Alma Gemea
José
Vicente J. de Camargo
O
fulano estava na metade dos trinta anos. Já passou daquela fase romântica de se
apaixonar a primeira vista, sofrer paixões atormentadoras, noites sem dormir,
dias sem comer, entrar em depressão,
viver agarrado um ao outro em eternos beijos e caricias, e acabar se casando nos
anos dourados da juventude, enquanto devia estar curtindo a vida com outras
experiências e aventuras.
Assim
se passava com nosso fulano. Cada ano ficava mais distante dessa “fase
romântica” da vida. Ele arrumou uma companheira bem mais jovem, fogosa, ávida
de carinhos, e confidências. E quando voltava cansado do trabalho, querendo ler
o jornal sossegado, degustar seu drinque favorito para depois descer para a
academia do prédio, dar uma relaxada nos músculos e finalizar com uma sauna,
vinha ela com abraços e beijos lamentando a saudades do seu olhar, da sua boca,
do seu calor. Dizia ser sua alma gêmea...
Tudo
o que ele gostava de comer e beber, eram para ela seus favoritos também. Gostos
para filme, teatro, literatura, batiam
com os dela. Até seus esportes prediletos – futebol e box – tinham igualmente a
sua preferência.
−
Você torce para a Portuguesa? Tem tão pouco adeptos - pergunta ele.
− Desde criança
sempre fui fã do “vermelho e verde” – responde ela.
− E o box, não
acha violento?
− Nem um pouco.
As novas regras proíbem a violência. Acompanho com interesse os campeonatos regionais
e nacionais...
− Gosta de
vitamina de abacate com limão sem açúcar? - Insiste ele.
− Adoro! Ajuda a
baixar o colesterol...
− E da pimenta
malagueta?
− Para mim, só
essa dá sabor...
Nos fins de
semana, o programa dele era pegar a estrada para surfar numa praia isolada.
Para tanto tinha que percorrer uma trilha montanhosa de mata fechada que ligava
o estacionamento a praia. A noite dormia numa minúscula barraca que cabia na
mochila, já que as mãos estavam ocupadas com a prancha e a vara de pescar. Ela
se maravilhou com tal aventura e privações de conforto que só vinham a
confirmar que ela era realmente sua alma gêmea. Adorava os ruídos misteriosos
da mata cerrada, o bater das fortes ondas no corpo no meio da solidão da praia
perdida.
O fulano já
estava começando a se irritar com essa criatura que não desgrudava do seu pé,
roubando sua intimidade, querendo dividir com ele a metade do seu ego. Começou
a pensar como desatar o nó que ele mesmo dera, sem sofrimento e choro – coisas
que ele mais detestava.
Foi
quando, de volta do escritório, abrindo a porta do apê, ela se joga aos seus
braços, pedindo para levá-la com urgência a um hospital que estava morrendo:
−
Meu coração bate forte, meu rosto pega fogo, minha vista embaralha, minha
cabeça gira, creio que vou ter um AVC ou um enfarte do miocárdio.
−
Você comeu ou tomou algo que possa lhe ter feito mal? Indaga ele.
−
Só as três capsulas do suplemento vitamínico que você toma todas as manhãs. Como
levanto mais tarde, eu as tomo após o almoço, reponde ela.
−
Mas o frasco que deixo na mesa do café terminou essa manhã. Tomei as últimas
três capsulas. Diz ele
−
Tomei do frasco que está no armarinho do banheiro, completa ela.
−
Desse frasco não! diz ele. Nesse frasco, pra disfarçar, coloquei meu
estimulante sexual, pra nenhum xereta ficar sabendo e comentar por aí que
preciso dessa ajudazinha...E é dos mais fortes. Geralmente só tomo a metade da
cápsula...Vamos para o hospital. Você precisa de uma lavagem estomacal.
No
hospital, após sua alma gêmea ter recebido os cuidados necessários e estar
repousando, o fulano respira aliviado já sabendo o que dizer para quebrar o fio
umbilical que prende ela à ele:
“É
melhor nos separarmos por aqui. Antes que você tenha realmente um AVC ou um
ataque de coração. Imagine se você tomasse do meu garrafão de vinho que guardo
na dispensa que na verdade é veneno que preparo com “chumbinho de rato” para
levar aos poucos pro acampamento dos fins de semana para esborrifar ao redor da
barraca e assim eliminar ataques de bichos peçonhentos cobra, aranha, escorpião
que lá tem aos montes... Tornar-me-ia da noite pro dia um assassino de boa fé
ou o monstro das redes sociais que matou sua alma gêmea, a criatura que mais o
idolatrava...
Não
dá! O bom senso indica que devemos parar por aqui”
E
pensa:
“A
vida tem mesmo seus caprichos. A penúltima que arranjei, nos amávamos, mas havia algumas
incompatibilidades. Rompemos porque éramos muito diferentes...”
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