A saga de Leninha
Fernando
Braga
Um
casal de nordestino decidiu se unir e foram viver em um barraco alugado na
favela Paraisópolis. Ela, Marluce, era mulata clara e trabalhava como lavadeira
e passadeira de roupas em casas de vizinhos mais abonados, que habitavam
edifícios próximos. Ele, Pedro, um branquelo que todos os dias levantava bem
cedo, para junto com dois colegas,
pegarem o caminhão da prefeitura e coletar o lixo do município. Voltava apenas no
final da tarde, após exaustivo dia. De seus ganhos, pouco sobrava após pagarem
as despesas.
Ela
engravidou, nascendo uma menina sadia, registrada como Lena, que puxara mais a
cor do pai e cujo único defeito era uma polidactilia no pé direito, onde tinha
seis dedos, sendo o dedo acessório, colocado entre o segundo e terceiro
pododáctilos.
A
criança trouxe um gasto adicional que pesou em suas vidas.
Pedro
tinha desde pequeno crises de epilepsia, controladas com medicamentos diários,
os quais não podia deixar de tomar. Marluci teve que parar com seu trabalho para
cuidar do bebe. Nesta ocasião, Pedro teve uma convulsão durante o trabalho,
machucando o punho e teve que ser levado a hospital, lá permanecendo dois dias.
Ao
voltar para casa, o desânimo de ambos deu origem a uma conversa, a cogitação, a
louca possibilidade de entregarem a criança a uma família que pudesse criá-la
melhor. Vejam a coincidência!
Voltando
ao trabalho, certa manhã ao coletar o lixo da frente de uma casa de boa aparência,
encontrou uma bolsinha azul, de criança, que continha no seu interior lápis,
borracha, espelhinho e medalhinhas. Achou estranho aquilo estar na parte
superior do latão de lixo. Voltou à casa, tocou a campainha e foi atendido pela
empregada, que ao vê-lo com a bolsinha na mão deu um suspiro e disse:
— Você
a encontrou? Que bom! Não sabemos como foi parar na lata de lixo. Lucinha está
sentindo muita falta dela. Obrigada.
Após
dois dias, quando passaram pela mesma rua, a empregada e a patroa estavam esperando
na porta e ao vê-los, veio pessoalmente agradece-lo, dando-lhe uma nota de 10
reais e um pedaço de bolo. Pedro simpatizou-se muito com a senhora e
agradeceu-a de coração. Em casa, comentou com a esposa e aventaram a hipótese de
oferecerem a filhinha, com 4 meses, àquela mulher. Talvez desse certo.
E,
tudo deu certo! A presença daquela criança foi interpretada
como um envio divino, já que aquele casal não poderia ter mais filhos pois a
única que tinha, nascera com eritroblastose fetal, uma incompatibilidade no Rh
dos pais. O bebe conseguira sobreviver, tomando sangue imediatamente após nascimento. O médico disse
que aquilo foi milagre, mas deviam evitar de toda maneira outra gravidez.
Adotaram
a criancinha sem titubear, uma companhia futura para Lucinha,
que tinha dois aninhos. Cada seis meses Marluci
e Pedro vinham fazer uma visitinha à filha e, ficavam muito satisfeitos
ao ver como era tratada, com muito carinho. Sempre recebiam uma cesta de
alimentos e algum dinheiro, que não rejeitavam, dadas as dificuldades que apresentavam.
O
tempo passou e aos 4 anos Leninha foi para o jardim de infância, frequentado
pela irmã. Quando fez seis aninhos a mãe explicou-lhe sobre a sua adoção e
disse que aquele casal que raramente vinha visitá-los, eram os pais
verdadeiros. Ela não acreditava, tomava como brincadeira e não aceitava quando
nestas esporádicas visitas, eles pegavam-na no colo e ficavam a beijá-la.
Perceberam
que haviam perdido de vez a filhinha, e sabiam que nenhum direito mais tinham
sobre ela, que não seria justo tentar recuperá-la para ir morar em uma maloca. Marluci sofria demais, mas entendia que tudo
era para o bem da “filha”.
Uma
nova gravidez veio para Marluci, agora nascendo um menino, que puxou mais o
lado da mãe, um moreninho portando o mesmo defeito no pé direito, os seis
dedinhos, o mau formado agora entre o
quarto e quinto pododátilos.
Quando esta criança fez um ano e já conseguia
andar, vieram mostrá-lo para a irmãzinha que já havia feito 8. Ela não deu a mínima bola e continuou a
rejeitá-los, logo se afastando. Vânia fazia festa quando os via, enchia-os de presentes, dinheiro e
confessava que já havia contado a Lena, sua verdadeira origem.
O
tempo passou depressa, Luciana Lena fez os 15 aninhos e dois anos após, Lena.
Eram muito amiguinhas, se davam bem. Frequentavam o mesmo colégio, o mesmo
clube, as mesmas festinhas e na realidade ninguém sabia da adoção, a família
nunca comentava. Ninguém notava diferença no tratamento que era exatamente o
mesmo. Lena, em seu íntimo, passou a aceitar o fato, após ter notado o mesmo
defeito no pezinho do irmão, por ocasião de nova visita. O casal nordestino
notando a aversão por parte da filha, evitaram voltar a visita-la e, decidiram investir
no filho.
Com
18 anos, Lena entrou na faculdade para fazer psicologia e três anos após,
começou a namorar um recém-formado em direito. Gostavam-se muito e
tornaram-se confidentes. Certa noite num jantar, Lena
aproximou-se, deu-lhe um beijo no rosto e disse ter algo para confessar-lhe
sobre sua vida:
-
Sou uma mulher que foi adotada. Meus pais, Vania e Geraldo, que você conhece, não são meus pais verdadeiros, de
sangue, mas de coração. Conheço meus pais verdadeiros que são nordestinos pobres,
que hoje vivem em um pequeno apartamento do BNH. Meu pai é porteiro de cinema e minha mãe é
cozinheira. Tenho um irmão parecido comigo,
bem moreninho, e também tem , seis dedos no pé, exatamente igual ao meu,
que você já viu e achou bonito.
Sempre
os rejeitei, evitei aproximação, mantendo um contato mínimo. Se fossem pais
verdadeiros, não teriam me dado de presente. É verdade que isto mudou minha
vida para melhor, mas pais rejeitarem filhos, não é comum. Em seu âmago, ela conhecia
a verdade, verdadeira! Era uma psicóloga! A reação de seu namorado foi bem
positiva, ressaltando o fato relatado, que para ele não tinha a mínima importância, uma vez que a
amava .Terminou dizendo fazer questão de ir visitar seus pais verdadeiros, aonde
estivessem.
Assim
foi feito e ao se apresentarem no minúsculo apto dos pais, em bairro afastado,
foram recebidos com enorme surpresa e alegria.
Lena
abraçou muito sua mãe, beijou-a carinhosamente e depois seu pai, e em seguida
após sentarem-se, pediu perdão pelo seu comportamento até então. Seu irmão,
agora com 15 anos era um garoto bem privilegiado pela altura, físico e
comportamento. Quando viu sua irmã abraçou-a fortemente e logo em seguida,
pediu que tirasse o sapato do pé direito. Assim que ela o fez, mostrando os
seis dedinhos pintados de esmalte vermelho, tirou seu tênis e colocou o pé
direito ao lado do dela e ambos morreram de rir. Ela passou a ajudar os pais e
o irmão, para o qual comprou um computador e, que aos 21 anos, após fazer
muitos cursos, tornou-se um perito em conserto de computadores, livrando-os dos
vírus.
Casou-se
Leninha com o advogado e na festa lá estavam todos os familiares e amigos e com
a verdade toda exposta. Na vida, todos acabam sofrendo, uns antes e outros
depois. Eles sofreram antes.
O futuro reservou o melhor, para aquela
família de nordestinos.