Crime no
Largo de São Bento em 1946
Ises de Almeida Abrahamsohn
A faxineira encontrou a porta aberta e o corpo do Dr.
Abelardo atingido por dois tiros à queima-roupa. O delegado Sá que investigava
o assassinato do médico suspeitou inicialmente de uma paciente, mulher jovem e
atraente que a zeladora do prédio lembrava ter vindo duas vezes ao consultório
no dia anterior. Na agenda descobriu que a mulher era Marilda Lins Pestana,
cujo desparecimento havia sido reportado pelo marido naquele mesmo dia. Amigas revelaram
que a moça era muito infeliz no casamento. Parecia ser um caso bastante simples: mulher
infeliz, maltratada pelo marido desentendeu-se com o amante e o assassinou. O
marido, jovem advogado, de família abastada era, ao que se sabia, brutal e libertino.
O médico embora quarentão era ainda bem apessoado e deixara-se envolver pela infeliz
e bela senhora. Crime passional, sem dúvida! Restava encontrar a criminosa que,
segundo o marido, havia sumido sem deixar ou dar notícia.
Entretanto, nem tudo se encaixava nessa história banal
e o delegado Sá, conhecido por seu detalhismo, não estava convencido. O que
teria feito Marilda, mulher casada há nem dois anos e de boa posição social,
ter em primeiro lugar procurado especificamente aquele consultório e, passados
dois meses, voltar por duas vezes no mesmo dia? Se os dois fossem mesmo amantes
haveria outros lugares mais propícios para encontros que não um público e asséptico
consultório médico.
Situado no Largo de São Bento num segundo andar, a
placa de latão brilhante indicava a especialidade, clínica geral, mas o que atraía
a vasta clientela era o tratamento de doenças venéreas. Naqueles anos
pós-guerra o Dr. Abelardo era dos primeiros em São Paulo a empregar a penicilina,
importada dos Estados Unidos, para o tratamento da sífilis. Bastava uma injeção
para sarar o cancro e eliminava-se a terrível infecção. A maioria dos pacientes
era masculina, mas mulheres também o procuravam. Vinham às escondidas e, entre
elas, também as casadas, desconfiadas que os maridos lhes tivessem transmitido
a terrível doença. Relutavam em se deixar examinar e vinham desacompanhadas, o
que era compreensível.
Uma semana após o crime o delegado atendeu um
telefonema interurbano de Juiz de Fora. Era Marilda que lera a noticia do
assassinato em um jornal paulista. Apontou o marido, Gastão de Moura Pestana,
como o criminoso. A jovem senhora tinha conhecimento das infidelidades do
marido que se revelara notório mulherengo. Já pedira a separação que o marido,
além de ameaçá-la, sistematicamente negava. Um desquite litigioso mancharia sua
reputação o que afetaria a sua clientela. Tinha temperamento violento e, de
família endinheirada e tradicional, firmava-se como advogado de sucesso entre a
elite paulistana. Além disso, os advogados que Marilda procurara a desaconselharam;
naquela época era difícil conseguir separação com base em infidelidade ou
violência. A moça vivia em constante terror de que o marido devasso lhe
transmitisse alguma doença. De fato, ao examinar a paciente o Dr. Abelardo
detectou a lesão primária de sífilis. Curada pela penicilina, Marilda voltou a
procurá-lo após três semanas. Queria um atestado com o diagnóstico. O médico
espantou-se com o pedido. Seus pacientes em geral faziam de tudo para esconder
a doença. Marilda explicou que usaria o atestado para exigir a separação. O
médico relutou, mas cedeu ao ouvir as constantes ameaças e brutalidades sofridas
pela paciente. A moça voltaria mais tarde para pegar o atestado. De posse do
documento, Marilda tomou coragem e naquele mesmo dia entrou com o pedido de
desquite. Depois, rapidamente, arrumou duas malas com o essencial e se mudou
para a casa de uma amiga cujo endereço era desconhecido do marido. Deixou-lhe
um bilhete avisando que entrasse em contato com o seu advogado e que não a
procurasse.
Pressionado pelo delegado, o marido assassino acabou
confessando ter matado o médico num acesso de raiva e acusou a mulher de
calúnia. Por ser advogado e muito bem relacionado acabou pegando pena mínima
que cumpriu em liberdade.
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