Conto Premiado
José Vicente Jardim de Camargo
Em direção a minha casa de praia, piso forte no freio do
carro ao ler no acostamento da estrada um aviso em letras grandes informando que
a estrada está interrompida no trecho da serra por motivo de queda de barreiras
dado as fortes chuvas dos dias anteriores, sem previsão de abertura.
Paro no acostamento para recompor os pensamentos ou, como se
diz, deixar a ficha cair e ver oque fazer... Nesta altura dos acontecimentos, o
negócio é manter a calma e procurar sair do sufoco da melhor maneira possível.
A manhã ensolarada emoldurando a bela paisagem, me desperta
um desejo que há tempos venho postergando, de fazer um caminho alternativo que,
embora mais longo, passa por cidades históricas que não conheço, que tiveram
seu apogeu de riqueza e crescimento nos séculos dezoito e dezenove por serem grandes
centros produtores de café, na época principal produto de exportação do Brasil.
Assim chequei a cidade de Areias e logo me encantei com seu
ar bucólico de passado que transpira a riqueza do seu período áureo através da
opulência das igrejas, do casario colonial de infindáveis janelas balconadas e das luxuosas sedes das fazendas
dos barões do café, erguidas e mantidas
a custa do suor castigado de centenas de escravos trazidos da África.
Ao ver na rua
principal um desses belos casarões com dizeres “Hotel Solar Imperial”, entrei
e, ao ser informado na recepção, que ali pernoitou Dom Pedro I em final de
agosto de 1822, quando da sua histórica viajem a São Paulo, donde, nas margens
do Ipiranga, daria o grito da independência, não hesitei em me hospedar. Como
mimo pela reserva, me mostrariam o quarto onde sua Alteza Real se hospedou.
Outra grata surpresa
recebi, ao ser informado que outro hóspede ilustre de Areias foi, nada mais
nada menos, que Monteiro Lobato, quando de 1907 a 1911 trabalhou como Promotor
Público na cidade. Seu gabinete, situado no prédio da antiga Câmara Municipal, hoje
transformado em Museu da Cultura, ainda se conserva para visitas.
Manhã seguinte minha ansiedade me arrastou com grande
expectativa ao dito museu. No jardim varias esculturas talhadas em madeira dos
personagens dos seus contos infantis, dão as boas vindas aos visitantes: Emília,
Pedrinho, Saci-Pererê, tia Nastácia, Visconde de Sabugosa, entre outros... Na
sua sala de trabalho, sua mesa com canetas tinteiros e mata-borrões, estantes
contendo livros jurídicos, dicionários, fotografias envelhecidas, manuscritos de
sentenças judiciais expondo sua caligrafia de traços finos e letras miúdas e esboços
amarelados de alguns de seus contos rabiscados nas horas vagas do oficio.
De repente, como um raio, um clarão me sacode a mente...
Paro! Penso! Concluo:
Sim! Há exatamente uma semana atrás, na aula do escreviver,
li o último conto que escrevi “Saci-Pererê de Castigo”. É uma crítica a um
movimento que está surgindo em alguns setores educacionais, de se proibir a
leitura em escolas públicas dos contos infantis de Monteiro Lobato por considerarem
de cunho racista...
E não é que hoje aqui estou, sem nada ter planejado, por um
acaso do destino de uma estrada interrompida, visitando sua sala de trabalho,
admirando seus pertences e manuscritos, inclusive no caminho passei pela casa
em que morou...
Tudo me parece muita coincidência...
Não, não é! Para mim é um prêmio! Sim um prêmio que ele,
Monteiro, me concedeu pela crítica que fiz àqueles que querem proibir seus
contos, tirar das crianças o direito de sonharem, de passarem horas felizes no
Sitio do Pica-Pau Amarelo.
Radiante com minha honraria espiritual, encerro a visita, não
antes de tirar varias selfies com a turma do Sitio esparramada pelo jardim ...
Chegando ao hotel me mostram, conforme prometido, o quarto imperial.
Peço licença a Lobato, que meus pensamentos ainda domina, e voo mais longe no
passado. Montado no seu cavalo branco a figura altiva de Dom Pedro I,
costeletas e bigodes negros fartos, uniforme de gala impecável, botas de cano
alto lustrosas, tal qual nas figuras dos livros escolares de História do Brasil.
No quarto de dormir visualizo,
em cima da cômoda, a espada dourada de lâmina reluzente, com a qual, dias mais
tarde, em brado retumbante libertaria a nação, eternamente grata, do domínio português.
O “Cuidado com o degrau!”,
dito pelo guia do hotel, me traz de volta a realidade do dia.
Com a pança saciada pela deliciosa cozinha rural, despeço-me
de Areias agradecido pelo muito que me mostrou, pela liberdade de me deixar dar
rédeas à imaginação, que nos dias conturbados de hoje é vitamina pura...
Sim, um dia voltarei!
E desta vez, Lobato me convidará para um café e discutiremos
sobre a insensatez de certas políticas educacionais, observados com curiosidade
por Saci-Pererê e tia Nastácia. E no hotel terei um “rendez-vous” regado com
champanhe francês com a Domitila de Castro e Mello, Marquesa de Santos...
E Viva Areias...!
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