MEU
CANHÃO.
Mario Augusto Machado Pinto
A cena é a poeira levantada pelos caminhões
transportando material miúdo aos montes, malas baús, cordas, pessoas. Minha
memória guarda nitidamente essa imagem de quase 30 anos passados desde quando a
vi pela 1ª vez. Lembro-me do meu pai e
da minha mãe me chamando Vem logo menino
ou quer ficar ai? Era sempre igual: os caminhões, a poeira, meu pai e minha
mãe, o pessoal começando a beber, a cantar, os animais a urrar com fome, o
cheiro acre de seus dejetos, mas pra mim não havia nada igual nem mais bonito.
Nessa época eu só olhava, não participava.
Não participava é maneira pra dizer que eu
não atuava, mas eu estava presente, sempre, ao lembrar-me do que dizia meu avô:
é a mais linda das artes. Graciosa e exigente, faz as pessoas alegres e rirem, cantar,
ficarem tristes e chorar, aplaudir e vaiar... É um mundo conhecido que segundo
gravuras e pinturas começou há pelo menos 5.000 anos A.C. na China; em 70 A.C. celebrando
o Pão e Circo de Roma havia o Circo Máximus destruído pelo fogo; ressurgiu
em 40 A.C. como Coliseum apresentando
todo tipo de excentricidades; de 54 D.C. a 88 D.C. havia lutas entre
gladiadores escravos, cristãos sendo jogados à arena, correndo, atacados e
trucidados por feras. Com essa insanidade o espetáculo foi deixando de atrair.
Houve desinteresse. Hoje nos resta o que sobrou do Coliseum, algumas lembranças criadas e exibidas nos filmes como Ben Hur, Spartacus, a corrida das bigas.
Pois é, mas evoluiu. No século 18, na
Inglaterra, nasceu o show, moderno,
com cobertura de lona. Transferido para os EE.UU., formatou o que se conhece
hoje em dia e que vai evoluindo passo a passo com tecnologia como o francês Cirque du Soleil que se exibe em
recintos fechados. São mais espetáculos teatrais, shows musicais. Nossa gente também
gosta, mas grande parte prefere, vibra mais com atrações perigosas, malabares
nos trapézios, domadores e suas feras, palhaços que falam (os antigos usavam a
mímica por não falarem o idioma local), a corrida das motos no Globo da Morte,
a cabeça do palhaço na boca do leão e outras cenas.
Eu gostava de ouvir as histórias contadas
pelo meu avô: suas palavras eram como luzes iluminando seus personagens, esculturas
colocadas nos escaninhos da minha imaginação. Hoje me fazem cismar, sozinho à noite; distante e com saudades do vô e daquelas
conversas que não tenho mais, que me fazem tanta falta.
Hoje revivo tudo isso. Há tempo que sou
parte tanto no escritório como no picadeiro. Pratiquei horas infinitas. Sou a
maior atração do Circo Omelete, levo milhares de pessoas à nossa plateia sendo que
para uns sou a estrela louvada, admirada, festejada e para outros, temida e
aterrorizante. Para os mais idosos sou o Homem Bala com roupa, capacete e botas
de um verdadeiro Flash Gordon e Robocop para os jovens, heróis das historias
em quadrinhos. Ouço frequentemente o aviso dos pais aos pequenos: Vem já pra cá! Olha o home! Ele te bota no
saco e você some.
Sou magrinho e comprido, já fui trapezista
e por que não dizer, dos bons. Aprendi com o titular. Sempre trabalhei sem o
cabo de aço salva-vidas e sem protetora rede pra aumentar a emoção, o arrepio e
o Ohhhh do público. Nunca escorreguei. Nunca caí. Eu era bom
mesmo.
Agora estou numa escala diferente. É que tempos
atrás, meu pai queria ter um número exclusivo. Buscou, procurou e imaginou ter
encontrado algo que nos tornaria únicos. Era para chamar mais atenção,
conquistar um novo público, mais jovem e sedento de emoções fortes. Sem dar
detalhes foi aos EE.UU. checar de perto o numero do lançamento do Projetil Humano.
Voltou e depois de vencer muita burocracia – os militares queriam saber tudo
sobre o “canhão” – trouxe o dito com uso exclusivo para nosso circo. Ficou
sendo o ato do Homem Bala.
Fui escalado e, zás, me vi treinando e
praticando o novo número, ator do projetil humano do canhão do qual sou lançado
à distância e para o alto atingindo um trapézio jogado na hora do tiro; completo
o ato jogando malabares sentado na barra.
É preciso muito cuidado ao me colocar
dentro do cano do canhão: os pés devem ficar bem posicionados, as pernas com um
mínimo de flexão, os braços estendidos para o alto, cabeça levantada e os olhos
mirando fixamente a barra do trapézio. Eu comando toda a ação com um
dispositivo interno ao alcance de minha mão direita e que dispara o projetil, -
eu - solta a barra do trapézio e faz o estrondo e a fumaceira de um tiro de
canhão. Isso tudo é feito em seis segundos. Não pode haver qualquer falha ou me
arrebento.
O troar do canhão e a fumaceira, faz a
plateia imaginar que é um disparo real, mas a verdade é que me apoio e sou
arremessado pelas molas de um embolo em direção ao trapézio numa curvatura
calculada e fixada sem a mínima alteração. Ao fim do voo, agarro e sento-me na
barra do trapézio balançante e começo a jogar com os malabares tirados das
cordas laterais. A fanfarra toca a marchinha de comemoração do feito. A plateia
vibra, grita, ri e bate palmas.
Fico balançando com a barra e jogando
sentado para dar tempo à acomodação dos músculos das pernas que sentem muito o
impulso do embolo que me arremessa. Além disso, me recomponho da enorme tensão
que há em todos os disparos. Confesso que às vezes fico sem saber como cheguei
lá em cima. Fico zonzo durante uma hora mais ou menos. Em terra descanso tempo
suficiente para me recompor e esperar a nova sessão. Não é nada fácil.
O dia seguinte começa com o trabalho no
escritório pela manhã seguido de exercícios físicos, almoço, namorico,
exercícios musculares, descanso relaxante, massagens, disparo. Depois começa
tudo novamente.
Há quatro anos tenho muito sucesso resultante
da dedicação, machucados, dores, horas mal dormidas, sobressaltos e pesadelos
horríveis e sinto que está se aproximando a hora de parar.
Procuro, estou sempre buscando, mas ainda não
consegui encontrar quem queira me substituir. Já me pergunto até quando? Finjo
que não, mas eu mesmo sei a resposta:
O espetáculo não pode parar.
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