Um dia imigramos - Ana Maria Maruggi

 


Um dia imigramos...
Ana Maria Maruggi

Nossas mãos rijas se entrelaçaram enquanto nossos corpos tesos, em pé, equilibravam-se no estranho píer. Um tocar severo, mas acolhedor. Era manhã de segunda feira e o sol raiava devagar à oeste, tão lentamente que parecia ser proposital para que conseguíssemos colocar em ordem nossos  pensamentos e pudéssemos aplacar nossas dores. A língua tão diferente da nossa nos assustava mais que  todas as milhas de distância que tivemos que percorrer para estar ali. Nossa primeira hora em terra que nunca visitamos, mas onde viveríamos até o fim de nossos dias. Meu corpo magro respirava alto, e meus pés juntados tremiam aos solavancos. Pensei em olhar nos olhos de meu esposo para dar-lhe apoio, mas tive medo de ver pavor neles. O mesmo pavor que me encobria, e assolava minha alma poderia estar tomando conta dele. As malas, que guardavam nossa história,  jaziam entristecidas ao canto, umas sobre as outras. Uma saga inteira em dois metros de píer. Alegrias e tristezas que pareciam apagar aos poucos para dar lugar à insegurança. Pensei em dizer algo, mas minha boca selada mentia sobre a alegria de aportar no Brasil. Já tinha saudade de minha família, e dos amigos que deixei tão distante. Tinha muito medo de nunca mais vê-los. Meu coração debatia-se feito pássaro engaiolado pela dor da deserção. Desertamos, meu Deus, desertamos! Fugimos! O que viemos desfrutar neste mundo! Meu marido estava certo quando disse que seria muito difícil, e ainda nem caminhamos um passo sequer dentro deste país. Meus pensamentos giravam me atormentando, fervilhava minha cabeça, estourava meu peito.

Nesse momento senti que a mão dele, inconscientemente, apertou a minha. Correspondi. O que dizer a um homem que se sente derrotado, desertor, e estranho? Continuei calada na esperança de que a voz dele rompesse o maldito silêncio que nos amordaçava, e nos levasse para qualquer lugar. Queria olhar seu rosto e oferecer-lhe o conforto que eu não tinha naquele momento. Queria dar-lhe carinho e um doce sorriso, mas minha alma medrosa se acanhava no canto do mundo e tremia toda apavorada pelo que ele poderia dizer.  Um apito soou para tirar-me do pesadelo. Mas o que conseguiu foi mostrar-me a pressa que o mundo tinha em nos empurrar para a vida, fosse ela qual fosse.

Desta vez eu apertei demasiadamente a mão dele, ele correspondeu. Nosso silêncio purulento nos engolia. Precisava dizer alguma coisa que nos tirasse do muro de abismo. Pensei em nossa juventude, em nossa força física, em nosso casamento... ”Tudo bem”...Essas palavras pálidas soaram baixinho, mas tão baixinho que somente eu pude ouvi-las. Apertei novamente a mão dele e esbocei um patético sorriso. Naquele instante era tudo que eu podia dar-lhe. Minha alma se esforçou muito para ofertar-lhe tão pouco.


De repente  forte vigor o fez inflar. Sua mão grande encaixou-se  anatomicamente à minha. Com a outra mão agarrou como pode as malas. Presenteou-me com seu melhor sorriso, e conduziu-me para dentro do Brasil. Há 62 anos, e sempre fomos muito felizes aqui. 

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