Os óculos estranhos - Fernando Braga


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Os óculos estranhos
Fernando Braga

Nosso grupo se encontra ocasionalmente e dentre eles o Zé Osvaldo, nos contou um fato ocorrido, que segundo ele, mostrava uma coincidência, que nos dá muito o que pensar. Disse ele:

—Há uns quatro meses, estando meu carro no rodízio, pedi emprestado à minha esposa o carro dela para ir ao dentista. La cheguei, tirei o cartão de estacionamento e o manobrista se dispôs a tomar conta do veículo, estacionando-o. Após uma hora estava eu de volta, apanhei o carro, voltei para casa.

No dia seguinte, usei novamente o carro dela, desta vez para ir fazer uns exames no Laboratório Fleury, aquele próximo à Ponte Estaiada. O manobrista pediu-me para sair, que ele estacionaria o carro, estava um tanto lotado. Após uns 40 minutos, lá estava eu de volta, pronto para retornar à minha casa.  
Passados uns 4 ou 5 dias, minha mulher que tem uma vida bem ativa, frequenta dois cursos onde aprende história, política, economia, junto com suas mais de 30 colegas, e que frequentemente vai a aniversários, almoços com sua turma, me perguntou:

—Você sabe de quem são estes óculos?

Peguei-o nas mãos, olhei- o bem, coloquei em meus olhos e percebi que tinha graus. Respondi:

—Não faço a menor ideia. De quem é?

—Também não sei. Encontrei-o em meu carro! Já perguntei a todas minhas amigas e os óculos não são de nenhuma delas.  Eu, realmente não me lembro de ter colocado alguém em meu carro, ter dado alguma carona.

—Você se lembra que alguns dias atrás, pediu meu carro para ir ao dentista e depois fazer exames?

— Claro que me lembro!

—Por acaso você não colocou alguém no carro?

—Claro que não! Fui e voltei rapidamente. Pergunte a seus filhos e noras se os óculos não são de deles. Quem sabe!

—Eu já perguntei e não é de ninguém.

—Então paciência. Eu não tenho nada com isso!

Eu vou te dizer uma coisa:

—Estou desconfiada de que você levou alguém em meu carro.

 —Você sabe né, óculos não têm pernas! Se eu não fui, só pode ter sido você. Para mim, parece ser óculos de mulher. Explique-se!

—Olha aqui. Não me amole. Não tenho nada com isto!

Zé Osvaldo neste momento fez pequenos parênteses, dizendo:

—Meus amigos, sabem que eu cometi um grande erro na minha vida? E não sei se o mesmo não se passou com vocês.

—Quando fiquei noivo, frequentemente contava alguns casos de minha vida, no que se refere a outros namoros, algumas amantezinhas, que como um solteiro, tinha o direito de ter. Minha esposa, naquela época, tudo ouvia e guardava muito bem em sua cabecinha. As vezes ela perguntava: - Você não viu mais a fulana, a sicrana com quem tinha caso? Claro que eu negava. As perguntas se perpetuavam mesmo depois de casado, quando eu notava certa desconfiança e ciúme. Não é que eu fosse inteiramente santo, porque umas beliscadinhas qualquer um dá. Mas, eu era um cara sério.

Pois bem, voltando ao assunto. Minha mulher, como a maioria delas, confia em seus maridinhos, mas não totalmente, a ponto de colocarem a mão no fogo. Podiam se queimar!

Novas cargas sobre mim.

—Olha, ainda estou com a presença daqueles óculos em minha cabeça. Não é você que sempre diz que: —Jacaré encima de árvore ou foi enchente, ou foi gente? Os óculos continuam no carro, no mesmo lugar e você não vai tira-lo de lá, até aparecer o dono.

Às vezes saíamos em seu carro e estavam os óculos, que para mim não parecia de mulher.

Um dia eu disse: —Espera aí, da mesma maneira que você duvida de mim eu também posso duvidar de você.

—Engraçadinho. Se eu souber que você me traiu, não vai ter mais papo. Um pra cada lado. Não vou te perdoar.

Após um mês, fomos ao dentista juntos, ela queria clarear os dentes.

Quando chegamos ao estacionamento me dirigi ao manobrista e perguntei:

—Você sabe se alguém perdeu os óculos?

 Em minha mente, uma possibilidade era de um dos manobristas terem tirado os óculos, colocado no vão atrás do câmbio enquanto manobrava o carro e tê-lo esquecido. O senhor respondeu: - Eu perdi sim. Ao mostrar os óculos, ele logo respondeu:

—Este não é o meu! Obrigado.

—Em todo caso o senhor pergunte por aí.

Ficamos frustrados, mais eu do que ela. Os óculos continuaram no carro no mesmo lugar. Pensei em retirá-lo, mas pensei se ele sumisse, o que diria minha mulher?

De vez em quando vinha aquele papo: - Jacaré em cima de árvore ou foi enchente ou foi gente!

O tempo passou e após uns três meses, tive que voltar ao Laboratório para fazer a minha colonoscopia bianual e foi solicitado que viesse com algum acompanhante. Minha mulher se prontificou a me acompanhar. Chegamos no estacionamento no subsolo e logo apareceu um rapaz que nos apontou o local de uma vaga. Disse que poderíamos levar a chave conosco.

Não sei o que me levou, neste momento, perguntar a ele:

—Você sabe se alguém perdeu os óculos?

Ele respondeu. Cerca de uns três meses eu perdi o meu e tive que fazer este aqui, que me custou 600 paus. Mostrei-lhe os óculos:

—Veja se são seus.

O rapaz bateu os olhos, deu um enorme sorriso, colocou-o nos olhos e respondeu:

—Doutor! Meu Deus! Que sorte! São os meus óculos! Não tinha mais esperanças em encontrá-los.

Logo percebemos que estes óculos eram muito parecidos aqueles que havia comprado.

 Neste momento ele deu um grito a um colega que estava em uma cabine aberta e disse:

—Carlão, viva! Encontrei meus óculos! Viva! Viva!

—Muito obrigado doutor. Não sei como lhe agradecer.

Nos despedimos. A minha mulher estava quieta a meu lado, mas eu delirante.

—Taí o seu jacaré encima da árvore.

Respondeu:

—Eu nem estava mais me incomodando com eles!

—Mas, você me encheu tanto por causa disso!

—Enchi nada! Não fique inventando! Vamos!

—Meus amigos, vejam a coincidência. Eu perguntar para aquele rapaz, sobre os óculos, bem pra ele, que o tinha perdido. Eu não me lembrava dele, porque são muitos os funcionários que lá trabalham e em horários diferentes. E tanto tempo depois!

Esta foi uma das grandes coincidências que ocorreram em minha vida! E a sorte de minha mulher estar presente naquele momento. Imaginou se eu chegasse em casa contando esta história, sem os óculos, que havia devolvido ao dono?
Será que ela acreditaria? Impossível!


CAMINHOS DO AMOR - Carlos Cedano


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CAMINHOS DO AMOR
Carlos Cedano

A historia nos conta que em meados do século dezenove ainda persistia o costume de beliscar o antebraço das meninas, chamadas de pombas, quando os pretendentes, os chamados gaviões, queriam chamar a atenção de alguma delas. Esse jeito era o chamado “mimo de Portugal”.

Não era fácil namorar as meninas nesse tempo; elas só saiam acompanhadas por pais, irmãos ou parentes, mas o amor sempre da um jeito e os “mimos de Portugal” era uma maneira de contornar essa barreira social. Os lugares desses “namoros” geralmente ocorriam nos passeios após as missas dominicais ou nas frequentes procissões da época.

Hoje se sabe que essa forma de namoro também originou uma nova forma de aposta. Fazia-se uma bolsa entre vários gaviões, três ou quatro no máximo e cada um colocava uma quantidade de dinheiro previamente combinada, quem conseguisse o maior número de mimos de “pomba” levaria a bolsa. As competições seriam durante as procissões onde o tumulto favorecia a ocasião para os contatos.  

Quatro amigos, Felipe, José, Pedro e João constituíam o grupo pioneiro neste tipo de “namoro”. Iniciou-se a competição na procissão de São Judas Tadeu patrono da cidade. Os quatro rapazes sortearam para saber quem iniciaria a contenda e Pedro foi o indicado; infiltraram-se na procissão. O tempo previsto era de vinte minutos controlado pelos outros gaviões que também decidiam sobre a validade do mimo, sem discussão. O mimo seria validado se a menina manifestasse, por um gesto ou leve sorriso que a mensagem tinha sido bem recebida. No final foi José quem ganhou com nove sinais favoráveis contra seis de Pedro e João e apenas dois de Felipe.

A brincadeira pegou e se espalhou rápido entre os jovens sendo motivo de entusiasmados comentários nas escolas de rapazes e meninas. Criaram-se muitos grupos, as mangas das meninas encurtaram-se e as queixas dos familiares aumentaram fortemente!

O pároco da Catedral, também conhecido como padre Carranca, decidiu dar um jeito na situação e acabar com essa brincadeira. Disciplinador severo e moralista, rígido e de rosto sempre sisudo, não estava disposto a permitir comportamentos devassos e pecaminosos. A primeira coisa que fez foi declarar o “mimo de Portugal” como pecado grave sujeito a severa penitência, e quem omitisse o pecado numa confissão receberia uma admoestação pública, já e em caso de reincidência haveria até perigo de excomunhão!


Santo remédio! Em compasso com a moral da época, as brincadeiras cessaram quase que imediatamente, agora os jovens teriam que inventar novas formas de mostrar seu amor pelas donzelas, com flores por exemplo. A batalha estava perdida, mas não a guerra! A vida sempre encontra um jeito para mudar, demora, mas muda.

Pombos - Oswaldo Romano


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POMBOS

Oswaldo Romano


        Em 1942 eu, uma criança, queria ser grande. Perseguia situações inusitadas.

        O estilingue no pescoço, montava planos de se esconder da guerra que envolvia o mundo.

        Morando no interior do Estado, nos preocupava o fato do Albino, meu irmão mais velho residente na Capital, estar sujeito a ser convocado para as forças que se preparavam para combater na Itália.

        Em Mineiros, a cidade que nasci e morava, estava infestada por pombos, alvo manso e fácil, desprezado pelos meninos caçadores. Fomos alertados pelo mano de São Paulo, do perigo de doença que essa ave podia transmitir.

Disse ter sido um amigo médico, diretor do hospital quem o alertou. Desse feliz papo, nasceu a pergunta do doutor:

        —Albino, você tem condições de embarcar esses pombos? Eu os compro.
        —É sério doutor? Amanhã lhe darei a resposta.

Foi aí que entrou na parada o menino que queria ser grande. Não mata-los, mas caçá-los.

Fiz algumas arapucas de bambu. Não davam conta!

        Centenas deles foram engradados e despachados para a Estação da Luz. Estação que falavam maravilhas dela. Morria de vontade de conhecê-la.

Contratando uma carrocinha, transporte muito usado na época, Albino retirava os engradados na estação, e entregava de imediato no hospital.

        Eu ganhava cinquenta centavos cada ave. Não soube quanto ele ganhava.  Mas soube que nesse tempo, o de guerra, esses doentes não deixaram de tomar a saborosa canja.


        Seriam oferecidas como de galetos, codornas. Faisão é o que não era.

A vida é bela - Angela Barros

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A vida é bela
Angela Barros

        Desde a infância Ana foi uma menina sensível, sempre encarou a vida com magia mesmo nos momentos mais difíceis. A família já sabe, quando os conflitos lhe batem à porta Ana para, seus olhos divagam no nada por alguns instantes,  e logo quem está a sua volta percebe emergir uma força que vem do fundo da sua alma. Quando isso acontece os filhos em alto e bom som gritam: “Já sabemos mamãe, a vida é bela!”.

        É com esse espirito que essa mulher sozinha guia a passagem dos seus filhos pelos trilhos da vida desde que seu casamento de sete anos caiu num marasmo sem fim, e ela decretou que empurrar a vida com a barriga, nunca! Separa-se. Decisão tomada para espanto de todos. Compra a parte do irmão no sítio herdado dos pais na Chapada dos Veadeiros onde com fé e coragem vai criar uma horta orgânica.

        Os filhos de Ana estão excitadíssimos com a mudança e a todo momento perguntam para a mãe quando verão a fadinha encantada do bosque que a levou de volta para casa. Logo, responde. Mas, lá com seus botões se preocupa por ter cultivado a lenda da fada que na realidade não tem certeza do que ocorreu, se foi sonho ou realidade.

        A vida segue, Ana envolvida com a horta e os problemas  do dia a dia, não tão mágicos assim.

        Os filhos, totalmente integrados ao local, já adolescentes abraçam a aura mística da pequena cidade onde vivem, sua natureza exuberante e montanhosa, cortada pelo paralelo catorze, o mesmo de Machu Picchu, agraciada pela energia cósmica fazem parte de uma seita que acredita na vida de seres em outros planetas.

        É famosa no local a caminhada dos jovens para as montanhas, entre eles os filhos de Ana, que vão sob o luar no último dia do ano para o ritual de meditação intermediada por gurus, ufologistas, xamanistas que afirmam fazerem a ligação dos seus seguidores diretamente com Deus.

        Já se passaram cinco dias desde que os jovens saíram para a jornada de encontro com o Deus Todo Poderoso, quando no meio da noite apenas alguns deles retornam fazendo grande estardalhaço.


        Corre a notícia de que quatro jovens foram abduzidos, entre eles os filhos de Ana.

Bendix e o Zumbi - José Vicente J. de Camargo


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Bendix e o Zumbi
José Vicente J. de Camargo

Desde o Genesis, o homem se confronta com as forças do Bem e do Mal e suas consequências, como a expulsão do paraíso e o surgimento do pecado. Nos séculos seguintes essa confrontação prosseguiu entre altos e baixos.

Bendix, guardião da floresta, dotado de superpoderes concedidos pelo “Espírito do Bem” contempla de sua caverna no alto da colina, o verde das planícies espreguiçando-se ao longo do vale do rio caudaloso. Súbito, um rodamoinho nas folhagens, indica a chegada de alguém. É o anão voador Tirex, vigilante dos ares e ajudante de Bendix no compromisso do bem zelar. Pousa rápido:

Temos de agir logo! O Zumbi e sua tropa, armada da cabeça aos pés, avança pelos brejos do rio em direção à aldeia do cacique Mungaba. Tudo indica que ele não vai respeitar o acordo de paz acordado com você e o cacique.

Já desconfiava da palavra desse traidor, reponde Bendix. Desde que foi mordido pela mosca da soberba, enviada pelo “Espírito do Mal”, sua intenção de poder não para de crescer. Para tal se utiliza de todos os meios, como esse de capturar inimigos para vender como escravos às nações escravagistas. Temos de prendê-lo antes que termine com o futuro desde povo. Convoque os condores das montanhas e os gaviões reais para o ataque aéreo, os gorilas e os leopardos das savanas para as emboscadas na floresta e avise o cacique para colocar seus guerreiros em posição de luta se não quiserem terminar seus dias nas masmorras das fazendas cafeeiras.

É pra já! Responde Tirex, abrindo suas assas e levantando voo.

Bendix se concentra procurando sinais do “Espírito do Bem”,  se sua decisão está correta. Então vislumbra, no seu poder de visão, a agonia dos navios negreiros, a humilhação dos mercados e das senzalas, a agonia das chicotadas, dos grilhões torturantes. Acima de tudo a dor da saudade da pátria longínqua: “Ao ataque!”, conclui, emitindo um assobio estridente convocando as abelhas de ferrões soníferos para acompanhá-lo.

Com esse exército, movido pela força da justiça e na estratégia planejada, Zumbi recua de suas intenções destruidoras, sendo alertado de que nova quebra do acordo de paz, será sua sentença de morte.


Bendix suspira aliviado por ter conseguido frear mais esta investida do “Mal”. Só lamenta os milhões de desafortunados levados pelos navios negreiros em outras regiões. Mas seu sofrimento minimiza, quando vislumbra que os descendentes desses serão absorvidos pala nova terra como filhos bem-aventurados e contribuirão com seu sangue para a miscigenação da cultura e dos costumes para alegria geral de todos que habitam a Pátria-Mãe...

UM BARCO NO TAPAJÓS - Oswaldo U. Lopes


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UM BARCO NO TAPAJÓS
Oswaldo U. Lopes

        Quando cheguei já era muito tarde, o barco ia muito longe, pude vê-lo se distanciando cada vez mais.

        A situação era aflitiva, terrível e lamentável. O que fazer? Como explicar que eu sabia da sabotagem sem me expor e sem meio de escapar depois de abrir a boca.

        Armênio ia feliz na gaiola, Tapajós abaixo. Fizera a denuncia contando tudo ao delegado. O lugar era pacifico, só tinha pescadores e comerciantes. Aquela história de ponto de desova de droga estava tirando o sossego de muita gente e introduzindo na comunidade um dinheiro marcado e destinado a comprar silêncios.

        Coitado do Armênio, caboclo simples, acreditara na figura impoluta do policial. Não sabia nem suspeitava que a propina já chegara na autoridade e esta já fazia parte da folha de pagamento do tráfico.

        O resultado foi aquele. Não apelaram para tiro, metralhamento de emboscada, nada enfim que chamasse a atenção dos federais. Uma taboa solta, dois tirantes frouxos,  e a gaiola iria para o brejo quando estivesse no caudal mais forte do rio.

        Ir para o brejo era modo de falar, porque não ia para o brejo de modo algum, ia era para o fundo levando Armênio e sua denuncia.

        Se eu gritasse, falasse ou tentasse algo provavelmente ia junto. Cozinheiro de Delegacia ouve certas coisas, mas é melhor não falar delas. O que eu faço?

        Eta, enrascada das boas. Não conheço muita gente e pro delegado é que não vale a pena contar. Afinal foi da boca dele que eu ouvi como iam se livrar do caboclo que estava no barco.

        Conversar mesmo só converso com os botos que aparecem no atracadouro atrás da delegacia. Será que me entenderiam? Afinal, éramos amigos, eu sempre arrumava umas sobras de comida para alimentá-los.

        Fui para o pequeno embarcadero atrás da cozinha e eles de pronto apareceram. Em vez de comida contei a história do meu amigo Armênio e do barco furado em que ele estava. Misturei gestos e palavras e eles sumiram. Será que tinham entendido?

        Sumiram e voltaram rápido na companhia, não acredito, de uma sereia. Fiquei meio gago e a outra metade bocó, mas o caso exigia presteza. Mesmo custando a acreditar no que via, expliquei o que acontecia para Cibele, pois esse era seu nome. O que aconteceu depois não adianta falar muito, a danada da sereia era poderosa.

        Sem demora a gaiola inteirinha chegou de volta. Todo mundo a bordo meio assustado com a água que entrara na embarcação. Muito discretamente cruzei os dedos nos lábios na direção do Armênio, caboclo esperto fez um sinal com a cabeça, desceu e sumiu.


        A encrenca estava só começando, mas pelo menos o jogo agora estava equilibrado. De um lado o poder da autoridade corrupta, de outro um sobrenatural gostoso de olhar, ainda mais que eu vira o olhar interessado que Cibele dirigira para o Armênio. Fiquei matutando com vontade de puxar uma cadeira, sentar e assistir a partida.

Um encontro na selva. - Ises de Almeida Abrahamsohn.



Um encontro na selva.
Ises de Almeida Abrahamsohn.

Era a primeira vez que eu vinha à Amazônia. Desde pequena eu me senti atraída pela imagem da remota e impenetrável selva permeada por rios tortuosos e igarapés efêmeros. Iria passar quatro dias em uma pousada distante dez horas de lancha de Manaus. Juan, um índio peruano, era o nosso guia.

Saímos às cinco da manhã, a melhor hora para observar pássaros. A trilha era bem conhecida de Juan que nos indicava plantas, insetos, ruídos e as enormes sumaúmas, mães de todas as árvores, cujas copas se alçam até 70 metros. Cuidadoso, o guia insistia para que ficássemos todos juntos para não nos perdermos. A copa das árvores esconde o céu e a vegetação mais baixa é tão densa que oculta a visão a mais de três metros. Os mateiros têm todo um sistema de referências na floresta que nós não percebemos.

Eu,  encantada em fotografar detalhes de folhas, insetos e troncos, de repente olhei em volta e não vi mais ninguém . Ouvia as vozes das pessoas e segui por uma trilha naquela direção apenas para descobrir dez minutos depois que estava perdida. Chamei alto o nome do guia algumas vezes, mas sem resultado. Que idiota... Com essa idade me perder nessa trilha que qualquer curumim saberia aonde vai dar! Certamente iriam notar a minha falta, mas após quanto tempo?

Estava em uma pequena clareira  de onde dois outros caminhos  estreitos se ofereciam como alternativa para prosseguir. Tinha medo de me afastar ainda mais das trilhas principais. Ainda tinha água na garrafa  e tomei um gole para aliviar a garganta seca. Fiquei pensando naqueles corajosos das expedições de Rondon no fim do XIX e começo do XX. Índios hostis, malária, febres várias, às vezes fome, que loucura!    Sentei num tronco meio podre, sobre meu boné, depois de verificar que não havia nenhum formigueiro. Fiquei naquela clareira perto de uma hora. Gritava ocasionalmente com a esperança de que me ouvissem, mas nada. Só o zumbido dos insetos e ao longe o ronco de um bugio. Já nervosa, com as pernas entorpecidas, as costas e o peito ensopados de suor  levantei-me para verificar de novo a trilha por onde vim e que já havia tentado percorrer sem sucesso.

Ouvi farfalhar no alto das árvores. Um macaco, talvez, mas o que avistei era um emaranhado de folhas e cipós saltando de um ramo a outro entre as altas copas. Ajustei a tele para fotografar. Impossível! Deslocava-se muito rápido e jogava pequenos cocos amarelos na trilha à minha frente. Na minha ânsia de fotografar  a estranha criatura fui caminhando pelo caminho marcado pelos frutinhos amarelos. E assim, de repente, me vi numa clareira maior que reconheci pelas duas sumaúmas; era onde Juan havia contado ao grupo sobre as míticas criaturas da floresta. Entre elas, Sel, o guardião da selva, protetor de árvores e animais, inimigo dos caçadores que, às vezes, ajuda incautos amantes da natureza a encontrar o caminho de volta.

 Quando contei o episódio com  a  estranha criatura revestida de folhas Juan  riu e comentou apenas:

 Até agora ninguém conseguiu fotografar o Sel!


Enfrentando os fantasmas - Ledice Pereira


                                 

Enfrentando os fantasmas
Ledice Pereira

O trem acabara de passar e Verinha, toda arrumada, sentou-se na mureta, desanimada.

Agora, só mesmo na manhã do dia seguinte. Estava desolada. Seu destino era uma empresa que oferecia uma vaga de contadora. Ela que acabara de ser formar em Ciências Contábeis.

O horário era perfeito, o salário razoável. Apenas a distância que a obrigaria a pegar o trem que a levaria à cidade grande.

Tinha que se programar melhor. O trem era pontualíssimo e não aguardava nem um minuto.

O jeito era voltar pra casa, buscar o jornal e procurar outras oportunidades. Tinha medo que aquela vaga já estivesse preenchida.

Foi caminhando lentamente em direção à sua casa e começou a ouvir um ruído estranho. Parecia uma risada seguida de um grunhido. Olhou em todas as direções com certa apreensão.

De repente o viu. Um ser esquisito, verde, que parecia vir em sua direção. Pôde ver aquela pele grossa, como se tivesse escamas.

Começou a tremer. Não conseguia controlar suas pernas. E a criatura se aproximando. Avistou uma loja de conveniência e para lá se dirigiu correndo. Havia alguns automóveis  abastecendo-se no posto em frente.

Assustou-se ao ouvir aqueles gritos horríveis que a tal figura emitia, conforme os carros chegavam ou partiam.

Os frentistas acalmaram-na. Estavam habituados àquela aparição. O monstro habitava a mata que circundava o local. Assustava quem passava por ali, mas não enfrentava o barulho dos motores e gritava assustadoramente quando os ouvia.

Verinha teve que convir que teria que se acostumar também a isso. Quantas mudanças a vida estava lhe reservando.

— Acho que terei que aprender a enfrentar as dificuldades que a vida colocar à minha frente. A começar por essa criatura horrorosa que jamais imaginei encontrar em minha vida.


Nada me fará desistir de crescer e amadurecer. E como meu pai sempre me diz: Hei de vencer!

Os protetores das florestas. - Ises A. Abrahamsohn

Os protetores das florestas.

Ises A. Abrahamsohn






Vocês podem nunca ter ouvido falar deles. São seres que protegem as florestas e os animais que lá vivem. O nome varia conforme o país e não importa muito. No Brasil podemos chamá-lo de Sel (de selva), nos países de língua inglesa podemos chamar de Jun (de jungle). A cara é parecida com a de humanos; tem braços e pernas longos e um rabo que o ajuda a saltar como macaco de um galho a outro. O corpo todo e os cabelos são cobertos por folhas verdes, ramos de árvores e no lugar de cabelos e barba tem um emaranhado de cipós e folhas. O nariz é saliente e pode cheirar  tão bem como o melhor cão farejador. E os olhos são como os dos felinos, capazes de enxergar mesmo quando está muito escuro. Conseguem perceber a presença de pessoas assim que entram no seu território.

Os homens raramente conseguem ver os Sels. Mesmo quando às vezes os percebem, pensam que são macacos escondidos na copa das árvores. Aliás, os Sel se camuflam perfeitamente na floresta, tanto nos países tropicais onde as árvores ficam sempre verdes, como nos países frios. Nestes  a vegetação muda de cor no outono, e também as cores dos Sels mudam para vermelho e marrom. Quando chega a neve do inverno eles ficam com o corpo branco com manchas cinza. Os Sels protegem os animais de várias maneiras. .Atiram cocos  ou pedras nos caçadores ou chamam nuvens de mosquitos e abelhas para afugentarem os intrusos. Também curam as feridas dos animais que se acidentam na floresta. Os Sels detestam os lenhadores clandestinos que roubam as grandes árvores. Atacam os ladrões com formigas mordedoras, e outros insetos.

Os Sels precisam de ajuda para patrulhar as florestas. Trabalham com uma turma de borboletas especiais. Borboletas vivem em geral em volta das florestas onde há flores que servem de alimento. Elas vigiam o entorno da mata e avisam  os Sels da chegada de intrusos. A maioria das borboletas tem vida curta. Mas as borboletas especiais vivem muito tempo.

Se a gente olhar com atenção o corpo dessas borboletas verá que se parece com um esqueleto de gente, mas na verdade é um esqueleto de Sel que é muito parecido com o humano. Os Sels, ao envelhecerem, se transformam nessas borboletas especiais e continuam a proteger a selva. Nunca algum humano conseguiu pegar um Sel ou uma das borboletas especiais,  mas eles continuam a proteger as florestas e os animais.