Paixão
desvairada
Ises de Almeida Abrahamsohn
Rachel olhou
curiosa a carta sem remetente com carimbo da Turquia com seu nome e endereço em
letra de fôrma. Não conhecia ninguém de lá, nem se lembrou de algum amigo que estivesse
visitando Istambul. Não é o melhor momento para se fazer turismo por lá,
pensou. Ao rasgar o envelope mediatamente reconheceu a letra miúda e corrida na
folha de papel arrancada de um caderno espiral.
“Minha amiga! Por
favor, diga à minha mãe que estou viva e bem de saúde. Consegui escapar da
Síria e estou em um campo próximo à fronteira. Ninguém me conhece aqui, me
apresento como voluntária de um grupo de apoio aos refugiados. Vou tentar
chegar a Ancara e me entregar na embaixada. Espero estar de novo em casa em um
mês. Não tente me localizar. Isso só diminuiria as minhas chances de escapar e
nem mencione esta carta aos nossos amigos comuns. Sinto muita sua falta.
Maggie.”
Rachel ligou para a mãe de Maggie com alguma conversa
banal e combinou um encontro no
Starbucks do bairro. O telefone certamente estava sob escuta do FBI. Pediram um
café “to go ” e foram caminhando pela rua principal. Só então Rachel contou-lhe
da carta. A senhora Ritmmers entre contidas lágrimas de alegria respondeu em
voz baixa com seu carregado sotaque alemão:
̶ Finalmente
aquela tresloucada caiu em si! Morro de medo que ela não consiga voltar. Minha
querida Maggie! Vou voltar a vê-la. Achei que a tinha perdido para sempre
quando foi para a Síria. Agora só podemos rezar para que tudo dê certo.
Rachel conhecia a história da amiga, que, aliás, era
bem conhecida nos bastidores da CIA lá em Washington.
Margareth – Maggie – Rittmers, cidadã americana, trabalhava
como intérprete e tradutora na agência. Emprego burocrático e rotineiro como
dezenas de outros semelhantes nos escritórios de retaguarda da Agência. Jovem e
solteira foi contatada se teria interesse em um trabalho de campo mais
interessante e melhor pago na Alemanha. O seu perfeito alemão lhe permitiria infiltrar-se
em um grupo de jihadistas organizado, sediado em Dresden. O alvo do interesse
da CIA era Tino Lautner, um rapper que tinha tido algum sucesso em Berlin há
alguns anos e do qual se suspeitava que tivesse aderido ao Jihad. A proposta
era sedutora, viagem e estadia com tudo pago, além do pró-labore. Não envolvia
perigo direto. Maggie precisaria apenas identificar o maior número possível de
participantes da célula ligada a Lautner.
O que nem a CIA, e
nem os amigos ou a família contavam era que Maggie ficaria fascinada e absurda
e completamente apaixonada pelo ex-rapper. Rachel ainda acompanhou o início
dessa paixão via Whatsapp porém logo a amiga cortou qualquer
contato. A mãe e Rachel receberam apenas um comunicado lacônico de Maggie anunciando
seu casamento e sua viagem iminente para encontrar-se com o marido. Para horror
de todos, Rachel soube de um vídeo postado no qual o jihadista alemão aparecia
segurando a cabeça decepada de alguma infeliz vítima. O casamento acontecera há
dois meses.
Agora, Maggie estava voltando...
Três semanas após o
encontro com Rachel, a mãe recebeu noticias da filha. Estava presa em Ancara e
dentro de alguns dias estaria em Washington, onde seria extensamente
interrogada e julgada.
Rachel conseguiu
permissão para visitá-la na prisão. Nos dez minutos vigiados da conversa,
Maggie contou-lhe a experiência junto ao marido. Permanecia trancada com mais
duas outras mulheres em algum esconderijo oculto entre ruínas enquanto o grupo
saía para incursões e ataques. Comida e água eram escassas. O lugar mudava a
cada três ou quatro dias. O marido a ignorava e não a protegia dos avanços dos
companheiros. Para eles, a moça era uma americana infiel que não merecia
respeito. Foi estuprada duas vezes por combatentes que, na ausência do marido, invadiram
o porão que ocupavam. Por fim, desesperada, conseguiu escapar e se juntar a uma
unidade de socorristas.
Rachel abraçou a amiga e prometeu visitá-la outras
vezes. Era só o que podia fazer. Sabia que só depois do julgamento a veria de
novo, ao cumprir a pena. Com sorte e, porque estava colaborando, pegaria dois
anos.
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