ASSASSINATO NO
BONDE
Oswaldo
U. Lopes
Hoje
Hiroito viera até mais cedo para casa. Estava meio aborrecido com algumas
piadas que embora demonstrassem afeto eram meio provocativas:
-
Esta trabalhando de tornozeleira que nem o da federal?
-
Condenado, mas pegando no batente assim é a vida!
-
O teu amigo da federal voltou e agora você fica como? Japa da estadual.
Hiroito
até conhecera Newton Hideroni Ishii, o famoso “japonês da federal” e tinha por
ele muita simpatia, mas as piadinhas da tornozeleira eram de lascar.
Estava
sossegado em casa vendo televisão quando tocou o telefone celular que só o
pessoal do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção a Pessoa Humana) sabia o
número. Não deu outra, era o Dr. Fabricio, delegado chefe com sua voz habitual,
ranzinza e sempre disposta a encaminhar o interlocutor às favas.
-
Hiroito, você amanhã vai para Santos, ajudar o pessoal de lá no caso do
assassinato no bonde.
-
Que história esquisita é essa Dr. Fabricio, bonde? Olha aqui, eu que nasci em
1985 só conheci bonde de fotografia e mais
um pouco, com o que meu pai contava. Vai ver é crime da lanchonete que agora
eles estão usando carcaça de bonde para fazer barzinho.
-
Minha Nossa Senhora da Santa Paciência! Escuta o que eu digo. Pergunta pro seu
pai que deve ter andado nos bondes de Santos, na Avenida Ana Costa quando era
moleque. Lá em Santos eles adoram essa coisa e resolveram ressuscitar os bondes.
Agora tem uma linha turística que percorre o centro antigo. Você devia dar uma
volta num deles. Eles trouxeram bondes até do Canada, da Europa e restauraram
com empenho. Num desses mataram um moleque e deixaram um papel na mão dele. Se
estou te mandando pra lá é porque o caso é sério e cheio de mistério. Vê se faz
alguma coisa para justificar o teu salário junto ao distinto público. Chegando
lá procura o investigador Juvenal que ele te dá as coordenadas do caso.
Manhã
ensolarada, dia bonito para passear na praia e não para trabalhar. Gente jovem
assassinada ou é droga ou é romance mal acabado, algum corno que não gostou de
ser passado para traz. Era nisso que pensava Hiroito refastelado na poltrona do
ônibus. Conseguira deixar um recado para o tal de Juvenal e contava vê-lo logo
na chegada.
Gente
boa da delegacia de Santos, lá estava o Juvenal esperando por ele na rodoviária
com o distintivo bem a vista para poder ser reconhecido. Cara educado,
cinquenta e poucos anos, experiente conhecia tudo de crime, mas aquele lhe deixara
mais perdido que barata em galinheiro. A vitima era um rapaz de 23 anos de nome
Sergio Arantes, classe média, estudava a noite Ciências Contábeis na Unimonte.
De dia trabalhava num escritório de despacho aduaneiro.
Fora
encontrado morto dentro do bonde turístico que fazia o percurso pelo centro
velho da cidade, tendo nas mãos um papel de despacho marítimo. Chamava a
atenção:
1-
O que fazia num bonde turístico um
rapaz, morador da cidade cuja família também era da cidade.
2-
O bonde não estava vazio. Embora o
corpo tivesse sido encontrado no ponto, final por volta das 17h00min numa
quarta-feira, havia um número apreciável de passageiros. Os poucos que fora
possível inquerir não tinham ouvido absolutamente nada, nem tiro nem vozes em
confronto.
3-
O tiro fora dado à queima roupa no
precórdio. Os sinais de queimadura por pólvora não eram muito fortes o que
falava a favor de silenciador. Além de abafar o ruído esse instrumento abafava
também os resíduos de pólvora.
4-
Não houvera qualquer gesto de
defesa. Nada nas mãos da vitima indicava que ele tivesse esboçado qualquer
reação.
5-
O tal papel encontrado nas mãos da
vitima era um manifesto de carga do navio Panamá City e era perceptível que ele
fora colocado lá depois do assassinato, como uma espécie de mensagem.
Após
dois dias se informando e tendo visto o cadáver no IML Hiroito começou a elaborar
suas primeiras conjecturas:
A
– A vitima e seu assassino se conheciam. Ninguém toma um tiro à queima roupa
sem esboçar um gesto, um nada, de uma pessoa desconhecida.
B
– Sergio Arantes, o rapaz assassinado, era de classe média, aparentando vida a
mais pacata possível, trabalhando de dia e estudando a noite, porém ultimamente,
quer dizer de um ano para cá começara a exibir dinheiro meio solto. Carro novo
esporte, comprado à vista, balada todo sábado à noite, passeio de carro nos
domingos, com vários tíquetes da balsa de Guarujá no automóvel, em dias
variados. Por que tantas visitas a Guarujá?
C
– Mulheres. Uma, Vania, encontros frequentes, mas nada parecia indicar namoro
ou algo mais sério, às vezes ficavam, como se diz modernamente. Ela apenas
comentou que quando ele ia ao Guarujá durante a semana, não a levava nunca. Ela
tinha ciúme dessa história, mas ele se fechava e até fechava a cara quando ela
tocava no assunto.
D
– Como o Juvenal explicara o papel colocado na mão de Sergio era um manifesto,
documento marítimo. Como tal relacionava toda carga do navio. Diferentemente do
conhecimento (bill of landing, como às vezes é chamado, pelo nome em inglês) que
é um documento necessário para tramites alfandegários e liberação aduaneira de
mercadorias, o manifesto descrevia sumariamente toda a mercadoria embarcada num
navio de transporte marítimo e podia conter vários conhecimentos. O
conhecimento comprova o recebimento da mercadoria na origem e a obrigação de
entrega-la no lugar de destino. Engraçado o Juvenal não ter percebido, embora
Sergio trabalhasse num escritório de despacho aduaneiro, haviam colocado um
manifesto em suas mãos.
O
famoso faro de Hiroito estava funcionando! Se o papel era uma mensagem ela
dizia respeito a qual era a carga do navio e não aos tramites para liberação
aduaneira. O envolvimento do Sergio não era com contrabando, mas com roubo!
Era
notória a frequência e quantidade não pequena de roubo da carga no canal do
porto de Santos. Hiroito sabia bem como isso funcionava. Nesse sentido o famoso
cafezinho no DHPP com os investigadores mais velhos era melhor do que o Google.
Conhecendo a carga, os piratas saiam do Guarujá e, com a cumplicidade de
elementos da tripulação, ou abordavam o navio ou retiravam da água pacotes
lançados pelos mesmos tripulantes. Os modernos containers tinham dificultado um
pouco a trama, mas o conteúdo de cada container era claramente conhecido e
sabido.
O
prejuízo dos armadores não era pequeno, o pessoal sabendo o que vinha no navio,
escolhia a dedo, componentes eletrônicos, chips de memória, celulares e outros
itens do mesmo gênero. A briga era de foice e envolvia por vezes até a marinha
e a guarda costeira. O dinheiro corria solto e identificar os envolvidos era
tarefa difícil. Aliás, porto em qualquer parte do mundo era sinal de confusão.
Roubo de carga e contrabando com a globalização era prato de todo dia. A
Receita diante do volume de containers fazia fiscalização por amostragem e
muita coisa passava. Os armadores sabiam se defender melhor com a carga
desembarcada. Os piratas é que estavam dando prejuízo sério.
Bem
e do outro lado. Todo mundo sabia que o quartel geral da pirataria era o Guarujá.
Bem equipados e com contatos muito bons com os tripulantes o que eles
precisavam? Informações de carga, para saber o que interessava. Às vezes o
navio ficava ancorado fora do porto e então era sopa no mel ou mamão com açúcar
como se diz nos tempos modernos.
Ai
era que o Sergio entrava, trabalhando num escritório de despacho aduaneiro
tinha acesso ao manifesto de cada navio que ia entrar no porto com datas e tudo
mais que interessava aos piratas. Só que nesse negócio era tudo prostituta
antiga como gostavam de dizer, não tinha telefone, e-mail ou coisa que o valha.
As listas eram entregues em mãos, dai a quantidade de viagens que o Sergio
fazia ao Guarujá. Pagamentos só em dinheiro vivo, eles teriam muito que ensinar
ao povo da lava-jato.
O
que o Sergio não sabia era que o escritório de despacho aduaneiro do Sr. Naldo
em que ele trabalhava era mais uma dependência de um conjunto de unidades, de
um grupo pesado de armadores e importadores.
Fazia
algum tempo que o grupo resolvera apelar para a lei da selva e combater o crime
com mais crime. Estavam enfrentando a pirataria com pistolagem. E tinham
resultados, sobretudo porque os de lá da selva não podiam e nem queriam dar
queixa. Como foi possível apurar sem nada gravado ou escrito, o Sergio estava
sendo acompanhado fazia um ano. Tudo devidamente registrado, endereço no
Guarujá, cópias da documentação feita no próprio escritório, balsa em dia de
semana etc. Decididos a eliminar o problema, chamaram a turma da pistolagem e
entregaram as coordenadas. O encontro deve ter sido arranjado até com
facilidade. Assustaram o Sergio que seguiu para o passeio de bonde temeroso,
mas achando que isso ia terminar numa boa. Não terminou. Devem ter trocado
algumas palavras até que o outro sacou a pistola com silenciador e com muita
eficiência liquidou a fatura.
Hiroito
não tinha dúvida que seria possível encontrar o pistoleiro. Esses caras não se
importavam muito com isso. Sempre haveria uma história de traição, enganou
minha irmã, ótimos advogados e pena leve quando não absolvição.
Fazia
parte da vida do porto. Desde há muito a vida na estiva não era para
principiantes, até os sindicatos eram diferentes e tinham regras próprias.
Hiroito
voltou para São Paulo e foi informado pelo Juvenal dias depois que haviam
prendido o Anselmo, pistoleiro manjado que alegara desonra familiar e aguardava
o julgamento em liberdade.
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