma moçoila de quinze anos com
quem se casou. A chamava de “Dona Alma” tal a afinidade que tinha com ela. Ela
morreu no parto do seu décimo filho. Ele, não aguentando a falta de sua alma gêmea,
entrou em profunda depressão, vindo a falecer logo depois. Meu pai utilizava
esse destino “de amor e morte” para justificar porque não nascera rico. É que o
tutor da família, nomeado pelo seu bisavô no leito de morte, não tinha nenhum timbre
comercial para dar sequência ao próspero comercio do armazém. E o sustento da
numerosa prole até a maioridade, sugou toda a fortuna acumulada...
Ele
volta a mirar a foto de longe, de perto, de vários ângulos, a procura de
detalhes. Foca na imagem do homem na soleira da porta. Será ele? No que estaria
pensando ou aguardando? Talvez que sua alma gêmea terminasse a toalete para
irem passear de charrete pelo então centro histórico formado pelas das ruas Direita,
São Bento, da Imperatriz – hoje 15 de Novembro – passando pela Praça da Sé,
pelo largo São Francisco – esse não creio, dado aos estudantes saindo da
faculdade de Direito ali instalada e que poderiam lançar olhares de admiração à
sua querida consorte. Certamente não passaria também pela Rua Tabatinguera,
onde costumava dar suas escapadas para visitar as polacas quando sua esposa
estava de resguardo. E se o tempo estivesse agradável, não deixaria de mostrar
o solar da Marquesa de Santos – Domitila de Castro e Neves – com a qual D.
Pedro I alimentou por vários anos os cochichos amorosos da corte, e o Hotel
Itália onde o poeta-estudante Castro Alves curtia a boemia em ardentes noites
de amor.
Uma
voz silenciosa, vindo por trás, lhe tira a concentração imaginativa:
−
Senhor! O museu está fechando...
No
metrô, em direção a casa, recapitula o acontecido. Será que aquela força repentina
que sentiu, atraindo-o para o museu, para a foto, era um “chamado” do seu
tataravô? Teria algum significado? Ele não acredita em espiritismo ou nas ditas
“forças da mente”, mas também não tem motivos para não crer, já que muitas
pessoas as estudam com afinco.
Neste
momento se lembra que há três meses terminara o namoro com Miriam. Eles se
amavam, mas havia muitas incompatibilidades entre eles. Eram muito diferentes.
Desde então procura alguém que seja mais compatível, mais compreensível com ele:
“Uma alma gêmea”? Seria esse o conselho
que seu avô tão distante queria lhe dar...?
Mas
não seria muito monótono? Tudo igual, parecendo uma sombra? Para ele, que gosta
de um cantinho só seu, seria irritante. E depois tantos filhos, a depressão
profunda?
Não!
Nos dias de hoje o melhor é escolher uma companheira que esteja no meio termo,
sem riscos...
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