Azarado - Ises A. Abrahamsohn


Azarado
Ises A. Abrahamsohn 

Alfredo Albuquerque olhou-se  no já manchado  espelho  de parede e sorriu. Uma bela figura de homem, este era o seu principal e único capital. Estatura mediana, atlético, queixo quadrado e rosto másculo. O bronzeado e as têmporas prateadas conferiam-lhe  um ar de afluência e  respeitabilidade.  Vestia-se com apuro com um dos dois trajes que ele chamava de  suas roupas de trabalho . Terno clássico, gravata e sapato social para ocasiões formais ou  para as esportivas  - camisa de jacarezinho beige – só usada profissionalmente – blazer azul e mocassins  italianos.  Ficavam pendurados, protegidas por sacos plásticos,  em antigos valetes de madeira.   Guarda roupa não havia e nem caberia no apartamento de sala e kitchenette, apelidado JK, num prédio decrépito do centro de São Paulo. 

Alfredo, ou Alfredinho, como era conhecido na área, já vira melhores dias.  Estava em maré baixa. A grana do último golpe estava no fim.   As duas últimas  pombinhas , alvos  de seu interesse, não cederam aos seus cantos. Antes delas,  houve a  Isolina, há mais de ano. Sentia até alguma saudade  da  viúva  bem apanhada, moradora  em Higienópolis.  Esta lhe rendera um bom dinheiro e até um carro seminovo que ele conseguiu passar adiante e embolsar a grana  antes que ela desse queixa.  Mas, elas raramente davam e a Isolina não seria diferente. Envergonhadas, não contavam nem aos filhos. Às vezes  contavam  apenas  a uma amiga próxima e eram estas abelhudas que ele mais temia.

O seu alvo agora era a Ester. Ester  Katchinsky: ele aprendera a pronunciar corretamente o nome polonês e até brincava com ela:

_ “Minha Katinha, minha Gatinha  Ester ...”

Tinha conseguido fisgá-la numa confeitaria do Shopping do mesmo bairro, um dos seus territórios de caça.  Tinha  espreitado a vítima em algumas ocasiões: sozinha ou com amigas, velhotas abastadas como ela. Devia ter  uns oitenta   anos, mas aparentava dez menos. Roupas discretas, certamente compradas no exterior,  acessórios caros e na última moda. Alfredinho farejou uma bolsa Prada legítima.  Trazia sempre os cabelos  impecavelmente loiros e arrumados    assim como as unhas pintadas de vermelho vivo.  A tese de Alfredinho, defendida nas rodas dos botecos, era que a cor das unhas sinalizava a disponibilidade   das mulheres para um eventual novo parceiro: esmaltes vermelhos denotavam uma chama interna ainda  vital e impetuosa. Fugia daquelas que exibiam unhas  cor de rosa ,  ou  pior, as sem  esmalte!

Ester sucumbiu à lábia  do vigarista.  Porém não era tola. Quando mais nova  tinha sido proprietária e gerenciado uma bem sucedida livraria. A livraria tinha sido vendida  há uns seis anos após a morte do marido que era seu sócio.  Ester  achou o  rapaz  uma boa companhia  que aliviaria a sua solidão. Os filhos eram por demais ocupados e os netos, já adultos, não precisavam  mais  de  seus  cuidados e afetos.  Tinha amigas, é certo, mas  estas  não queriam ou não podiam viajar. Ester ainda tinha muitos interesses na vida: gostava de ler, de cinema, de se vestir  bem e,  sobretudo, de viajar. Ester , entretanto, não contava com  as armadilhas  do coração. Em um mês se apaixonou pelo Alfredo.  A razão lhe dizia que o rapaz  era um aproveitador,  mas  ter alguém  atencioso e companheiro a seu lado  era bom demais. 

Queria apresentá-lo à família, agora que haviam acertado um giro pela Europa, naturalmente bancado por ela. O Alfredinho se esquivou: detestava parentes e tinha lá suas boas razões.  Antes da viagem, renovou o seu guarda roupa. Afinal, confidenciou a Ester, que o acompanhou  às compras (e pagou) , iriam de navio, na primeira classe, e ele precisava se mostrar vestido à altura.

 O problema básico do malandro era conseguir algum dinheiro em espécie.  A Isolina era mais crédula e caíra no conto do carro.  Não lhe ocorria no momento outro plano que fosse tão  rentável e seguro.  Daria o bote quando voltassem da Europa.

A viagem transcorreu bem. Alfredinho se muniu do habitual  estoque de Viagra para essas ocasiões e baixou  uns vídeos eróticos no celular. Ester estranhava as demoras dele no banheiro da suíte antes de irem para a cama, mas o Don Juan se justificava que queria estar limpinho e barbeado para ela.

Voltaram de avião.  Alfredo maquinando o golpe do carro para quando chegassem a São Paulo.  Não chegou a aplicá-lo. Logo na área de desembarque dois policiais à paisana o esperavam.  Alfredinho tivera muito azar. Uma das filhas de Ester era amiga da filha da Isolina, que,  mesmo envergonhada, decidira  dar queixa  do golpe do gigolô.


Alfredo amargou um mês de cadeia. Não tinha dinheiro nem para o advogado mais barato.  Só lhe sobraram as roupas novas  que poderia usar em um novo golpe.  Higienópolis?  Nunca mais!

O TRABALHO DAS FORMIGAS - Jeremias Moreira




O TRABALHO DAS FORMIGAS
Jeremias Moreira

Apenas quando o graneleiro “Florence D” ultrapassou as vinte e duas milhas náuticas, limite do mar territorial brasileiro, o grego Nicholas Iacoca suspirou aliviado. Ele havia embarcado no Porto de Santos para exercer a função de taifeiro, no cargueiro.

Seis meses antes, então com seu verdadeiro nome, Mauri Biondi, procurou um falsificador que lhe providenciou dois passaportes. Um de nacionalidade grega, com o nome Nicholas Iacoca. Outro, irlandesa, em nome de Liam Doherty. De posse do grego, procurou a Companhia Marítima e inscreveu-se numa lista de tripulantes com destino a Port Elizabeth, na África do Sul. Tudo parte de um plano que foi elaborado durante o carnaval carioca do ano anterior.

Havia cinco anos que Mauri trabalhava como gerente financeiro da Belize Imports, uma importadora e exportadora de vinhos, azeites, café e cacau. A empresa utilizava uma conta secreta no Credit Suisse para realizar as transações no exterior e evitar pagar impostos no Brasil.

Mauri acalentava a fantasia de descobrir o numero dessa conta secreta e meter a mão em parte dessa grana. No entanto, não passava de fantasia.   

A ideia começou a ganhar corpo quando, no carnaval, conheceu Jane Rogers, uma loira tristanita. Viveram um tórrido romance enquanto a moça permaneceu no Brasil. Foi a primeira vez que ouvira falar de Tristão da Cunha, a ilha mais isolada do Atlântico sul. Apenas um ponto no oceano, com população pequena e nenhuma oferta de trabalho, a não ser doméstico. Jane queria mais que isso, então foi estudar economia em Londres e agora era importante executiva do South African Reserve Bank, em Port Elizabeth, na África do Sul.

Entre amores e folias, falaram de suas vidas. No meio surgiu assunto dos respectivos trabalhos. Foi quando Mauri, num indiscreto arroubo, mencionou a cobiçada conta no Credit Suisse. E começam a divagar sobre essa possibilidade e a maneira de efetuar um golpe. A partir desse momento tornaram-se cúmplices. A ideia deixou de ser fantasia e quando deram conta, elaboravam um plano de ação concreto.

A mãe de Mauri era filha de gregos. Por isso ele conhecia um pouco da língua e da cultura. Também falava bem o inglês. Então, deveria conseguir os dois passaportes. Como usaria o grego para viajar, deveria criar um personagem que viera pequeno da Grécia para o Brasil. Foi o que fez. Enquanto isso Jane abriria duas contas no South African Reserve Bank. Uma, na agência das Ilhas Virgens, em nome do grego Nicholas Iacoca. Outra, em nome do irlandês Liam Doherty, na agência em Port Elizabeth.

Jane também deu dicas de como Mauri poderia conseguir o numero da conta da Belize Import, no Credit Suisse. Seguindo as orientações, depois de diversas tentativas, ele conseguiu.

Quando recebeu a confirmação da Companhia Marítima, de que fora selecionado como tripulante no navio “Florence D” e que partiria dentro dez dias, ele deu continuidade à execução do plano. Pediu licença por motivo de saúde e um dia antes de embarcar transferiu trezentos e cinquenta mil dólares do banco suíço para o sul-africano, nas Ilhas Virgens, na conta de Nicholas. No mesmo dia transferiu o dinheiro para a outra agência, a de Port Elizabeth, na conta de Liam Doherty.

Por isso o alívio que sentiu a se ver em alto mar. Quando descobrissem o rombo e somassem dois e dois para identificar o autor, já estaria longe. No fundo sabia que tramaram uma teia perfeita que dificilmente seria  descoberta em poucos dias. Mas, cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

Quatro dias depois o “Florence D” atracou no cais sul-africano. Conforme o combinado, ainda usando passaporte grego, Mauri se hospedou no King Eduard Hotel, em Belmond Terrace. Na recepção do hotel havia uma passagem, num envelope, em nome de Liam, para o embarque na traineira de abastecimento, que partiria no dia seguinte com destino a Tristão da Cunha.

Os dois não deveriam ser visto juntos. Simulariam conhecerem-se na traineira. Alegando que a mãe estava doente, Jane se licenciou do banco e comprou as duas passagens.

A diminuta população da ilha era descendente de ingleses, por isso não foi boa ideia o segundo passaporte com nacionalidade irlandesa. Os dois povos sempre tiveram contendas. Jane não pensara nisso.  Mas como Liam estava como seu convidado a situação fora contornada. Também não deveriam ficar muito tempo na ilha. Apenas o tempo da poeira baixar. E Jane era uma filha do lugar. Contribuía bastante para a prosperidade de sua gente. Chegaram em Edimburgo dos Sete Mares, o único povoado, e Mauri, isto é, Liam fora apresentado como um pretendente e como tal conheceu quase que o total dos 297 habitantes. Nos dias que se passaram não havia muito que fazer. Mauri sentiu uma maneira estranha no jeito como o tratavam. Era como se soubessem que sua estada seria curta e única. Mesmo como suposto irlandês nunca fora provocado. Pareciam saber e participar da farsa. Durante esses dias passeavam bastante e era no pequeno e distante Park Lane onde conseguiam ficar na intimidade e fazer amor.

Jane havia levado a papelada formal do banco para que Liam assinasse.
Dois dias antes de retornarem para Port Elizabeth, Jane propôs um passeio até o Poço das Almas:

− Um lugar de purificação! – ela falou.

Até então Mauri esteve relaxado e não pensara no que estavam fazendo. Sabia que, fatalmente, seria alvo de uma caçada sem fim. Mas, não pensava nisso. Para ele a vida junto de Jane era o futuro e nada abalaria isso. Mas, ao ouvi-la falar em purificação alguma coisa abalou sua mente. Pela primeira vez um sentimento de culpa se apossou dele.
Pela manhã saíram em direção ao Poço das Almas. Chegaram a um planalto coberto por relva densa. Caminhavam lado a lado e se esforçam para abrir espaço entre a erva alta. Jane o desafiou que chegaria primeiro. Mauri acelerou e, a cada passo, se adiantava e deixava-a para trás. Súbito o chão faltou para Mauri e ele desabou no vácuo. Precipitou-se até seu grito não ser mais ouvido.

Ele chegara ao Poço das Almas!

Jane voltou para casa. No dia seguinte partiu para Port Elizabeth.

Como a formiga, suprira seu povo por mais uma temporada!



Carlos Drummond de Andrade - Caso Pluvioso (Paulo Autran)

Peripécias da Vida - Ledice Pereira


Peripécias da Vida
Ledice Pereira

Lúcio, vinte e oito anos, engenheiro civil formado pela Unicamp, trabalhava há quase três  anos na Engetora Construções e Reformas Ltda., em São Paulo.

De uma família de classe média aprendeu com o pai, para ele um Deus, a valorizar o trabalho. Responsável e cumpridor de seus deveres vislumbrava para si um caminho sem pedras.

Fora adotado aos três anos por Laura, assistente social, que trabalhava na Vara da Infância e Juventude da cidade de Valinhos.

Ela se sensibilizou com a história do menino, cuja mãe faleceu no parto da segunda filha, esta logo adotada por uma família de São Paulo.

O pai nunca apareceu e, pelo visto, não havia mais familiares. As crianças foram deixadas ali por vizinhos.

Os casais na fila de adoção optavam por  bebês Johnson,  olhos claros e recém-nascidos,  e Lúcio ia ficando.

 Laura, que já tinha duas meninas, foi se apegando àquele menino gorducho e simpático, de olhar de esmeraldas,  que sorria para ela sempre que a via e convenceu Jorge a adotá-lo.

— Onde comem dois, comem três, não acha?

O processo de adoção foi tranquilo, já que ela trabalhava ali, gostava de crianças e o casal tinha uma vida irrepreensível.

O menino jamais deu motivos para que se arrependessem. Era estudioso, amoroso, alegre e querido por todos. Um príncipe!

Nesse período em que veio trabalhar em São Paulo, sempre que possível, ia visitar os pais e as irmãs.

No feriado da Páscoa, contou para as irmãs que estava de olho numa colega de trabalho e por ser muito tímido, ainda não tinha tido coragem de abordá-la.

As irmãs, curiosas, quiseram saber tudo, como ela era, como se chamava, como a tinha conhecido, quantos anos tinha, enfim. E o estimularam a encorajar-se.

Lúcio criou coragem e convidou Sueli para sair. Ela, que trabalhava no Departamento de Pessoal, estava no segundo ano de Administração de Empresas.

Contou a ele que, depois de repetir alguns anos, havia cursado dois anos de Pedagogia, mas concluiu que não era disso que gostava e prestou vestibular para Administração. Não era muito dos estudos e sentia-se tal qual um peixe fora d’água.

Tinha um relacionamento difícil com a mãe que, por ser um pouco mais velha, não compreendia sua juventude  e só sabia criticá-la. O pai vivia para o trabalho e não se interessava muito por ela.

Saíram algumas vezes, conversavam muito, mas aquele interesse inicial foi diminuindo. Ele percebeu que sentia amizade e carinho por ela. Um pouco de pena, talvez.

Quando ele contou-lhe que tinha sido adotado em Valinhos, mas que adorava os pais e as irmãs, notou sua perplexidade. Ela também fora adotada ainda bebê e só sabia que também era da cidade de Valinhos.
Era mesmo muita coincidência e Lúcio resolveu convidá-la para ir com ele  no próximo fim de semana conhecer seus pais.

Laura já estava aposentada, mas tinha amigos que continuavam trabalhando no mesmo lugar. Assim, consultando os livros de adoção e procurando pelos nomes dos pais adotivos de Sueli, constatou o que já desconfiava: que eles eram irmãos.

A vida às vezes apresenta caminhos tortuosos para, finalmente, unir ou separar pessoas.

Neste caso, uniu dois irmãos que já sentiam uma afeição mútua.

MEIA NOITE NA HABANA - Carlos Cedano


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MEIA NOITE NA HABANA
Carlos Cedano

— Ei, você aí! - Chamou    alto Hemingway  dirigindo-se à plateia.

Inicialmente os espectadores ficaram desnorteados! Ernest percebeu a desorientação:  

        —  É aquele moreno com cara de hispânico sentado na terceira fileira.

        —  Sou eu? - Perguntei ansioso.

—  Sim você mesmo! Venha aqui e participe do filme, vou lhe mostrar coisas do arco da velha!

Pulei no palco e duvidei por um instante.

        —  Venha na direção da tela, entre sem medo, entre com fé e você vai ver que num minuto se acostuma.

Cheguei perto dele e senti que já estava “com vários copos de vantagem”.

         — Gosta de mojito? - Perguntou-me Hemingway logo de cara.

        —  Nunca bebi. -  respondi.

        —  Oh meu amigo o que você esta perdendo! Vamos, vou te levar à “La Bodeguita del Medio” o mojito de lá é de conquistar qualquer um logo na primeira vez.

Entramos num minúsculo lugar bem no meio do quarteirão com umas quinze pessoas, o local estava “bombando”! E percebi que as pessoas já estavam acostumadas com a presença de Ernest.

Antes de me apresentar ao grupo discretamente me perguntou minha nacionalidade.

        —  Sou peruano e é minha primeira vez em La Habana ou no Brasil, não sei! Estou confuso. -  respondi.

Ernest se dirigiu aos amigos presentes entre os quais reconheci Joan Miró, Salvador Dali, Pablo Picasso e Scott Fitzgerald que mal olharam pra mim e continuaram bebendo ou conversando. Pablo estava quase deitado sobre a mesa e a ponto de cair. Miró quase roncava na sua cadeira, Scotty batia um papo “olho nos olhos” com um belo negão e o único que guardava a compostura era Dalí bebendo água mineral e observando, parecia não deixar passar nenhum detalhe do que acontecia!

        Gostei do mojito.  Já era meu segundo quando comentei com Ernest que olhando para o barman disse-lhe:

         Outro “mojito” pra meu amigo...Qual é teu nome? Perguntou-me arrotando na minha cara.

         Chayo. - respondi.

        Chayo, acho que temos que sair daqui. Têm muitos bêbados e não suporto este ambiente. Mas, antes de sair vamos beber uma “saideira”. O que acha?

        Ok! Ernest. -  respondi já bastante descontraído e também sob efeito dos  “mojitos”.

Bebemos e saímos do bar, caminhamos na direção da Praça da Revolução onde no fundo avistamos a enorme foto do “Che” Guevara e começamos atravessar a ajardinada praça em ziguezague, encostados um no outro pra não cair. Algo curioso acontecia, a medida que nos aproximávamos do grande retrato. Ele parecia diminuir de tamanho, e descia. Continuamos caminhando e falei:

        Ernest! Vamos bater!

        Continua caminhando homem de pouca fé. Continua! Gritou Hemingway.

Continuei,  e acordei na minha poltrona já com poucas pessoas na sala. E comecei a gritar:

Juro que não sonhei, é a pura verdade! - E as pessoas me olharam sorrindo com condescendência até que alguém disse: Coitado, está de porre!

Cartas de outros tempos - Ises de Almeida Abrahamsohn



Cartas de outros tempos
Ises de Almeida Abrahamsohn

— ”Tenho um segredo para te contar. Encontrei cartas do vovô Eurico escondidas no sótão. Fiz ontem uma grande limpeza na casa e estava disposta a jogar a maior parte daquelas velharias fora.“.

Quando vovô Eurico morreu, a nossa nona não deixou que jogássemos fora o conteúdo da escrivaninha. Foi  colocado  em uma daquelas malas de navio que ela ainda guardava da vinda da Itália. Tampouco quis selecionar o material a ser guardado. Dizia que nós, as netas, poderíamos algum dia, quem sabe,  vir  a conhecer  os  tempos  de um passado  sobre o qual,  em vida,  ele silenciara.

— “Você se lembra daquela caixa bem antiga de biscoitos - daquelas de metal- a marca era Aymoré - e tinha a estampa de uma menina com o urso e a boneca tomando chá com biscoitos?  Pois é ! Lá ele guardou  algumas  cartas e  fotografias.“

A caixa em si me fez recuar até a nossa infância. Ficava sobre a geladeira, e nela a mãe guardava biscoitos. Vovô  Eurico aparecia todos os dias lá pelas quatro e meia para tomar chá e mamãe colocava a lata na mesa.

Nós ganhávamos uma xícara de leite com Ovomaltine e dois biscoitos. Vovô  tinha livre acesso à caixa e, sem que mamãe visse, nos dava mais um  ou dois.  ”Mangia que te fa bene...”   era o refrão. Quando chovia e não podíamos brincar lá fora, ele contava histórias da vila onde crescera. Lembro-me das vezes que ele, sem se dar conta de que éramos crianças, falava das privações,  da pobreza e da guerra que passara no  seu amado Piemonte.

Hesitei ao pegar os envelopes.  Teria eu o direito de entrar na intimidade de meu querido nono?  Mas lembrei da vovó Nunzia  e ela queria que um dia lêssemos as cartas.

 Abri o primeiro envelope: era endereçada a Eurico Casella com endereço em  Ribeirão Prieto , escrito assim mesmo. A remetente era Isabella Montini, da cidade de  Carmagnola.  Eu sei que a vila do vovô ficava  lá  perto.  

O meu italiano está meio esquecido,  mas deu para ler a primeira carta de  março de  1921.

As frases eram curtas e a  linguagem simples. A moça era namorada do nono. Queria saber como ele estava passando, falava de  solidão e de seu amor e terminava perguntando quando ele enviaria o dinheiro para a passagem dela.

Li então a carta datada de  um mês depois.  Nesta, frases urgentes relatavam  a  gravidez  e  pediam ao nono para trazê-la  ao Brasil .  Queria  que a criança  tivesse um pai!

Coitada da Isabella! O nosso  avô  pisou feio na bola ! A seguir deve ter havido outras cartas,  mas ele só guardou esta de 1924.  Nela, Isabella  enviara  a foto de uma linda menina , carinha de anjo de Rafael. Aliás, cara do avô Eurico, os mesmos olhos. Foto em preto e branco,  mas suponho serem   do mesmo azul  que  nem eu nem  a mana herdamos.  A garotinha chama-se Luna.

Finalmente há uma última carta de 1932. É curta e claramente de despedida  final.  Isabella  casou-se  (ainda bem),   e tem outro filho , Renzo,  de dois anos. Envia  outra  foto  de Luna  que conserva, mesmo adolescente,  o  rosto angelical emoldurado por tranças louras  e  iluminado por  um sorriso travesso. O endereço agora é de outra cidadezinha, Chivasso, nos arredores de Turim.

— “Então, querida mana... Nossa mãe teve uma meia-irmã  e nós uma meia-tia  vivendo na velha Itália sem que soubéssemos.  Se ainda viver, terá 95 anos  e  devemos ter   primos  segundos  por lá.


Acho que vovó Nunzia sabia  de Isabella e de Luna, mas mamãe certamente  não. Vô Eurico foi várias vezes à Itália  nos anos cinquenta e sessenta. Será que Luna algum dia encontrou o pai? “

Invasão de domicílio - Ises de Almeida Abrahamsohn


Invasão de domicílio
Ises de Almeida Abrahamsohn

Estranhei quando cheguei e vi a porta do corredor entreaberta. Tinha certeza de que a havia fechado ao sair pela manhã.  Mas não lhe dei mais atenção e me atirei no sofá. Vinha trabalhando como escrava durante toda a semana. Adormeci  na primeira página do jornal.  Acordei com a luz dura do abajur me cegando.  A soneca de uma hora me desanuviou a mente. Deixei a vista  passear pela sala. Aqui e ali percebia sutis mudanças.  A leve camada de poeira na estante, deixada pela minha distraída faxineira, tinha sido perturbada. As pastas da primeira prateleira haviam sido deslocadas. Fui direto  ao computador  que me lançou de sua tela azul olhares absolutamente impolutos.  Os arquivos importantes lá estavam protegidos pelas senhas. Nos outros, tudo normal. No entanto, o gavetão inferior da escrivaninha  mostrava um ataque meticuloso não suficientemente  disfarçado. Duas  pastas estavam  fora do ordenamento  habitual.  Uma delas era referente a um recente crime ocorrido  em Laranjeiras.

Como delegada, aprendi ao longo da carreira a ser  organizada e observante. Fiquei muito abalada. O invasor possuía a chave do  meu apartamento. Já eram oito da noite. Mesmo assim liguei para o meu amigo Matos. Grande amigo, o Matos. É  também o melhor detetive que conheço.  Eu o trato pelo prenome, Heitor, que apenas uns poucos amigos mais chegados  sabem e usam;  ele me trata por  Maíra. Seguindo o seu conselho me hospedei em um hotel e chamei um chaveiro para trocar o segredo.  Combinamos sua vinda ao apartamento para o dia seguinte  cedo.

Lá estava ele, pontual e, como sempre, cuidadosa mas inadequadamente trajado  para o calor do Rio.  Terno  cinza, gravata discreta  e resplandecente camisa branca de abotoaduras. A pequena barriga proeminente denuncia  seu gosto pelo chope  de fim de tarde. As únicas concessões ao modernismo são os óculos escuros e um panamá de aba curta no alto verão.  

Mas isto não interessa. Matos tem  faro de cão de caça e começamos a busca metódica  no apartamento . Quem lá esteve não achou o que queria, mas agora sabíamos o que procurava.  A pasta com os dados do crime de Laranjeiras tinha sido vasculhada.  Em vão,  pois  continha apenas  dados burocráticos,  relatórios de autópsia e dos achados na cena do crime. Nada de secreto.  A pasta onde eu  tinha  guardado  os  materiais  realmente importantes   estava na estante  camuflada entre pastas  inocentes .

A vítima do crime de Laranjeiras era uma garota, jovem estudante de direito. Tinha sido esganada  aparentemente durante um encontro  amoroso no próprio apartamento.  A porta tinha sinais de arrombamento  e  alguns  poucos objetos, inclusive o computador, haviam sumido.  O namorado  da estudante foi identificado: era um político conhecido da baixada fluminense,  cerca de uns vinte  anos mais velho.  Interrogado, possuía um álibi que parecia sólido.

Entretanto eu não me convenci com a cena do crime e fui atrás da biografia do namorado. O cara era um tal  Alaor  Lima  Jr, advogado, mineiro  da cidade de Passa Quatro, no circuito das águas. Era filho de  um antigo prefeito. Ingressara na política já aos vinte três anos  como vereador. Findo o mandato, curiosamente   não  continuou na política local. Apurei que  se mudara para  Mesquita onde passara a  exercer  advocacia barata.  Candidatou-se a vereador  pela cidade, cumpriu dois mandatos e conseguiu se eleger deputado estadual .  Está no segundo mandato e  mora    em  Niterói mas  mantém o seu escritório  de base  em Mesquita.  Isso tudo consta da ficha oficial do sujeito.  Mas  uma  consulta rápida  mostrou que tem ligações estreitas com o jogo do bicho local e possivelmente com o tráfico. 

O que havia na pasta da estante  eram recortes do Diário de Caxambu  de cerca de vinte anos atrás  sobre um crime que  causara comoção na cidade: moça,  dita de família,  fora encontrada  em um flat, esganada  após encontro amoroso.  As matérias  relatavam  depoimentos de colegas que  sugeriam que a vítima teria um namorado  recente de fora da cidade.  O crime nunca foi solucionado.  

Eu já tinha  acionado a polícia mineira para conseguir  os depoimentos  ou algum  material  colhido no inquérito, se é que ainda existiam.  De qualquer modo,  não teria sido o tal Alaor quem vasculhou o meu apartamento, mas algum seu  assecla.  Matos, embora  descrente,  aplicou o spray  detector de impressão digital. Como  imaginamos , o  invasor usara luvas.

Matos  sugeriu  algumas linhas de investigação  que  eu também já tinha cogitado.  O problema era   que  eu não conseguiria   ir atrás.  Tudo leva tempo e eu estou com outros vinte casos  esperando  que também  têm que andar.  Eu já lhes contei  que  o Heitor, o Matos, é um grande amigo.  Confidenciou-me que  precisava de uma semana de descanso e  hidroterapia. Dei risada e lhe disse que a delegacia não tinha grana para bancar  a viagem mas ele retrucou que não me preocupasse.  E lá foi ele...

Dia sim, dia não,  me ligava em casa à noite para  o meu celular de chip novo que, por precaução, troquei após a invasão.

Hospedou-se  no melhor hotel de Caxambu, e lá mesmo começou a investigar.  Hotéis tradicionais têm ainda aqueles empregados  antigos que estão lá desde sempre. Discretíssimos, sabem de tudo e adoram falar dos velhos tempos de glória do estabelecimento e da estância.  Matos  logo os conquistou: reconheceram nele alguém das antigas estirpes pelo modo de se vestir e de falar. Combinou um encontro num bar local para depois do jantar. Comprou-lhes duas garrafas da tradicional cachaça mineira servida no hotel  e  deixou-os falar.  Sim, lembravam do caso.  Até conheciam a família da moça. Jovenzinha, dezoito anos se tanto.

Matos verrumou: ”E o namorado que diziam ser de outra cidade ?”

_ Não era daqui, confirmaram  os dois.

 Não era conhecido. Não se conseguiu descobrir a identidade, foi  a informação dada. 

Matos  insistiu:  “Mas ninguém estranho circulou na cidade na época? Numa cidade tão pequena não iria passar  desapercebido !”

Um deles, tomando um golinho do  aperitivo  local  falou: 

“A cidade tem muitos turistas, congressos, o delegado da época disse que não dava para  identificar  ninguém. Mas eu ouvi um papo de que  o Abdias,  da oficina  mecânica perto  da fábrica de doce de leite,  tinha, na época do crime, atendido  por duas vezes um freguês  cujo carro  era um Alfa-Romeo importado .  O Abdias confidenciara que nunca tinha visto um,  nem de longe, e que depois nunca mais o vira.  Dos  turistas  eu sei não era, que estes  usariam a oficina do Lelo  na cidade se o carro tivesse problema.  Muito menos era dos congressistas; estes , já se via logo,  não ganhavam para tanto.  Mas o Abdias  disse e repetia que não lembrava da placa“ .

Matos   ligou no dia seguinte para dizer que iria até Itajubá.

O tal Abdias tinha se mudado com a família para  aquela cidade , onde alegou que moravam parentes , cerca de uns três meses após o crime e lá tinha aberto  uma nova oficina .

Em Itajubá,  se tivesse sorte,  acharia a oficina e o homem do qual tinha o nome e o sobrenome. 

Teve sorte.  O mecânico, agora aposentado, atendia  na venda de peças  e o filho tocava  os  consertos  e  o  negócio.  

Mas foi difícil extrair algo do velho  Abdias.

 Matos chutou:

_ Seu Abdias, sei que passaram muitos anos, mas a placa daquele Alfa que apareceu lá em Caxambu  era de Passa Quatro, não era ? 

O Abdias  empalideceu.  Negou, refugou,  mas,   pressionado, finalmente acedeu.
_”Não digo mais uma palavra.”

Faltava saber  o que acontecera com o material  colhido na cena do crime.  O antigo delegado estava em outras paragens.  De volta a Caxambu,  o  detetive soube que passados  dois meses  do crime a delegacia, ou alguém de lá, enviara a caixa toda para  Juiz de Fora. 

Ligou  à  noite com voz cansada: 

_ “Estou  bloqueado, Maíra. O material  que você queria está em Juiz de Fora.  Você  mesma é quem tem que requisitar. Vou descansar  uns dois dias e volto ao Rio.

Requisitei o material de Juiz de Fora.  Tinha um antigo colega da Faculdade trabalhando lá.  Achar algum material após tanto tempo seria muita sorte.  O colega ajudou e em uma semana mandaram-me a caixa  . 

Fui pessoalmente ao médico-legal  para a abertura da caixa.  Eu e Renata,  minha amiga  perita, finalmente achamos.  No fundo da caixa,  restos de uma camisinha ressecada  que se esfarelou ao ser colocada no  tubo estéril de coleta.  Abracei a amiga e ambas demos vivas  pela velha  camisinha  desintegrada !

_” Sem problemas. Material mais que suficiente para o DNA.   Ligo para você  em cinco dias  com a comparação  das  amostras, esta e a do caso das Laranjeiras.”  Confio na  Renata.

Pelo meio da semana foi  o Matos  que me ligou.

_”Estou de volta ao Rio. Que tal um chope de fim de tarde ? Estou  desidratado. Só havia água e cerveja de garrafa em Caxambu” 

Aceitei na hora. Marcamos  para  a  tarde sexta-feira. Já teria  a resposta de Renata.
Consegui  chegar ao boteco do Gouveia  só às  sete da noite. Lá estava ele em frente ao terceiro chope e aos bolinhos de bacalhau. Tenho de reconhecer, os  do  Gouveia   eram divinos... Feitos lá mesmo. Mas o Matos não queria saber  minha opinião sobre os bolinhos...  Dei-lhe  um beijo estalado em cada bochecha e  disse:
Heitor, hoje eu pago a conta. A Renata  me ligou  agorinha  mesmo.

Tan.... Tan... Taaan....  Os DNAs bateram. Apanhamos o tal Alaor!

Agora é só chamá-lo  para  vir depor na delegacia  como se fosse  rotina de investigação  e  conseguir  a amostra de saliva . Se recusar, teremos que ir ao juiz. De qualquer modo, já  ficará em detenção provisória.

A BEM ACHADA MALA AMADA - Oswaldo U. Lopes


A BEM ACHADA MALA AMADA
Oswaldo U. Lopes

       Pedro Henrique Mussarabe era dos últimos comerciantes turcos do res do chão da Rua 25 de março. Em volta só coreano. Onde ontem se ouvia árabe ou safaradin hoje era tudo falado em tom monocórdico. Passara-se do gutural áspero para o prosaico tom atonal.

        Perdeu-se qualidade nas peças e ganhara-se na quantidade de produtos baratos. Pedro Henrique sabia de onde vinha, pai e mãe libaneses, cristãos, emigrados de uma das inúmeras perseguições e confusões do oriente próximo que agora todo mundo chamava de médio, esquecendo-se de que médio era o Siri Lanka (antigo Ceilão)

        Havia, com ajuda de amigos, se estabelecido entre conterrâneos (vindos da mesma terra), conlinguases (falavam árabe) e conempresários (todos comerciantes), ou seja, todos descendentes dos etruscos, embora fossem chamados de turcos por causa do passaporte otomano.

        Os vizinhos de lado também eram errantes, moviam-se frequentemente e sempre carregavam consigo suas mercadorias, seus signos e costumes, a Torah e suas crenças, eram os judeus. 

        As vezes o clima esquentava, mas o negócio falava mais alto, afinal o oriente médio ficava longe e embora muitos tivessem parentes que ainda lá viviam, se começassem a se matar ali mesmo, ia ser uma carnificina doida. Alias o que mais os dois lados temiam era o exercito islâmico e sua absurda radicalização.

        Mas qual era o sonho de Pedro Henrique o turco que ficara para  trás? Ter uma loja especializada em tecidos caros num andar, não mais alto que o terceiro, para freguesa usar escada se necessário, nos prédios do entorno para onde se haviam mudado os demais turcos. Clientela não faltava o que faltava era grana.

        Ai apareceu a mão de Alah, perdão de Deus que Pedro Henrique era cristão. Ia pela estrada de São Roque buscar a mulher e filhos num sitio quando furou um pneu. Pão de pobre sempre cai com a manteiga para baixo.

Acostamento, mato alto, desgraça pouca é bobagem, onde vou achar uma madeira para calçar o macaco. Não achou a madeira, achou uma mala, pequena, dessas antigas, fechada e em bom estado de conservação. Não era muito pesada, talvez pesasse algo como um pacote de açúcar.

Não foi difícil de carregar nem de abrir, dentro tudo verde e cinza, não, não eram adereços de escola de samba, eram notas de cem dólares. Colocou na parte de trás da perua.

Por fé de ofício Pedro Henrique sabia muito sobre elas. Pelo peso estimou que ali houvesse perto de quatrocentos mil dólares. Brincava que a segunda lição que seu pai lhe ensinara era que desde tempos muito antigos uma nota de cem dólares pesava uma grama. Quatro quilos é  igual a quatrocentos mil dólares. Ah, não esquecendo a primeira lição fora a clássica: “Não confiar nem na papai” e dera com a cara na grama. Até que seu pai gostava dele conhecia amigos que tiveram a primeira lição no cimentado.

Bem ali estavam US$ 400.000,00. Origem: tráfico. Quem perdeu não ia querer achar para não ter que explicar. Como aqueles aviões abandonados  recheados de cocaína.


Devolver para quem? Entregar a policia só ia dar aporrinhação, suspeitas e outras besteiras além de aparecer na primeira página do jornal e o infeliz proprietário saber quem fora o imbecil que achara a mala. Estava ali a chance do primeiro andar do prédio ao lado. Ia por a mala no armário da garagem e ia ficar sacando devagar que nem uma poupança. Adeus armarinho, como vai loja fina de tecidos!