Carta trocada - José Vicente J. de Camargo





Carta trocada
José Vicente J. de Camargo


Antes de entrar no carro para ir ao trabalho, costumo dar uma olhadela na caixa de correio pendurada no portão da garagem. Nesse dia, para surpresa minha, no meio dos boletos de cobrança e das propagandas de produtos de consumo, tinha um envelope de carta escrito a mão endereçado a mim. Estranhei, pois, neste mundo virtual da internet, quem ainda usa correio para comunicar-se? Já é passado! Algo desconhecido para a nova geração.

Instantaneamente, sem saber porque, meu pensamento pinça do subconsciente o tempo dos correios elegantes nas noites de quermesses da igreja ou nas matinés dançantes dos domingos no salão do clube. Com os amigos ficava na expectativa de receber pelo menos um daqueles papeizinhos bem dobrados para não ficar “sapateiro”, expressão usada para indicar “não tá com nada! ”. 

Orgulho máximo, que elevava o endereçado à categoria de “galã”, era receber um correio perfumado de uma garota bonita, desejada por muitos e considerada de difícil paquera. A entregadora do correio, geralmente voluntárias da quermesse ou os próprios garçons do clube, ficavam à espera da resposta. Geralmente eram convites para dançar, para sentar à mesa ou para um bate-papo no “escurinho” da praça. Mas, se a mandante não era de interesse e não aumentasse sua pontuação perante os amigos, simplesmente ficava sem resposta.

Continuando neste contexto, de como os costumes mudam rapidamente, meu pensamento voa para quando, morando na Alemanha, tinha uma agenda só para anotar nomes e endereços para envio de cartas e cartões de natal contando as novidades e desejando os tradicionais votos natalinos. Tinha de ter o cuidado de não repetir fatos já descritos anteriormente e de controlar a extensão e a intimidade do relato de acordo com o grau de relacionamento com o destinatário. Era um trabalho minucioso de dias a fio que fazia após o expediente, inclusive em vários idiomas, dado ao conhecimento de amigos de diferentes países. Tudo isso a internet engoliu em pouco tempo...

Entre a atenção na direção e o vagueio mental, resolvo ler a carta retirada da caixa de correio. Abro-a, mas há algo que não entendo bem. Estaciono o carro e a releio:

“Mas que raios é isso?” Não pode ser eu! E está sem remetente! Ao reler o endereçado, percebo então que a carta não está em meu nome, mas sim no do vizinho, parecido com o meu – não é a primeira vez que isso acontece – ele é José Alves, eu sou José Nunes. A missiva, porém, é totalmente ameaçadora:

“Sei que foi você que contratou o capanga para matá-la. Tenho provas suficientes inclusive o testemunho do comparsa que o capanga utilizou para atraí-la ao beco escuro em troca de droga e onde a esperava a bala fatal. Não precisava chegar a este extremo. Ela era uma pessoa que, apesar do vício, tinha bom coração. Ela não queria prejudicá-lo. A história da chantagem de contar à sua mulher foi uma tentativa para que você não a abandonasse. Ela me contou sobre seu instinto violento, de eliminar quem se intrometer no seu caminho, pensando que com dinheiro se compra tudo. Mas aí é que você se engana, pois, chantagem verdadeira você vai ter a partir desta carta. Na próxima lhe direi quanto e onde deixar a grana da sua liberdade. Caso contrário, a polícia receberá o celular do comparsa que é meu amigo, e também era dela, e está arrependido. Nele estão as gravações das conversas entre ele e o capanga que você contratou, inclusive citando seu nome como mandante”.

Enquanto dobrava a carta cuidadosamente nas marcas originais, pensava o que fazer. Conhecia o vizinho muito pouco, se saudavam cortesmente, nada mais. Sua mulher tampouco tinha contato com a mulher dele, quanto muito sabia seu nome tão próximos fisicamente, mas tão distantes no convívio social pensava. Uma coisa não tinha dúvidas: colocaria a carta ainda bem que não rasguei o envelope ao abri-la de volta na caixa de correio do vizinho como se nada tivesse acontecido. Devia apagar qualquer suspeita de ter lido o conteúdo assassino. Nem contaria à esposa para não a assustar. Eu já estou bem assustado! Se o Alves descobrir que eu li, movido pelo seu carácter de machão vingativo, contrataria alguém para mandar me matar também.

Passei o restante do dia no escritório intrigado entre o perfil e as possíveis atitudes do vizinho. Conclui que “nem tudo que reluz é ouro”.

Ao chegar na garagem de casa, por uma dessas coincidências que o destino nos prepara, estacionei no mesmo momento em que o vizinho. Instantaneamente cobri com a mão a valise que continha a carta, como querendo escondê-la. O vizinho me cumprimentou amistosamente e, pela primeira vez, me dirige a palavra:

Boa noite! Algum dia vamos marcar uma reunião na pizzaria da esquina com as respectivas. Elas se divertem com as fofocas do momento e nós, com nossos segredinhos...

De acordo! Respondo, observando seu sorriso charmoso vou pensando:

Será que ele é mesmo o tal da carta? Ele não aparenta ser um mandante de crime nem um machão raivoso. Será que a tal missiva é verdadeira? Não sei! O melhor agora é colocar a bendita carta na caixa de correio dele e apressar minha mulher a marcar com a dele, a noite da pizza. Quem sabe, após uns bons tragos, ele não se abre com os tais segredinhos...Talvez alguns até possam ser úteis a mim. Preciso por um pouco de “sal e pimenta” no meu dia a dia ...



Passagem - (crônica) - José Vicente Camargo




Passagem  -  (crônica)                                                  
José Vicente Camargo



Neste domingo de Páscoa acompanhei minha esposa na missa das 18:30 na igreja do bairro. O ambiente era festivo de abraços e sorrisos desejando uma Feliz Pascoa. Uma voz anuncia que as luzes do templo se apagarão e que os fiéis acionem a lanterna de seus celulares. O efeito foi comovente. Sob milhares de luzinhas tal qual show de artista pop que se apresenta nas arenas da cidade, ascende surge entra pela porta principal a imagem do Cristo Ressuscitado amparado pelos ombros orgulhosos de fiéis de semblantes compenetrados. As pessoas de olhos úmidos e mãos postas juntas em graça se benziam. A atmosfera era de união na solidariedade, no amor e na paz.  

Na homilia o padre celebrante mencionou que páscoa significa em hebraico “passagem” de uma situação ou de um estado de espírito para outro melhor, significando um novo renascer, por isso simbolizamos a Páscoa com um ovo que gera vida nova. Cristo ao nascer da virgem, adquiriu, além do espírito divino, também o espírito humano de homem mortal. Na Sua paixão na cruz sofreu como humano as dores da crucificação e quando ressuscitou, três dias depois, ressuscitou também seu lado humano, possibilitando assim a todos que nele acreditam, a ressurreição da carne e a vida eterna. Portanto os cristãos devem ver na pascoa a passagem para uma vida nova, que deslumbra um futuro mais justo, mais promissor, sair de uma situação de perigo e abandono para uma de paz, de um estado doentio para um saudável, de malfeitor para benfeitor, protetor dos mais fracos, dos injustiçados. Deixar o ódio, a raiva, a fobia contra raça, gênero, religião para reviver num estado novo de espírito apaziguador. Para tanto é necessário que cada um faça um exame de consciência, de reflexão consigo mesmo num esforço de querer mudar. A recompensa é encontrar a paz, saber que a vida é curta, feita de momentos. Aproveitar para melhorar a sua autoestima, o seu prazer de viver, desfrutar com o que está a seu alcance e não cobiçar a vida alheia, o desprezo pelo próximo. A explosão das redes sociais foi, por um lado, significativa para a política da globalização na aproximação das pessoas, mas por outro lado, deixaram a sociedade confusa, ansiosa para obtenção rápida de resultados nem todos voltados para o bem comum. Que esta passagem nos faça distinguir melhor o joio do trigo.

O silêncio que imperava no templo, indicava que as palavras do clérigo ecoavam na consciência dos presentes.

Ao chegar em casa, com a xícara de chá acalentando o corpo e o aroma da torta caseira aguçando o paladar, ligo a televisão no jornal da noite. De cara, a primeira notícia:

Quase trezentos mortos no bombardeio terrorista desta noite contra igrejas cristãs e hotéis no Sri Lanka! Ala radical budista é a principal suspeita dos atentados! ”.

Engulo com o chá e mastigo a torta, já sem gosto, as palavras de fé e esperança do padre. Quase, simultaneamente, me vem à mente o incêndio recente da Catedral de Notre Dame em Paris. Foi ato de algum misógino? As investigações até agora, preliminares, indicam falha no sistema de ar condicionado. Mas sabotagem não está descartada...

A campainha toca. Minha esposa abre a porta e uma lufada de risos e barulhos infantis invadem o ambiente. São os netos saltitando, trazendo os ovinhos de páscoa para os avós na alegria de receberem a contrapartida. Seus olhos brilham, seus sorrisos emolduram a felicidade, mal sabendo que eles é que são a vida nova, a esperança de futuro melhor.

Neste momento me vem uma ideia que parece factível para desatar o nó que impede a passagem do homem universal para o lado do bem: Que se obriguem as redes sociais, em todos os continentes, como um tipo de compensação pelos eventuais danos causados, a estamparem em seus sistemas, rostos de crianças de diferentes raças e idades, daqueles bem fofinhos de amolecer qualquer coração de pedra. Quem sabe assim esses humanos que insistem em permanecer no lado mau, ao acessarem as redes para tramarem seus atos de terror, não se arrependam e desistam do intento.
Todas as almas têm um ponto em comum: a compaixão...


Corte o mal pela raiz - José Vicente J. Camargo



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Corte o mal pela raiz   
José Vicente J. Camargo


No Congresso Nacional ele é conhecido pelos demais deputados apesar de não ter curso superior como Dr. Sabetudo, que confirma a tendência dos brasileiros de conferir títulos honoríficos, não só aos oriundos das ciências e das letras, mas também a quem tem, além do conhecimento do ofício, a simpatia da maioria dos que com ele convivem. Atributos para isso não faltam ao nosso deputado, dado a sua ilibada conduta política, humana e social, demonstrada na atual e nas duas legislaturas anteriores que lhe valeram um número crescente de votos. Sua maneira peculiar de expor projetos e emendas na Câmara e de justificar seus votos com tons de ironia e humor originando seu apelido “Dr. Sabetudo” é o motivo da sua popularidade entre os demais parlamentares e o assunto preferido da imprensa falada e escrita.

Chegando sua vez de discursar no parlatório em prol de uma solução para um grave delito nacional, que vem afligindo a sociedade, inicia:

Prezados Colegas, para basear-me no que vou aqui propor, pesquisei nas redes sociais e nas demais mídias, motivos que pudessem levar alguém a cometer crimes dessa natureza. Eu pessoalmente tenho um amigo de muitos anos que está em tal situação. Ele é daqueles “incapazes de fazer mal a uma mosca” e então, como explicar que foi preso tentando matar sua mulher? Como pode, do dia pra noite, mudar seu instinto de marido amoroso para marido assassino? Ao meu ver, o motivo principal está na mente das pessoas que, como o ditado “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, vai aos poucos absorvendo mensagens externas que a convence a cometer tais delitos. Em outras palavras “lavagem cerebral”. Em poucas horas pincei da mídia em geral, à disposição de qualquer cidadão, as seguintes frases e estrofes:

Mulher fala ao marido:

Você parece não se importar com o que penso!

Me importa! O que passa é que você nunca para de pensar...

Médico pergunta ao paciente engessado na cama do hospital:

O Sr. pratica alguma atividade perigosa?

E ouve

As vezes discordo da minha mulher...

Opinião de cientista famoso:

“Acho que toda mulher deveria discutir em libra com o marido” (Alfred Einstein)

Mulher no confessionário: Padre, depois que me separei do meu marido, ele não para de beber, o que devo fazer?

Nada! deixe ele comemorar em paz...

Mulher ouve no grupo de alto ajuda:

Se você ainda não foi chamada de bruxa ou coisa parecida, você não está fazendo seu papel de mulher corretamente...

Mulher na clínica estética:

Dr., acho que estou mais feia, sinto-me gorda e vejo-me mais velha, o que tenho?

Razão, diz ele...

Um ladrão me acerca e diz:

O dinheiro ou a vida!

Eu respondo:

Sou casado imbecil! Que dinheiro? Que vida?

Nos abraçamos e choramos juntos, foi muito bonito...

O animal mais rápido do mundo é uma mulher com raiva escrevendo no WhatsApp...

Conselho de amigo,  pra amigo:

“Não tente entender as mulheres. Mulher entende mulher e elas se odeiam...”
Marido poeta:

No aniversário dela, ele lhe deu uma lua nova

Ela a apalpou, avaliou e rejeitou

Ah! Eu queria aquela, sabe? Toda cheinha...

Certamente, caros colegas, existem outros motivos mais complexos que envolvem os labirintos da ciência médica, mas deixemos esses aos psiquiatras explicarem. Mas este que exponho, é o culpado mor dessa tragédia. Portanto peço vosso voto para que cortemos este mal pela raiz, que fique proibido, doravante, publicar em qualquer mídia, incluindo as redes sociais, qualquer comentário ofensivo às mulheres, acabando esse bullying mediático que impulsiona a mente assassina dos homens.

Entre os parlamentares, ouve-se sussurros:

“Essa proposta do Dr. Sabichão vai dar o que falar na imprensa, não creio que seja aprovada. A bancada feminina vai entrar em frenesi. Quanto a isso, sussurra outro, tenho uma frase apropriada: “Pra calar um grupo de mulheres, basta dizer: vai falar uma de cada vez! E começa com a mais velha...”


Encontros e Desencontros – Na Praia com Maracujá - José Vicente J. Camargo





Encontros e Desencontros – Na Praia com Maracujá               
José Vicente J. Camargo


Você já encontrou sua outra metade da laranja? Pergunta Monica de repente me encarando de frente. Seus olhos negros amendoados combinam com sua pele morena e com seus cabelos negros que lhe tocam o ombro. Seus lábios entreabertos mostram os dentes alvos. Gotas de mar salpicam seu corpo bem torneado de mulher dona de si. Acabávamos de sair das ondas que nos refrescaram do forte calor de verão.

A conheci no dia anterior, debruçada sobre um sorvete numa mesa de canto da única sorveteria do vilarejo pregado no costão junto ao mar. Minha atração foi imediata, uma carga elétrica atraída pelo polo oposto. De sorvete em punho peço licença para compartir a mesa e a brecha para o diálogo se abre ao ver que tínhamos algo em comum: sabor maracujá! As frases vagas do início foram se tornando mais consistentes no café e bolo, e à noite na pizza com vinho que liberou as confidências escondidas e culminou com o encontro marcado para a manhã seguinte na praia.

O sono da noite me varreu as horas apressado, ansioso de continuar a descobrir o intimo dela, dar vazão à curiosidade de saber mais...

Está com medo de contar? Interrompe Monica meu pensamento relâmpago relembrando o que passou desde o sorvete.

Sim, já encontrei minha metade da laranja! Mas a perdi logo em seguida sem degustá-la como gostaria. Minha timidez e inexperiência nos assuntos de amor levou a isso e novamente meu pensamento dispara ao passado em direção a Verinha quando sentou ao meu lado e apertou minha mão tremula por estar ao lado da musa mais cobiçada do bairro, paquerada pelos “bons garanhões”, o que era impensável para minha timidez dos 25 anos que me transmitiu um complexo de humildade e pequenez que não conseguiu segurá-la,  deixando-a cair em mãos mais maduras... Retornando em disparada ao presente, completo: “Por hora procuro uma nova meia metade. Quem sabe não a encontro por aqui? Não precisa ser de laranja, inclusive prefiro de maracujá, que em vários países é conhecido como fruto da paixão”.

Mirando Monica, vejo seus lábios carmim se abrindo num sorriso dizendo:

Maracujá é também minha fruta predileta! Dizem que tem “cara do verão” que é a estação que mais gosto. O nome vem do tupi - mara kuyiá – que significa “alimento na cuia”. Tem vários tipos, cores e sabores: de casca enrugada, casca lisa, meio doce, meio azedo, amarelos, roxos, verdes assim como eu com minhas manias – várias em uma só pessoa que torna o convívio não muito fácil. Aprecio também seu óleo usado na produção de cremes e loções, pois amacia e hidrata a pele, deixando-me bem-disposta e cheirosa.

Suas palavras me empoderam de forças, que exterminam de vez qualquer vestígio restante de timidez e me dão confiança para blindá-la de olhares alheios mal-intencionados. Concluo:

Eu também tenho várias manias! Mas o efeito tranquilizante do maracujá acalma o sistema nervoso, apazigua os ânimos e deixa tudo na boa... E não vamos esquecer da flor de maracujá! Contrasta muito bem com seus cabelos negros. Não precisa de véu nem grinalda. Vai ser nossa flor da união.

E fomos comemorar com uma caipirinha, sem limão, só dele, o amado maracujá...


A vida de um queniano - Fernando Braga






A vida de um queniano
Fernando Braga



O Quênia é um país subsaariano, cuja capital Nairobi tem 3,5 milhões de habitantes, e é, bem cosmopolita. O país possui um relevo invejável com montanhas, vulcões, lagos e enorme fauna de animais selvagens, além do famoso lago Vitoria e os picos Quênia e Kilimanjaro, este, o maior do continente. É um dos países melhor situados economicamente na África, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH O,569). 

Dentre os 20 países mais pobres do mundo, 19 estão neste continente. Cerca de um quarto da população africana (233 milhões de pessoas) está em estado de desnutrição, segundo a ONU. A situação chegou a esse ponto devido ao colonialismo, tráfico humano, divisão geográfica injusta feita por países europeus, conflitos internos e ainda o apartheid.


A África é considerada um continente pobre, porque a grande maioria da população, vive miseravelmente. Um continente com grandes riquezas naturais, mas com a população que não se beneficia delas, com cenários de fome, guerras e catástrofes.

Esta situação pode ir melhorando caso ocorram fatos, como o observado recentemente no Quênia, digno de ser enfatizado.

Peter Tabichi, um queniano negro, de origem pobre, como a maioria em sua pequena cidade, conseguiu com muito sacrifício estudar, tornando-se um monge Franciscano e além disto, um grande matemático e físico. A educação sempre correu em suas veias, uma vez que o pai também é professor.

Foi pensando em todos os tipos de mazelas que viu quando criança, como gravidez na adolescência, abuso de drogas, abandono escolar, que Tabichi deixou o emprego que tinha em uma escola particular e partiu para a escola de ensino fundamental Keriko Secondary School, em Nakuru. Como professor, passou a dar aulas em uma escola rural, remota, sem infraestrutura, com classes lotadas e poucos livros didáticos, onde um terço dos alunos era órfão, com pais perdidos nas guerras.

Mostrou aos alunos que "a ciência era o caminho certo" para se ter sucesso no futuro. Notou, que eles não conseguiam se concentrar, porque não se alimentavam o suficiente em casa, então passou a doar   80% do salário para apoiar os estudos dos seus alunos, conseguindo alimentos, uniformes e material escolar. Seu objetivo era que as crianças tivessem grandes ambições, promovendo a ciência, não apenas no Quênia, mas em toda a África. 

Tabichi, enfrentava desafios, sala superlotada, a falta de professores, apenas um computador. Sem uma boa conexão de internet, ia até um café na vila, baixar os materiais necessários para as aulas de ciências. Os alunos, a maioria andava mais de 7km, em estradas ruins, poeirentas, para chegar à escola. 

Sua dedicação, trabalho duro e fé no talento de seus alunos, permitiram que a escola, em área rural e com poucos recursos, ganhasse o Prêmio de Melhor Escola em Competências Nacionais de Ciências Inter escolásticas.

Os estudantes tiveram sucesso em competições científicas nacionais e internacionais, recebendo até um prêmio da Sociedade Real de Química do Reino Unido, ao usarem uma planta para gerar eletricidade. Em outro momento, os alunos foram classificados para uma feira de engenharia da Intel por terem criado um dispositivo, capaz de ajudar pessoas cegas e surdas a medirem objetos. 

Tentou até mudar a mentalidade dos pais, que queriam que suas filhas se casassem cedo, encorajando-os a deixarem que as meninas continuassem seus estudos. 

Este professor também ensinava técnicas de cultivo aos moradores dos arredores, pois a fome era uma realidade presente na região. Ensinar novas maneiras de plantar era questão de vida ou morte", disse em entrevista à Fundação Varkey. 

Além do contato com as famílias, criou os "clubes da paz" que organizou na escola, para representar e unir as sete tribos presentes ali, após a violência tribal ter explodido depois da eleição presidencial de 2007, com muitas mortes em Nakuru. 

Para ser um grande professor você tem que ser criativo e abraçar a tecnologia, as formas modernas de ensino. Você tem que fazer mais e falar menos", disse ele à fundação. 

O prêmio – Peter Tabichi, de 36 anos, um monge queniano, foi escolhido como melhor professor do ano 2019, pelo Global Teacher Prize, da fundação Varkey. 

O prêmio de 1 milhão de dólares, foi anunciado em Dubai, ao eleito Tabichi, como o ¨melhor professor do mundo¨, por ser excepcional dentro e fora das salas de aula.  Venceu, dez mil outros indicados de 179 países e, dentre eles, a professora Debora Garofalo, que ensina matérias de tecnologia em uma área carente de São Paulo, também premiada.

A fundação Varkey, é uma organização de caridade dedicada à melhoria da educação de crianças carentes e busca elevar o status da profissão de docente.  

— Estou aqui, apenas pelo o que os meus alunos conseguiram, disse ele ao receber o prêmio.

O fundador da premiação, Sunny Varkey, disse ao entregar o prêmio, esperar que a história de Tabichi "inspire os que procuram entrar na profissão e seja um poderoso holofote sobre o incrível trabalho que os professores fazem no Quênia e em todo o mundo, diariamente". É como um prêmio Nobel da Educação.

O concurso é patrocinado pela Fundação da família de origem indiana Varkey, que chegou nos anos 1950 aos Emirados Árabes Unidos – na época um protetorado britânico e fizeram fortuna criando uma rede de escolas particulares para filhos de executivos e técnicos estrangeiros, que foram para a área contratada por empresas de petróleo.

Síndrome de Estocolmo - José Vicente J. Camargo





Síndrome de Estocolmo
José Vicente J. Camargo



Ele nasceu com um dom, o de saber lidar com as palavras: somá-las, subtraí-las e substituí-las para, num piscar de olhos, deixá-las fluir num texto sonoro com início, meio e fim para o deleite de quem as ouvisse:

Um orador nato!” - Dizia quem o conhecia.

Mas a mãe natureza, preservando a lei do equilíbrio, o dotou também de um segundo dom: a aversão ao trabalho! Pavor de ser comandado por outros e sua incompatibilidade com horários e rotinas.

Desde a infância foi aos poucos mesclando esses dons à seu proveito, isto é, conseguir seus objetivos com o mínimo esforço. Ainda no convívio familiar, convencia os pais, ambos trabalhando fora, a lhe darem uma mesada em troca de afazeres domésticos: lavar louça, aspirar a casa, limpar vidraças, podar e regar a grama e as plantas do jardim, coletar e selecionar o lixo nos contêineres e outros pequenos afazeres. Com o “de acordo” em mãos, prometia parte do ganho aos dois irmãos menores e aos amigos vizinhos para a execução das tarefas sob restrito sigilo, caso contrário, chamaria outros interessados, pois trocados fáceis para a compra de guloseimas e material para a montagem das pipas não era fácil de se obter naquele bairro da periferia. Se o serviço fosse de comprar o “dia a dia” nas vendinhas da rua, com dinheiro contado da mãe, ele mesmo se ocupava, pois jogava sua lábia de pais desempregados e irmãos doentes, para obter descontos e assim aumentar seu cachê.

Ao completar dezoito anos declamou versos de amor à mãe e aos irmãos, discursou lágrimas de agradecimento aos conselhos do pai e partiu para uma viagem de pinga-pinga em dezenas de cidades disfarçado de diferentes identidades, origem e profissão, vendendo ilusões à pessoas presas pela sua conversa convincente, prometendo o paraíso na terra em troca da aquisição, parte em dinheiro vivo, de títulos de ações  falsos. Quando o disfarce caia, ele já se encontrava a caminho da próxima cidade vítima. Na esteira dos papeis fraudulentos, ele deixava também um rastro de corações abandonados, curtindo as juras de amor ainda latentes.

No seu íntimo, porém, o verbo da ética, da justiça, da integridade vai se espalhando pelo sangue, atingindo a consciência até que, na próxima cidade, ao saber da aposentadoria do pároco doente, se vê, do dia para a noite, vestindo batina com cruz e bíblia, se apresentando na casa paroquial como o novo vigário designado. Cheio de ardor espiritual após ter ensaiado com coroinhas, carolas e beatos os rituais da missa dizendo ter se ordenado padre na igreja ortodoxa, contagia os paroquianos com mensagens eloquentes sobre o divino amor ao próximo, a fraterna solidariedade, a remissão dos pecados. 

O principal foco das suas oratórias era a condenação dos vícios da carne que impediam a entrada do cristão no paraíso da vida eterna: bebidas, jogatinas, bordéis, adultérios, sodomia, que representavam a força do diabo faminto por almas para alimentar o fogo do inferno. Tais impulsos deveriam ser podados de imediato para evitar a contaminação de terrenos saudáveis. Esse sermão, dado a eloquência das palavras do orador, foi convencendo aos poucos os moradores da cidade de forma direta ou através de familiares principalmente das mulheres e de amigos já convertidos. Formou-se então o “grupo do padre” vasculhando os cantos escuros, os becos contaminados, os estabelecimentos suspeitos, acusando e repreendendo os infiéis que estariam levando a cidade aos destinos de Sodoma e Gomorra.

Após a consolidação das medidas purificadoras da cura, o índice de criminalidade do município caiu drasticamente até poder dispensar os serviços da cadeia pública que passou a abrigar a Casa da Cultura com cursos de música, pintura e artesanato para crianças e adolescentes sob o lema “Mens sana in corpore sano”.

Foi então que a notícia bombardeou a cidade!

O vigário orador foi preso acusado de falsidade ideológica, isto é, nunca frequentou um seminário, muito menos fez os votos de pobreza e castidade ao Espírito Santo. Rapidamente uma multidão de fiéis se aglomerou em frente da delegacia gritando a libertação do messias:

 Com batina ou sem batina, queremos nosso líder de volta”!

O delegado, adepto das pregações do pastor, que o livrou de uma carga considerável de aborrecimentos, fez vista grossa e, num descuido proposital, já estava ele nos braços da multidão com tempo do delegado ordenar:

Para a igreja não, a lei não permite! ”

Então uma carola viúva se destaca na multidão exclamando: Vamos levá-lo para o cinema do meu marido, desativado desde sua morte. E assim, a cidade recebe um novo templo, sem o aval do divino, mas com um parlatório que versa sobre esperança, paz e fraternidade e sobretudo sobre as penitências dolorosas para os desvios da boa conduta, tal qual Síndrome de Estocolmo:

Quanto mais apanha, mais gosta!...”


Harmonia total - José Vicente J. Camargo



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Harmonia total
José Vicente J. Camargo


Gostava de ver os dois juntos! Tão diferentes fisicamente que ficava difícil acreditar que se entrosavam numa harmonia de alegria e paz:

O Luiz, baixo, moreno atarracado, meio careca, voz branda, modos gentis e calmo, mas sério. Filho único de pai e mãe médicos acostumado a ter tudo do melhor na hora que quisesse. Bom observador, memória invejável culminando num pragmatismo exemplar.

O Eduardo ou Dudu, tal qual taquara rachada: alto, magro, voz estridente, cabelos loiros esvoaçantes e um extravagante e irrequieto modo de ser e agir. Seus pais franceses, de prole numerosa, o educaram nas leis da natureza: livre, sem compromissos a não ser o do amor ao próximo, à natureza e aos seus objetivos na vida.

Ambos cursavam comigo o último ano da universidade onde ficamos amigos desde o início.

Nas férias de verão organizávamos uma viagem para lugares mais longínquos, longe da civilização do concreto, do barulho, do ar poluído onde o sabor da aventura e do imprevisto era mais acentuado.

Redes sociais ainda não existiam neste verão de 1970 quando, com o jipe Land Rover do Dudu, tentávamos vencer o desafio de percorrer os 1600 quilómetros da rodovia Belém – Brasília, ainda de terra, cortada por infindáveis “costeletas”, lombadas e “tops” assim chamados os aclives e declives bem acentuados que dificultavam o trafego sofrido dos caminhões. As chuvas de verão faziam do leito da estrada um mingau de barro.

Dudu dirigia o tempo todo com a cabeça pra fora dividindo o olhar deslumbrado da mata virgem com a atenção de escutar qualquer ruído estranho do motor. Vez ou outra soltava aos ventos gritos carregados de energia e alegria acompanhando os gestos frenéticos dos braços e das mãos na tentativa de manter o veículo aprumado na melhor trilha marcada no lamaçal.

Luiz, dividindo o banco traseiro com um baú improvisado como guarda roupa coletivo, comentava pausadamente as diferenças das paisagens citadinas com as da floresta fechada, concluindo que apesar da pujança da mata com seus segredos e mistérios, ele preferia o asfalto que poria fim a tortura da dor de costas proveniente dos solavancos e aos riscos do ziguezague do jipe no lamaçal entrecortando os caminhões carregados. Olha o relógio e pede uma pausa para o alivio das águas, prontamente aprovada pelos demais.

No meio das folhagens rasteiras ecoa o grito escancarado do Dudu: “cuidado com a cobra, as daqui engolem boi!”. Mas quem ficou com o prêmio sensação do dia foi o Luiz, que adentrando na mata um pouco mais, dá de cara com uma roda de caminhão, provavelmente o estepe, que se soltou com os baques das lombadas. Nos acena para vermos e sem muito entusiasmo pergunta se é azar dado que podemos passar por ladrões ou sorte se conseguirmos vendê-la. Dudu, de um salto levanta a roda, a examina e soltando mais um de seus gritos característicos exclama:

Tá em bom estado! Deve valer um bom preço. Olha em redor para marcar o lugar, a quilometragem e completa: no jipe não cabe! Vamos parar na próxima estação de serviço e procurar um caminhoneiro interessado em comprar. Com o dinheiro vamos caprichar no jantar e no pernoite nada desses banhos de canequinhas mirando estrelas...

Dito e feito! Vendemos o “achado” com desconto e demos um “up–grade” na pousada de cama, mesa e banho e no jantar de pratos típicos. Luiz foi esticar as costas doloridas numa cama que classificou de “King amazônico”, tomar seus remédios e anotar no seu diário as emoções do dia. Dudu ainda trocou copos com um frentista, intrigado em saber se o jipe era o último modelo fabricado pela Willys, pois nada parecido se conhecia por aqueles lados. A revelação o entusiasmou pensando na possibilidade de trocar o seu, ano 1956 inglês autêntico por um novo Willys nacional.

Este entusiasmo floresceu mais ainda quando, dia seguinte, continuando na trituração da estrada, Dudu rasga o vento com um palavrão de pânico:
O motor tá com ruído estranho! Vamos parar na próxima cidade que tem uma infraestrutura razoável Imperatriz distante uns seiscentos quilômetros do nosso destino.

Na oficina mecânica descobre- se o problema: Virabrequim!
Dudu grita seu palavrão preferido e completa: Esse não tenho em estoque! Preciso telefonar ao meu mecânico em São Paulo e pedir para que me envie por avião. Ainda bem que temos aeroporto aqui.

Luiz interrompe:
Nada de nervosismo! Não leva a nada. Como não entendo bulhufas de motor, fui conhecer a faculdade e lá conheci uns estudantes que moram numa república e me disseram que caso precisemos de hospedagem, podemos ficar com eles, pois, sendo férias, tem lugar vago. Portanto cama e comida, que podemos preparar na cozinha da república, não é problema. Além do mais, a cidade é a segunda maior do Maranhão com muitas trilhas para se conhecer o cerrado e outras tantas no litoral, no delta do rio Parnaíba, ponto turístico nacional. Acho até que temos de agradecer ao tal virabrequim que nos obriga a ficar.

Após essas ponderações, Dudu se acalma, levamos em três o baú em direção a república, não sem antes, passar pele telefônica e ligar ao mecânico que se prontificou a enviar a peça. Foram cinco dias que valeram as férias. Os estudantes que permaneceram na república nos apresentaram os cantos mais conhecidos da cidade, e também os menos recomendáveis, seus arredores de serrado, sua culinária e festas típicas. Dudu se esbaldou nas comemorações e foi o que mais distribuía endereço e telefone de São Paulo, para assombro do Luiz, imaginando a agonia dos pais dele, caso uma parte ínfima comparecesse.

O virabrequim chegou, foi montado e partimos rumo a Belém, mas não chegamos a fazer cinquenta quilômetros! Dudu, com o vento esfregando a cara, engole o tradicional palavrão e roga uma praga dos infernos ao mecânico: “Desgraçado! Me montou a peça errado. Eu bem que queria estar presente, mas quando cheguei já tinha feito o serviço. E tem outra, amigos! Telefonei ontem pra Sandrinha e ela me disse que o resultado do exame deu positivo. Para eu voltar logo para darmos a notícia aos pais. Para mim a viagem termina aqui. Como a maioria dos caminhões volta para São Paulo vazio, vou pagar um que me leve o jipe como carga. Vocês decidem se querem voltar comigo ou prosseguir de ônibus ou carona.

Não! Retruca Luiz. Viemos juntos e vamos voltar juntos! E digo de antemão que quero ser um dos padrinhos desse casório. E por falar nisso, ela disse de quantos meses está? Não deixe de fazer o pré-natal, importante nesse tempo infestado de insetos transmissores.

Para mim, até que gostaria de prosseguir a viagem, mas fiquei constrangido de quebrar aquela harmonia que tanto admirava e que só aumentou com Sandrinha e depois Eduardinho, que pelo choro gritante e pelo esperneio das mãos e pernas, não deixava dúvidas sobre quem era o pai...