Master Chef Brasil - José Vicente j. Camargo


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Master Chef Brasil
José Vicente j. Camargo

Minha mulher e eu decidimos, logo de início, não termos televisão no quarto de dormir. Portanto a telinha fica na sala para compartir. Até agora, fora alguns percalços sem sequelas, a paz reinou no ambiente. Tem alguns programas que são de preferência pessoal, mas nada que não se possa chegar a um acordo do tipo: hoje você me acompanha nesse, amanhã eu te acompanho naquele. Por exemplo, ela não perde um programa do “Master Chef Brasil” por ser fã da Paola Carosella. Interessante para quem, quando casou, mal sabia fritar um ovo. Mas entusiasmada, foi aprendendo e crescendo na arte da culinária. Só faltava um pouco de experiência na composição do cardápio. Me lembro quando convidei um colega de trabalho alemão, recém-chegado, para jantar em casa. Ela serviu de entrada, para esquentar a noite fria: sopa de abóbora; no prato principal: purê de abóbora acompanhando a carne assada; e, de sobremesa: compota de abóbora. O alemão, meio constrangido, declinou da sobremesa dizendo-se satisfeito. Dado a insistência para somente provar, abriu o jogo:  confessou que a abóbora lhe lembrava os últimos anos da infância passados no tempo da guerra, quando sua mãe, pela falta de muitos alimentos, alimentava a família principalmente de abóbora, ainda disponível nos mercados. De tanto comer a dita cuja, lhe quedou, apesar dos cinquenta anos passados, uma certa aversão ao legume, sem querer, logicamente, desmerecer os deliciosos pratos servidos. Mas hoje, tendo a disposição uma coleção de livros de receitas e inúmeras horas de programas de TV sobre culinária internacional, ela me passou confiança para convidar, sem receio de gafes, parentes e amigos para degustarem um fino prato gourmet. Em agradecimento, passei a assistir o “Master Chef” com mais interesse.

No último programa, o primeiro de uma nova série, foi feito a pré-qualificação dos candidatos ao título de “Master Chef Brasil 2018”. Foram 30 postulantes que, em dupla, recebiam de três já consagrados Chefs, entre eles Paola Carossela, qual prato deveriam preparar e em quantos minutos. O tempo dado era propositadamente bem reduzido para dificultar e assim melhor selecionar os vencedores para a etapa final. O que mais me chamou a atenção, não foi tanto a invejável rapidez e confiança na preparação do cardápio e a subsequente “nota” dos Chefs, mas a heterogeneidade do perfil dos candidatos, a maioria numa faixa etária dos 20 aos 40 anos. Através de rápidas apresentações individuais dos mesmos, conclui que todas as regiões do Brasil estavam ali representadas nas mais diversas profissões: de capitão do exército a padre de paróquia, passando por professor, treinador de basquete, vendedor ambulante, dona de casa como cozinheira autônoma, bancária, etc. Esta variedade de origens e profissões, somando-se a alegria e a motivação contagiante dos candidatos e de seus parentes e amigos, que assistiam a disputa numa sala adjacente, me transmitiu uma esperança de que o Brasil, impulsionado pela força de vontade de sua juventude em querer vencer na vida, conquistar com trabalho, mérito e ética uma profissão mais reconhecida, teria  que dar certo.

Mas, infelizmente, meu deslumbramento durou pouco!

Na capa do jornal do dia seguinte leio a manchete:

“FUTURO DE 52% DOS JOVENS DO PAÍS ESTÁ EM RISCO: Relatório do Banco Mundial mostra que 25 milhões de brasileiros entre 19 e 25 anos não trabalham nem estudam ou frequentam a escola com atraso e estão vulneráveis à pobreza.”

Além do futuro incerto desses jovens, que mais facilmente podem ser atraídos para a contravenção, o problema coloca também em risco o desenvolvimento do país que precisa deles para crescer.

Esses números demonstram que o gigante adormecido continuará assim por mais um bom tempo; desfalcado de políticas públicas que incentivem sua juventude a frequentar e permanecer na escola e a procurar o primeiro emprego. Ou será que nossos governantes pensam que num toque de varinha mágica, explodirão por todos os cantos do país, milhares de restaurantes, lanchonetes e serviços afins, que possam absorver, com dignidade, a mão de obra especializada e motivada ao trabalho proveniente de universidades e cursos profissionalizantes?

Difícil prognosticar! Mas com certeza, os aguardarão uma multidão de jovens gritando em coro pelas ruas:

Brasil! Somos seus Masters Chefs! Onde está nossa cozinha pra servir nosso País”...

O simpático coveiro - Fernando Braga



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O simpático coveiro
Fernando Braga

       Há pouco tempo viajando com minha esposa, soubemos do falecimento súbito da tia Nina. Quando chegamos, o enterro já havia ocorrido há dois dias.

       Conversando com minha esposa, começamos a relembrar esta tia tão querida, que nunca casara, que vivendo com irmãos na mesma casa, havia sido aquela pessoa prestimosa, sempre sorrindo, nunca se queixando da vida, assumindo desde moça, o posto de cozinheira da casa. Filha de italianos, aprendera todos os macetes, os segredos da feitura da comida mais saborosa. Sua lasanha era conhecidamente divina.

       Com   frequência, íamos aos domingos em sua casa e saboreávamos o delicioso almoço e os doces, que tão bem sabia fazer.  Agora, havia morrido como um passarinho, quietinha, sem incomodar ninguém, nem mesmo dando trabalho de levarem-na para um hospital, pois não acordara pela manhã. Foi direta para o cemitério. Mereceu ter tido esta, considerada a melhor morte.

       No dia seguinte, por volta das nove horas, fui até o cemitério, para ao lado de seu túmulo rezar um padre nosso, uma ave maria e um credo. Na secretaria do cemitério indicaram-me a posição em que ficava a tumba, uns 300 metros da entrada. Verão, e apesar de ser manhã, o dia já estava quente, o sol intensamente brilhando forte.

       Cheguei ao lado de sua cova, onde havia ainda os sinais da atividade recente, coberta por uma camada de grama colocada em placas, vi uma pequena tabuleta de madeira com seu nome, dia de nascimento e morte. Morrera com 82 aninhos.

       Aproximei-me do túmulo, relembrei alguns momentos felizes que tive a oportunidade de passar a seu lado. Rezei mais algumas ave-marias, e logo me despedi fazendo o sinal da cruz, pegando o caminho de volta.

       Após andar uns 150 metros, eu estava suando e decidi sentar-me um pouco, em um banco sob a   sombra de uma árvore, bem ao lado de dois coveiros que se revezavam com enxadões, abrindo nova cova, para um próximo enterro. Fiquei contemplando os coveiros, debaixo daquele sol causticante a cavar. Aquele que estava fora do buraco apoiava-se sobre o cabo da enxada, esperando por sua vez. Ambos usavam chapéus e camisas, que estavam sujas e ensopadas. Olhando em minha direção ele disse:

       —Tá cansado meu irmão? O sol tá brabo né?

       —Eu tô é com dó de vocês, neste serviço pesado, neste solão, repliquei.

       -Quantas covas vocês abrem por dia?

       —Hoje quatro! Por enquanto! Mais nois tem que abri e fechá também, após coloca o cachão com o morto no fundo. Aí nois coloca a grama. O serviço é bem feito seu dotô. Isso é todo dia, sábado e domingo, sem descanso.

       —Não há um revezamento?

      —Tem sim, mais ao todo nois é, só quatro! Tem dia que dá mais de 10 enterro, o que pra nois é bom, ajuda a ganha uma gaitinha a mais!

       —Neste emprego, quanto vocês ganham por mês?

       —Nois ganha o salário! O que ajuda é o dinheiro que nois recebe de groja, uns mil cada um, por mês. Apesar de tudo, graças a Deus temo emprego. Tá difici por aí.

    —O senhor tem família? perguntei

      —Tenho sim, a muié e um fio de 11 anos. Imagine que outro dia, me disse que quando crescesse queria se coveiro como eu. Resmunguei: Deixa de falá besteira muleque, você tem é que estuda! Aí ele disse: - Então quero ser soldado da polícia! Respondi:

       —Muito menos isto! Nervosinho me respondeu:

       —Então o que o senho  qué que eu seja, um bosta?

       —Não fio, um dotô! Vai estudá até o fim. Eu trabaio e você estuda. Tá?

       Perguntei ainda a eles, se não tinham medo de aparecer alguma alma do outro mundo.

        —Oh amigo! Tenho sim. Tempos atrais, vim com meu fio à noite no cemitério, que fecha às 10 horas, vê se encontrava o meu relógio, que perdi. Fui até a tumba que tinha cavado. Não encontrei o relógio, mas ouvi subitamente um baruio estranho e quando oihei, vi a uns 50 metro, uma coisa que parecia um lençol branco, voando, dançando encima de um dos túmulo. Meu fio também viu, saiu correndo antes de mim. Corri atrais!  Devia ser uma alma penada. Credo cruz!

      —Dei muita risada. No final perguntei aos dois, se eles que haviam aberto o túmulo de dona Nina, do outro lado.

       —Claro que fomo nois.  Vo te fala! Nenhuma gaita, nenhuma moeda recebemos dos parentes. Oi gente miseravi.

       Não disse que era parente, mas ao levantar para despedir e seguir o caminho de volta, tirei uma nota de cem e entreguei a eles dizendo:

—Boa sorte  meus amigos, bom trabalho.
Sorrindo agradeceram e disseram:

—Se precisá de nois, tamo aqui.  Senti um arrepio pelo corpo e pensei:
—Será que vou precisar deles, logo?


Uma história muito triste - Fernando Braga



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Uma história muito triste
Fernando Braga

       Anos atrás, um sábado, saí com minha mulher e fomos ao cinema. Ao voltarmos, resolvemos comer uma pizza em um local próximo de casa.

       Paramos o carro em uma lateral, bem próxima ao local e entramos. Ao sairmos, já por volta das 11 horas da noite, junto à roda da frente do carro do lado direito, notei como que um pacote na frente do pneu. Sem saber o que era, me aproximei e percebi que se tratava de um garoto todo encolhido deitado. Quando percebeu minha presença, gatinhou e foi para a frente, sentando-se na sarjeta. Me dirigi a ele e perguntei:

       -O que você está fazendo aí? É tarde. Não vai para sua casa?

       -É muito longe, hoje não vai dar mais tempo. É na vila Ré.

       Pegamos o carro e fomos para casa. Encostei o carro, abri o portão e pedi que ela entrasse, que eu voltaria logo. Enfatizou:

       -Já sei onde você vai!

       Voltei ao local da pizzaria e encontrei o rapazinho ainda sentado na sarjeta. Me aproximei e disse a ele:

       -Entra no carro. Você pode dormir hoje na minha casa. Você quer?

       Não se fez de rogado e entrou.

       Quando lá chegamos, minha esposa pegou uma calça de um de meus filhos que tinha o mesmo tamanho, uma camisa, uma cinta, uma meia e um tênis usado, em boas condições.  Conduzido ao banheiro, tomou um banho, com a recomendação de esfregar-se bem com o sabonete, lavando principalmente a cabeça. Foi-lhe dado um shampoo. Saiu bem vestido, aspecto bem melhorado e limpo. Foi oferecido uma omelete, pão fresco, arroz e batata, e refrigerante, que comeu e bebeu com avidez. Devia estar com fome.

       Minha esposa preparou, em uma sala de televisão no fundo do quintal, um local para ele dormir confortavelmente. Ligamos a TV, e desejamos-lhe boa noite. Certamente dormiu assistindo TV.

       Acordou tarde no dia seguinte, tomou o seu desjejum e sentamo-nos para conversar. Junto estavam minha cunhada e marido que tinham vindo nos visitar. Todos, gostamos bastante do rapazola e as perguntas rolaram por cima dele, principalmente por parte de meus filhos que se compadeceram de sua pobre situação. Pela informação, morava muito longe, família bem pobre habitando um casebre, tinha mais irmãos menores e seus pais “não davam conta”.   Viviam como que abandonados e ele tinha que se virar. Ia a bares e restaurantes, tentando ganhar algum trocado, tomando conta de carros. Frequentemente era enxotado por outros guardadores de carro, que não queriam concorrentes. Perambulava pela cidade. Tinha apenas o curso primário.

       Minha cunhada e meu concunhado, bem posicionado em um banco, logo prontificou-se a   conseguir uma carteira de trabalho, para que pudesse trabalhar. Arranjaria um cargo de office boy no banco em que trabalhava ou em outro nosocômio. Miguel, o   garoto, mostrou-se contente e aceitou encontrar meu cunhado em seu banco, logo no começo da semana.

       Logo após o almoço levei-o até o Largo de Pinheiros, dei-lhe um dinheiro para que pudesse pagar suas conduções e levar um pouco para casa, para ajudar sua família. Dentro do ônibus, nos abanando a mão, em despedida, parecia outro, diferente daquela trouxinha, que estava debaixo do para-choque do carro, na noite anterior.

       Ficamos incluindo minha cunhada, de arrumarmos algumas roupas usadas e outras coisas mais, para ele e sua família. Para tal aguardávamos por sua volta, a nos procurar.

       Sumiu!

       Não procurou meu cunhado no banco, conforme combinado, não apareceu mais em nossa casa.  Segundo meu filho maior soube, tempos após, que este mesmo garoto, o Miguelzinho, havia se tornado o maior bandidinho do bairro, preso várias vezes.

Dá para entender?

Dá sim! É a escola da vida, quando reina a pobreza, a falta de orientação, de instrução dos pais, a ausência de governo.


Fantasia ou Realidade? - José Vicente J. de Camargo



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Fantasia ou Realidade?
José Vicente J. de Camargo
                                                                 
                                   

Da área de serviço do seu apê, Alzira observa que a vizinha fala com seu gato que obedece aos seus gestos. Volta para a cozinha e quase tropeça no Lampião que estendido no chão, impede a passagem. Diz:

- “Já pedi pra você arrumar outro lugar pra dormir, senão vai levar uma vassourada nas orelhas. Seja obediente como o gato da vizinha.
 Coitada! Fala com ele como se entendesse”.
E ambos riem...

Os risos fazem o Louro, do seu poleiro, cantarolar:

- Lampião é cão castrado, não morde nem assusta!

O barulho faz com que o cuco do relógio da sala ao lado, abra a portinhola fora do horário e esbraveja:

- Vamos parar com essa bagunça aí na cozinha. Preciso de silêncio pra dormir e recuperar as energias para o próximo canto.

Na sequência, o pinguim de cima da geladeira começa a bater as patas, abanar a cabeça, andar em círculo grasnando:

- Alzira, cadê meu peixe! Risada não enche barriga...

Sobrepondo-se, ouve-se o cacarejar da galinha da cesta de ovos:

- Seu pinguim tem razão! Risos também não enchem minha cesta de ovos que está vazia. Que saudades do meu terreiro com fartura de milho e minhocas...

- E do pescoço torcido quando te pegam para o almoço, emenda o Louro, que vê na galinha uma rival para os afagos de Alzira.

Em seguida, da sala ao lado, ouve-se o choramingar da bailarina que guarnece a caixinha de música:

- Estou cansada de ficar na ponta dos pés! Fico deprimida quando não danço, mas Alzira se esquece de me dar corda.

- Vocês todos são uns ingratos! Intervém Alzira. Só por que aceitei o convite da minha amiga Diná, do curso “Forças Ocultas”, para almoçar, se põem todos a resmungar. Se esquecem que fui eu quem lhes deu vida, mantendo-os unidos como uma família.

Entretanto pensa consigo: “Odin exagerou nos raios! Devo ter evocado seu poder com muita fé. Na próxima aula do curso, tenho de aprender melhor como controlá-lo. Espírito que é, não tem corpo, só energia concentrada do tipo negativa. Eu, que tenho energia positiva, o atraio. O problema é que não consigo conter suas ações. Sai pela casa fazendo estripulias, lançando raios por todo lado, atiçando minha família a se rebelar contra mim.

Neste momento, um vento forte invade o ambiente batendo portas e janelas ao mesmo tempo que Alzira sente no corpo um aquecimento com tremores como se Odin estivesse baixando nela:

“Mas se eu não o invoquei, como que pode estar por aqui? Só uma mente de ser vivo pode fazê-lo. A do louro é muito pequena, tem baixa energia, mas a do Lampião? E olhando para ele, este lhe mostra os  dentes afiados dizendo:

- Cuidado Alzira, cuide bem da família, senão quem vai levar umas vassouradas nas orelhas é você!

E o Louro logo emenda:

- Lampião é cão castrado, mas é nosso novo líder!
- Cocorocó! Estou de acordo, acrescenta a galinha,
- Ok, mas não esqueça do meu peixe! Grasna o pinguim,
- Se promete manter silêncio, tem meu apoio. Balbucia o cuco sonolento.

Com um suave bater de palmas, a bailarina manifesta sua concordância.

Alzira, surpresa e chateada pela reação do grupo, exclama:

- Quem ri por último, ri melhor! Se vocês não me querem mais como mãe, eu já sei pra onde ir e mira a folhinha pendurada na parede que estampa a foto de uma praia paradisíaca de areia alva, rodeada por coqueiros verdes, mar esmeralda, céu azul, tudo emoldurado por um sol radiante. Cerra os olhos, respira fundo, decidida do que quer. Concentra-se na “evocação” de Odin, pois quer captar o máximo de energia para poder mudar de vida, ir a um lugar onde ninguém a conheça, começar do zero, um desejo que vem acalentando há tempos. Sente então um raio lhe varrendo o corpo e berra: 

- Pessoal! Odin tá presente! Eu os desculpo pela rebeldia e os libero para pedirem o que quiserem. Dêem vazão aos seus desejos reprimidos. Agora é cada um pra si e sorte pra todos. Dizendo isso, se desfaz num redemoinho de fumaça que penetra na foto de onde, em seguida, se a vê na praia de bata colorida dando tchau aos que ficaram.

A imagem de felicidade causa um impacto na família:

- Mãe é mãe! Grita o Louro. Eu também vou, chega desse Lampião, castrado e medroso. Cobre a cabeça com as asas, vira um bolo de pó que penetra no calendário e aparece do outro lado, trepado num coqueiro, triturando coquinhos.
Sem mais delongas seguem a galinha, que vira gaivota, o pinguim, que se transforma em golfinho, e a bailarina que vira dançarina de hula-hula.

Cuco e Lampião, como últimos, se entreolham e Lampião diz:

- Você que está quase sempre dormindo, não deve ter acompanhado o que se passou por aqui. O desabafo da mãe Alzira e sua fuga para a praia da folhinha.

- Você que pensa, retruca o cuco. Fico no descanso, mas minha mente fica atenta ao bater dos ponteiros. Acompanhei tudo.

- Então só sobramos nós dois, responde Lampião.

- Dois não, só um, pois sempre sonhei em ser gavião, viver nas alturas e ser temido por outras aves e animais. Me vou...

Lampião esfrega o focinho chateado pelo seu curto período de liderança. Mas eriça as orelhas e lhe brilham os olhos quando se dá conta que também pode se transformar em algo que sempre quis ser, mas impossível de conseguir numa sociedade de tantas fobias e preconceitos. Abana o rabo e mergulha na foto para depois emergir, do lado de lá, retorcido entre as almofadas de um sofá de veludo, como “gato maravilha” …

Moral da história:

A fantasia acompanha a vida do homem desde a infância, povoando sua imaginação de mundos diferentes, de sonhos e de desejos do que gostaria de fazer, de ser ou de ter. A fantasia é anterior às letras e as assombrações têm lugar em todas as literaturas. Além de ser inerente ao homem, a fantasia satisfaz seu anseio inesgotável de  ouvir histórias.

Neste sentido, Alzira e sua família não é uma fantasia, mas uma realidade...

O QUE É UMA MULHER? - Oswaldo U. Lopes



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O QUE É UMA MULHER?
Oswaldo U. Lopes

        Deu-se aquilo porque sinhá Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de sinhá Terta, pediu informações. Sinhá Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.
...
        -Inferno, inferno.

        Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim.
        O texto acima é de Graciliano Ramos, não é meu autor favorito, esse título vai para Guimarães Rosa.  O estilo frio seco e cortante de Graciliano sempre me pareceu muito árido. Já Guimarães Rosa, além de colega (era médico) tem uma maneira de escrever mais de acordo com o que eu faço e gosto. É mais redundante, mais volutuoso, seu texto como que voa junto com suas veredas.

        No entanto o texto cru de Vidas Secas nos leva diretamente a questão maior deste ensaio: o significado das palavras que estão constantemente a nossa volta. Inferno para o menino mais velho, mulher para mim¹.

        No mundo que nos rodeia para vários objetos e mesmo seres biológicos, não é difícil estabelecer uma resposta adequada para a pergunta: o que é?  Para outras palavras o resultado é impreciso ou inadequado.

        Encontrei na Internet um texto de Chris Boillier que certamente passou por uma experiência forte. Casada dois filhos, lutando com as dificuldades de todo casamento (moradia, recursos financeiros, educação dos filhos) é surpreendida pela decisão do marido de se incorporar ao sexo feminino ou como se diz modernamente, tornar-se uma trans mulher.

        Em meio a um conflito arrasador ela formula a pergunta título deste ensaio:

- What is a woman?

        E as afirmações mais contundente, dirigidas ao seu marido:

- It’s not possible for you to be a woman – Não é possível para você tornar-se uma mulher.

- You can’t be a woman – Você não pode ser uma mulher

                Perguntei a uma pessoa amiga do sexo feminino como ela responderia a pergunta título. Ela assim principiou:

_ É um ser complexo... Ela continuou sua explicação, mas eu me fixei neste início: ser complexo.

        Há pouco tempo O Comitê Olímpico Internacional (COI) fixou o que seria uma mulher:

-Um ser humano que tivesse menos do que 10 nano mol/litro de sangue de testosterona

        A questão veio à tona por causa de uma jogadora de vôlei (Tifanny Abreu) que é uma mulher trans e tem níveis mais baixos do que isso de testosterona. Estabeleceu-se certa celeuma porque até os 29 anos Tifanny teve níveis muito elevados de testosterona, pois era biologicamente um homem.

        Em matéria de reducionismo o COI é imbatível

        Aos que simplificam a questão afirmando que a mulher é xx e o homem é xy e, portanto, a cromatina sexual resolveria o problema, lamentamos informar as numerosas combinações possíveis do tipo xxy, xxxy ou mesmo um xy que é fenotipicamente uma mulher e muitas vezes, muito bonita. Alguns configuram, sem provas, que Kim Novak fosse um exemplar dessa combinação. O que acontece nestes casos?

        O feto é insensível à testosterona secretada devido ao cromossomo y e o desenvolvimento se dá no sentido da figura feminina. Talvez esta seja a primeira resposta à pergunta lá de cima.

        Recentemente o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP publicou um artigo em que foram comparadas ressonâncias magnéticas de homens cis, mulheres cis, mulheres trans que recebiam hormônios e mulheres trans que não recebiam hormônios. Indivíduos cisgênero são aqueles em que a compatibilidade entre o sexo atribuído no nascimento e a identidade de gênero (como a pessoa se percebe) são os mesmos. No caso das pessoas trans há uma divergência entre o sexo atribuído e a identificação de gênero.

        Os autores são extremamente cuidadosos na sua avaliação, tamanho da amostra e outras variáveis, mas o fato é que mulheres trans e mulheres cis têm semelhança na formação cerebral denominada ínsula que se opõe totalmente ao observado nos homens cis.

        A mulher é o ser básico. Contrariamente ao que nos ensina o Gênesis, não é possível do menos tirar o mais. O cromossomo y é pequeno, quase vazio. Não sendo a testosterona capaz de agir o ser básico aflui na forma feminina.

        Uma das bandeiras das sufragistas no começo do século XX (faz 100 anos que as mulheres conseguiram no Reino Unido o direito de votar) era:

        As mulheres são as mães de todos os eleitores e não podem votar.

        O ser mãe que seria a condição irrecusável, embora não a única, para classificar alguém como mulher, começa a ser abalada. Feito ainda, entre mulheres o transplante de um útero já fecundado é uma realidade para aquelas que querem ter um filho, mas não tem todas as condições necessárias.

        Antigamente quando se adentrava as Escolas Médicas, sem Internet nem Grupos Sociais, uma surpresa que aguardava os jovens calouros na anatomia, era de que homens e mulheres tinham o mesmo número de costelas. Parece que só Adão ficou sem uma.

        Na nossa época, pelo menos no mundo ocidental, mais tolerante e disposta a permitir a chamada inclusão social, sem restrições, pré-requisitos ou preconceitos, torna-se difícil estabelecer certas demarcações e limites.

        O que é o inferno, o que é uma mulher, o que é um filho?

        Seres e espaços complexos, para os quais nossas palavras e nossa semiótica não se adequam. Falhamos na percepção do que nos rodeia.

        Ser básico, complexo que dá origem a outros...



___________________________________________

¹Estas ideias sobre o texto de Graciliano Ramos retirei do capítulo escrito por Izidoro Blikstein: Roland Barthes como decifrar o mundo, contido no livro: Barthes 100 ideias e Reflexos, publicado pela Eduel, 2017.

Naqueles Tempos - José Vicente Camargo



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Naqueles Tempos
José Vicente Camargo

A maioria dos e-mails que recebo se referem a postagens nas redes sociais. Abri um de uma amiga de humor refinado e irônico e de nível intelectual compatível com o meu. Portanto, pensei, o conteúdo deve ser interessante. Dito e feito! O título, de cara, me aguçou a curiosidade em lê-lo e creio que deva ter atingido um número invejável de clicadas na rede:

“Como se tratava o estupro em 1833”.

Trata-se de uma sentença judicial expedida por um juiz de Direito da Vila de Porto da folha, Província de Sergipe em 15 de outubro de 1833. A fonte é o Arquivo Histórico de Alagoas. Resumo a seguir “Ipsis Litteris” as preciosidades linguísticas e de comportamento da época:

“O promotor público, representando contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nª Sª de Sant’Ana quando a mulher de Xico Bento ia para a fonte, o cabra que estava numa moita de mato, saiu dela de supetão e fez proposta a dita mulher, porque queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ela se recusasse, o dito cabra, o dito cabra abafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas de fora e ao Deus dará. Ele não conseguiu matrimônio porque ela gritou e veio em amparo dela Nocreto Correia e Norberto Barbosa que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas testemunhas que assistiram a qualquer naufrágio do sucesso faz prova.

Considero

  1. Que o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ela e fazer chumbregâncias, coisas que só o marido dela competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Católica Romana.
  2. Que o cabra Manoel Duda é um suplicante debochado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quis também fazer  coxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzelas.
  3. Que Manoel Duda é um sujeito perigoso e que não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhan está metendo medo até nos homens.
Condeno

O cabra Manoel Duda, pelo malefício que fez a mulher de Xico Bento, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete. A execução desta peça deverá ser feita na cadeia da Villa. Nomeio carrasco o carcereiro.

Cumpre-se e apregue-se editais nos lugares públicos.

Manoel Fernandes dos Santos

Juiz de Direito”

Se tal sentença fosse aplicada nos tempos atuais, certamente o número de crimes de estupro cairia a zero e já cortava pela raiz a tentativa do tal assédio sexual tão comentado nas mídias de hoje. Um exemplo a ser seguido, talvez, pelos nossos juízes. Digo talvez, pois a reação masculina, amparada pela imprensa, redes sociais e demais suportes machistas, iriam querer rasgar e pôr fogo nas togas apavoradas. Sem levar em conta, a oposição dentro dos próprios tribunais, já que juiz, segundo vários cordéis, é cabra macho. Mas assédio sexual naquele tempo seria quase impossível, dado ao costume da época que obrigava os cavalheiros a manterem uma distância considerável das senhoritas e senhoras. Dirigir-lhes a palavra só o necessário, assim mesmo sem olhar diretamente nos olhos. Tocar as mãos das donzelas só permitido aos noivos comprometidos e assim mesmo sob rígida vigilância da mãe, irmã ou da mucama de companhia. Creio que as feministas de hoje sentiriam naqueles tempos, a falta, pela contraparte, da piscadinha de olho, do olhar convidativo, do sorriso provocador e de um convite para uma balada...

Bem! Acho melhor parar por aqui, por que já estou entrando em terreno perigoso e antes que alguma me venha acusar de querer fazer chumbregâncias com ela, deixando as encomendas de fora e ao Deus dará...


RESIDENTES EM GREVE - Oswaldo U. Lopes


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RESIDENTES EM GREVE
Oswaldo U. Lopes


        Sei que foi a primeira, não sei se foi a única, não acompanho a residência médica no HC como uma instituição, desde o tempo que me formei. Reivindicávamos várias coisas, entre elas aumento no valor da bolsa (salário). Sejamos honestos, a maioria das greves se faz por aumento no salário. No segundo ou terceiro ano de residência, os compromissos aumentam, você está noivo, vai casar, não tem emprego ainda, mas já tem despesas.

        Hoje há regras, descanso obrigatório pós-plantão, folgas, no meu tempo não tinha nada disso, você chegava facilmente às 30 horas de trabalho contínuo. Levantava as seis, tomava banho se vestia e ia tomar café. Antes das sete já estava no Centro Cirúrgico. Saia de lá as três ou quatro da tarde, passava visita e engatava plantão a noite. Dia seguinte visita com o Professor, discussão de casos. Com sorte encostava o corpo às quatro da tarde.

        É bom lembrar que desde o famoso decreto do “Bom Será” que instituiu os cursos de cirurgia no Brasil (D. João VI, Rio de Janeiro 1813) o trabalho dos estudantes é considerado sem folgas.
        Lê-se lá no artigo XI:

Deste (refere-se ao Terceiro Ano – citado no Artigo X) até ao fim do quinto não há feriados nas enfermarias, mas somente nas aulas, se não houver operação de importância a que devam todos assistir.

        Em bom português hospitalar, se for feriado, não tem aula que é para os mestres descansarem, mas vocês alunos (leia-se hoje, internos e residentes) cuidam dos doentes e dos curativos 365 dias por ano e, se for bissexto, 366.

        Ninguém se queixava, não passava pela cabeça que aquilo era uma loucura.  Residência quer dizer residir, morar e era isso que fazíamos. Tínhamos um quarto a ser dividido com outro colega no 6º ou no 8º andar, quer dizer no coração do Hospital e era o que éramos o coração do HC.

        Residência não era emprego era aprendizado em serviço, logo quanto mais serviço, mais aprendizado. Uma das mais importantes séries da televisão americana Grey’s Anatomy retrata a vida de médicos internos num grande hospital. Os internos são o primeiro degrau da residência, ou seja, o mais baixo na escala dos médicos que atuam num nosocômio, último elo da cadeia alimentar cirúrgica, abaixo deles só o cachorro!

        Não me lembro de sermos tão competitivos como os médicos de Grey’s Anatomy, mas mesmo na série fictícia há uma ordem para que internos não ultrapassem 80 horas de trabalho por semana. Um número simples, você divide 80 por 7 e descobre que não pode trabalhar mais do que 11 horas e 42 min por dia, faça chuva, faça sol, seja que dia da semana for. Se o fizer, tem que parar e ir para casa.

        Não falo das enfermeiras que têm escada própria e vida própria. Já naquele tempo sabíamos que o estudo delas tinha objetivos claros:

  1. Aprender a fazer a escala dos subordinados: auxiliares de enfermagem e auxiliares de limpeza.
  2. Como guardar e esconder remédios sujeitos a controle: psicotrópicos, analgésicos poderosos (morfina e similares).
  3. O que fazer com as ordens dos médicos residentes e como enquadrá-los na disciplina da enfermaria.
        O que ninguém sabia ou imaginava era o quanto o HC precisava do nosso trabalho, da nossa presença para que tudo funcionasse.

        A greve durou só uma semana e voltamos ao trabalho com bolsa de valor maior e outras regalias secundárias.

        Numa Clínica do HC você tinha o Professor, chefe e senhor absoluto, seus assistentes que conduziam setores especializados e um monte de médicos assistentes que na sua maioria formavam também o cordão dos puxa-sacos.      

        No começo os assistentes resolveram topar a briga e desceram ao Pronto-socorro (PS) para provar que podiam nos substituir.

                Quando os assistentes, na nossa ausência, por causa da greve, passaram a dar plantão no Pronto-Socorro, os bajuladores faziam de tudo para agradá-los e assim eles operavam alguma coisa, viam um ou outro doente e iam para casa lá pelas onze da noite.

        Foi assim que um dos mais famosos cirurgiões da Clínica do Prof. Alípio, chamado por nós de Tigre do Guarujá porque quando chegava, na segunda-feira, vindo do fim de semana na praia, você tinha que ter um caso importante para ele operar, porque se não tivesse ele operava hérnia ou mesmo unha encravada.

        Foi assim que o Tigre do Guarujá operou, durante nossa greve, no PS, um caso de tiro no abdômen e suturou um ferimento à bala no intestino delgado, na parte que chamamos íleo, próximo da válvula que une esta parte ao colón ascendente (primeira porção do intestino dito grosso).

        Embora excelente cirurgião, desconfio que o Tigre nunca tivera experiência ou expertise em condutas de emergência.

        Um pouco para trazer experiência de PS para a clínica e muito para aliviar a sempre presente falta de leitos no PS, havia nas enfermarias do Hospital leitos chamados de leitos do PS para onde eram transferidos doentes que estavam internados no PS.

        Foi para um desses leitos que foi transferido o doente operado pelo Tigre. O Prof. Alípio, como era de seu feitio passava visita rigorosa em todos os leitos de sua Clínica.

        Quando chegou nesse leito do PS, lá estava internado o doente operado durante a greve. Meu colega, infelizmente já falecido, Alex Goldsmith de Vasconcellos Ribeiro, apresentou o caso e foi relatando:

        -“Ferimento a bala no abdômen, foi operado no PS, tendo sido realizada uma sutura longitudinal que por essa característica resultou em uma estenose e nós precisamos reoperar e fazer uma ressecção e nova sutura agora mais ampla”.

        - Quem operou, perguntou Alípio?

        - Dr. Tigre.

        - Não acredito.

        - Aqui está a peça, exibiu glorioso o Alex, mostrando num vidro um pedaço do intestino visivelmente estenosado e com a malfadada sutura longitudinal.

        - Chamem o Tigre vociferou o Alípio.

        É claro que um dos puxa-sacos já fora avisar o Tigre que não mais foi encontrado naquele dia. Como foi a conversa entre eles no dia seguinte, ninguém soube ou me contou.

        Alípio estivera na guerra, em matéria de cirurgia de urgência dava aula para qualquer um, deve ter dado mais uma.

        Nós naquela ocasião saíramos bem na foto. O Rudi (Dr. Rudolf Uri Hutzler) era nosso Residente-Chefe e tivéramos uma expressiva vitória. Já não éramos crianças, de modo que comemoramos quietos e não demonstramos o sabor da vitória, voltamos ao trabalho dando duro como sempre.

        Houve reuniões da alta cúpula e alguns de nós ficaram marcados, nada muito grave. Só de exemplo, anos mais tarde uma parenta de minha mulher, a Ione foi chamada para ser Coordenadora (Governanta) da Casa dos Residentes, prédio novo construído para alojar a categoria e ela resolveu conversar comigo e eu lhe expliquei quem éramos o que fazíamos e quais as nossas necessidades.

        Ela antes de assumir o cargo foi conversar com a chefa das enfermeiras, Clarice Ferrarini, falando das necessidades e dos problemas que eles tinham e como pensava atuar. Clarice a ouviu e puxou um papel com cinco nomes listados, um deles era o meu e perguntou:

        -  O cara com quem você conversou foi um desses, não foi?

        Foi, confesso que vivi, como diria Neruda, e o fiz intensamente.