Dica a um Amigo - José Vicente J. Camargo



Imagem relacionada



Dica a um Amigo
José Vicente J. Camargo

A secura na garganta no fim de tarde abafado, pede insistentemente um gole refrescante do drinque predileto nesse dia tenso com o sobe e desce das ações e do dólar. O mais difícil é acalmar o nervosismo dos clientes da corretora. Muitos não se satisfazem só em ouvir que, após uma crise, esse é o comportamento normal do mercado financeiro:
− Hoje é hoje, amanhã é amanhã! É necessário ter paciência, a ansiedade é a inimiga dos bons negócios... Sua carteira de investimentos está bem posicionada.
Mas muitos replicam:  
− Você diz isso, porque o dinheiro não é seu!...
E assim, nessa lengalenga, com aquela vontade de mandar o fulano praquele lugar, vou driblando as horas, de um assunto no qual não tenho a mínima chance de interferir, a não ser, observar o vai e vem dos índices e repassar aos investidores as recomendações contidas nos boletins internos dos analistas. Mas essa tensão do mercado acaba se infiltrando em você, tencionando os tendões...
Entro no bistrô do francês, na esquina da Paulista com Brigadeiro, sento no balcão, com vista para a avenida mais financeira do país, e peço com gosto, ao barman Hervê, o que ele, já me vendo, começa a preparar... Ao ouvir o chacoalhar da coqueteleira e sentir a frescura antecipada do drinque, a calma vai se instalando, ajudada pela visão do céu azul rosado com traços amarelados do pôr do sol; a silhueta dos arranha-céus que se transformam, num anseio repentino de natureza e paz, em montanhas verdejantes; o trânsito intenso em marolas de mar; os transeuntes apressados em bando de gaivotas pousando nas areias brancas da praia...
A visão se apaga com: “À Sua Saúde!”, dita pelo Hervê.
Reparo que seu sorriso está mais pálido que de costume, seu olhar menos brilhante e o rosto mais triste:
− Foi atingido por alguma bala perdida?
− Não, sou de paz e amor! Responde Hervê. Comigo não tem violência! Só filmes românticos, vídeos de aventuras e boa conversa... A dor que sinto, vem das flechadas que recebo todos os dias do sorriso dela,  tão branco e suave quanto a camélia em flor; do seu olhar penetrante e sobretudo do andar rebolante, curvas perfeitas, que me tira do foco que tenho de ter, para servir bem a clientela. Desde que passou a almoçar aqui todos os dias, com mesa cativa, não posso admirá-la como gostaria, com raios fúlgidos de desejo, mas sim de uma cliente fiel. Vem sempre acompanhada de um cordão de engravatados que a rodeiam e a miram enfeitiçados, o que só faz aumentar seu charme de “femme fatale”. De real, só recebo um: “Bom dia”; “O drinque do dia, por favor”; “Obrigada, até amanhã” e a dor aumenta... Já penso em me transferir pra cozinha, longe da visão perturbadora, mas meu “métier” é o som vibrante da coqueteleira e não a magia dos temperos...
− Dor de amor se cura com outro! Digo. Você, com essa pinta toda de galã de novela, musculatura de Tarzan, deve ter um fã clube de invejar qualquer Don Juan.
− Nem tanto, responde Hervê. Tirando o joio, só se salvam alguns grãos, e, mesmo assim, nem tão apetitosos. Nada que se compare com a minha musa. E, com a mínima bola que me dá, sinto que vou ter de abraçar a solidão. É meu grão de ouro e não sei como prová-lo.
− Fácil! Vou de dar uma dica! Siga os instintos femininos. Se ela é Vênus por fora, é manteiga de bolo por dentro. Se vive rodeada de bajuladores, vai querer provar a cereja que está de fora. O desconhecido é, para pessoas desse perfil, um desafio a vencer. E lembre-se do velho ditado: “Nem tudo que reluz é ouro”...
Ofereça a ela, como cortesia da casa, um drinque. Receita própria, preparado para mulheres especiais. Deixe um clima de mistério no ar! Ao servi-la, faça essa sua tatuagem de bailarina no braço, tremer nos músculos. Se os acompanhantes olharem invocados, diga a eles que o drinque está disponível a todos, mas a gratuidade e a dança do ventre não. Essa ação repentina e, de macho, vai quebrar a cortina de gelo que a reveste e aguçar seu interesse por você. Verá que passará a olhá-lo diretamente nos olhos, a mirar seus gestos de mãos, dedos, penteado, e outros detalhes disfarçadamente. Mas atenção: essas pessoas detestam que deem uma de “gostosão” por cima delas. Vá devagar, seja humilde, ponha-se no seu lugar, comece a comer pelas beiradas, dê tempo ao tempo que atingirás o cerne do bolo “creme de la creme”...
Armandinho chega, como sempre, pontual no boteco do português, para o início do serviço de bar. O gerente lhe entrega um envelope fechado:
− É do Machado! Disse que hoje não virá, mas que você sabe o que fazer. Não entendi muito bem, mas, com cliente não discuto. Pede e eu faço. E depois, segredinhos de funcionários não são da minha conta, desde que cumpram o que exijo.
Armandinho abre o envelope e lê:
Caro amigo,
Não sei se sabe, mas sou jornalista. Trabalho no edifício da Gazeta aí em frente. Nas horas vagas, pego papel e lápis e deixo a mente fluir. É um bom exercício mental para lubrificar os neurônios com a idade avançando. Então resolvi escrever este conto para você, depois de encontrá-lo ontem desanimado com dores de amor. Uso cenários, nomes e personagens que povoam minha mente, mas a dica que dou, serve para qualquer um, em qualquer situação e lugar. Espero que a use e que lhe dê certo.
Em caso positivo, em retribuição, aceito ser o primeiro cliente “aux concur” a degustar o drinque que você criou para o concurso “Barman Brasil”, cuja receita guarda a sete chaves, e só passará a servir no bar, após vencer a disputa (dispenso a dança da bailarina!).
Em caso negativo, não desanime, continue com o bamboleio refrescante da coqueteleira. Você tem o perfil apropriado para a profissão. Musas não são eternas: hoje é uva, amanhã é passa…
E lembre-se:
“Dor de amor se cura com outra, se possível mais intensa e dolorida...”

Do amigo,
Machado


A RAZÃO MAIOR - Oswaldo U. Lopes



Imagem relacionada

A RAZÃO MAIOR
Oswaldo U. Lopes

        Sozinho na praia olhava a destruição da beira mar. Acostumado a viver dele e das coisas que nele viviam, o pescador solitário contemplava os restos de sua casa.

        Mulher e filhos tinham ido embora, viver no sítio do sogro, terra adentro. Ele mesmo ajudara a embalar as poucas coisas que ainda restavam, sentiu um engasgo ao se despedir deles, sobretudo das crianças. Pesaroso, descobriu ali que embora fossem estrelas de sua vida, perdiam para o mar que era a luz, a razão mesma de viver. O oceano era maior que tudo que viera antes e continuaria depois.

        Não quis ir! Era pescador e naquele mistério de céu, areia, sol e mar nascera e ali morreria. Nunca pusera as mãos na enxada, sulcar a terra nem sabia o que era. Plantação do que? Mandioca brava tinha a vontade e folha de bananeira para assar peixe era só esticar a mão que pegava.

        Por que o mar que era tão amigo ficou de repente tão zangado? Dera de rugir e morder levando embora nacos de areia, pedras e casas que encontrasse pela frente.

        Tão gentil antes,  agora rancoroso e violento. O barco, seu companheiro e ganha-pão, não afundara,  ainda flutuava o que permitia suas arremetidas em busca de comida, mas nem um canto seco para acender um fogo conseguia. Já comera peixe cru antes, mas mais por diversão ou quando virava a noite na embarcação, aprendera de ver e ouvir o quão perigoso era ter fogo a bordo. Comer “frutos do mar” crus agora era o de sempre.

        Somando bem eram quatro os que restaram. Pedro, Custódio, Júlio e ele, Bento. Todos, rostos curtidos, sofridos, mas que orgulhosamente se conheciam desde sempre, como pescadores.

        Isso tudo ia acabar, nem falavam para não entristecer mais, mas sabiam que não havia salvação, o mar que lhes dera sempre mais que o necessário, agora queria cobrar a sua parte.

SERVINDO A PÁTRIA - Oswaldo U. Lopes


SERVINDO A PÁTRIA
C. P. O. R.
Centro Preparatório de Oficiais da Reserva

Oswaldo U. Lopes





        No Brasil, no ano em que completa 18 anos, todo brasileiro, do sexo masculino, deverá se alistar para prestar o serviço militar. Poderá fazê-lo em uma das três divisões das forças armadas. Exército, Marinha e Aeronáutica. Servirá como recruta, pesadelo para os diferenciados da classe média.

        No meu tempo era possível, se você estivesse no fim do ensino médio, pedir adiamento por um ano. Foi o que eu e muitos outros fizemos nos apresentando no ano seguinte já como alunos da Faculdade de Medicina da USP.

        O pesadelo era servir como recruta, devido as terríveis histórias que eram contadas sobre a vida nos quartéis. A opção para quem não queria arriscar a sorte era ir para um Centro de Preparação de Oficiais da Reserva. Vida mais mansa, as atividades desses centros eram feitas aos domingos e durante as férias escolares (dezembro, janeiro, fevereiro e julho).

        No Exército era o CPOR, na Marinha o CIORM (Centro de Instrução de Oficiais da Reserva da Marinha). Na Aeronáutica, se você tinha brevê de piloto era automaticamente incorporado à Reserva e dispensado. Em São José dos Campos havia um Centro de Formação de Oficiais da Reserva, mas era formado pelos alunos que haviam ingressado no ITA.

        Os CIORMs existiam onde a Marinha tivesse atividades e esquadra, vale dizer Rio de Janeiro. Em São Paulo era simples: CPOR ou recruta.

        O quartel do CPOR em São Paulo localizava-se em Santana e ainda existe. Formava oficiais nas quatro armas: Infantaria, Cavalaria, Engenharia e Artilharia. Comunicações não era ainda uma arma. Era um detalhe da Intendência.



        Era fácil identificar as armas: a Infantaria era a Rainha já que era ela que fazia o domínio do solo. O que os alunos da Infantaria marchavam não estava no gibi, sempre a pé e carregando o fuzil.

A Cavalaria tinha um lindo hino:

“Cavalaria, Cavalaria tu és na guerra a nossa estrela guia.” Além disso, os alunos da Cavalaria eram aqueles que passavam de calção, tamancos e sacola, quando nós já estávamos indo embora, para dar banho e escovar os cavalos.

        A artilharia era a que carregava sempre uma tábua de logaritmos o que era motivo para piadas a respeito de um canhão sempre voltado numa direção diferente. Também eram escalados para dar salvas de tiro quando da presença de visitantes ilustres. Lembro-me de uma vez que saudaram o Presidente Português Craveiro Lopes (16 de junho de 1957). Ficavam a lavar canhões com água fervendo enquanto caíamos fora nos domingos.

        Na Engenharia, estavam os alunos da Poli e do Mackenzie, como sempre ensimesmados e estudiosos. Só entrava CDF de carteirinha.

        Havia também dois serviços: Intendência e Corpo de Saúde.

        Nos USA, que em seus quase 250 anos de independência, se viveram 20 sem guerrear foi muito, ambos serviços são considerados essenciais e importantes. A Intendência garante o suprimento para o avanço das tropas. Sem combustível, alimentos e munição não se combate.

        Eles também descobriram que os jovens que vão à guerra não cogitam de morrer pela Pátria, pensam no máximo que poderão ficar feridos e perceber que o serviço de saúde está perto e é eficaz, eleva muito o moral da tropa.

        Em Santana não era esse o pensamento. A Intendência era chamada de Escolinha Walita e na Saúde nem oficiais havia.

        Alunos da Escola Paulista de Medicina e da Faculdade de Medicina da USP, compunham a maioria da tropa do Corpo de Saúde. Nos apresentamos no dia 15 de dezembro de 1956 para iniciarmos nossa preparação como primeira turma.

        Nossa formação estava a cargo de três Sargentos.  Nicanor e Pires eram 3º Sargentos do Serviço de Saúde. Hugo de Miranda Duro era Primeiro Sargento, lotado na Saúde, mas certamente proveniente de alguma arma. Como era gaúcho, suspeito que da Cavalaria.

        Coube a ele a nefasta missão de transformar um grupo de paisanos, metidos a besta, por já serem alunos de Escolas Médicas, em soldados. Fez o que pode, dentro do Exército seu trabalho foi reconhecido, já era subtenente em 1959 e quando reformado em 1981, tenente posto máximo que poderia ter alcançado, não tendo feito carreira de oficial na Academia das Agulhas Negras.

        Logo nos primeiros dias estávamos em forma e ele fazia a chamada anotando com uma caneta os faltosos. Não sei por que razão os números eram de 1000 para cima, eu, por exemplo, era 1045.

        Em forma era modo de dizer todo mundo conversando com todo mundo na maior zorra e ele falando os números. Lá pelas tantas ele fez umas caretas e gestos de que a caneta não estava escrevendo. Calmamente jogou-a no chão e pisou em cima. Hoje olhando para trás, acho que ele tinha uma caixa delas, naquele momento os paisanos se deram conta de que o gajo era fogo, mosca passando fazia mais barulho que Airbus 330 voando baixo. Olhamos incrédulos para o sargento que seguiu com a chamada impávido.

        Aos poucos fomos aprendendo. Quando em grupo apresentávamos armas à bandeira, ao comandante e ao terreno. Terreno? Pois é era assim que tratavam o solo. Se falassem em continência ao solo apresentar armas, teríamos entendido melhor, por causa do hino:

“Dos filhos deste solo és mãe gentil”

        Terreno, para a paisanada era lugar baldio ou espaço onde se construía uma casa. Eles queriam dizer que os soldados se curvavam em respeito ao solo!

        Aprendemos também o Hino da Saúde que era um primor de militarismo:

“Nós soldados do Corpo de Saúde
Sem temer o rugido da metralha
Aos heróis que tombam na vanguarda
Lhes levamos o socorro na batalha”

        Os hinos militares são cantados e ensinados para sugerir e criar um espírito guerreiro nos jovens. Esse, sei não. Dos alunos da Saúde que eu conheci metade tinha medo do rugido da metralha e a outra metade era boa de corrida.

        Naquele tempo eram frequentes os bailes ditos Brancos (debutantes no Brasil, quinceaneras na versão espanhola), nos Colégios Femininos: Sion, Des Oiseaux, Notre Dame, Assunção entre outros. Tudo puxado a vestido comprido e smoking. Você ia ao baile que acabava às 4 horas da manhã, dava uma passada em casa, punha a farda e sem dormir tocava para a Rua Voluntários da Pátria em Santana. O quartel ficava na Alfredo Pujol que era travessa da Voluntários, rua importante onde circulava o bonde. Se você estava fardado não pagava passagem.

        O Sargento Duro esperava por nós, no domingo, pontualmente às 06h30min, com a pergunta certa:

— Foram no baile ontem?

— Sim, Senhor.

— Então vamos conhecer Santana.

        E nos fazia marchar pelo bairro durante horas a fio, a mais das vezes carregando fuzil.  Voltando ao quartel anos depois, reparei que aqueles terrenos  estavam agora ocupados por prédios de moradia de onde, nas janelas, as moças espiavam os rapazes marchando e fazendo ginástica. Acho que até ouvi assobios. Outros tempos...

        O material que usávamos nas aulas ou para marchar era antigo de fazer dó. Os fuzis eram da Primeira Guerra Mundial. Não havia repetição, para cada disparo você tinha que acionar o ferrolho.

        Duro, compenetrado na sua missão de nos fazer soldados levou-nos ao Barro Branco para exercícios de tiro com fuzil e pistolas.

        Na Saúde, você está se perguntando? Pois é, na Saúde! Serviço que nunca anda armado. Lembro-me do Prof. Alípio que estivera na Segunda Guerra Mundial como major médico da FEB, contando que se você fosse feito prisioneiro pelo Exército Alemão, sendo da área de Saúde, era imediatamente solto, desde que não portasse arma. Havia um entendimento tácito de que você atenderia, como de fato atendia, os feridos de ambas as partes. Se você estivesse armado, era considerado combatente e feito prisioneiro.

        O curioso é que os médicos voluntários que vinham da área civil, não carregavam armas de nenhuma espécie, já os médicos de carreira do Exército carregavam sempre uma pistola, pelo que muitos acabaram prisioneiros.

        Ao fim e ao cabo ficamos mais próximos do Sargento Duro que nos contava então coisas mais pessoais. Como a que ouvira de outro sargento telegrafista em Mato Grosso que recebera um telegrama do Ministério da Guerra, em função de um desfalque havido na unidade, nos seguintes termos:

— Apure-se o culpado e puna-se um sargento.

        Um telegrama e tanto para quem era da classe.

        Vendo hoje os jovens militares em patrulha no Rio de Janeiro, envergando uniformes e armamentos modernos, sinto que houve evolução. Durante nossa formação, nos levaram ao Segundo Batalhão de Saúde, hoje desativado, que ficava nos fundos do Hospital Militar no Cambuci e lá nos apresentaram uma arca de saúde. Era um daqueles baús em que as moças casadoiras de antigamente guardavam seus enxovais. Era material usado na Primeira Guerra que terminara em 1918! Continha faixas de crepe, esparadrapos, gazes etc. Não nos permitiram nem ficar muito próximos dela.

        Cheguei a fazer serviço de guarda no portão do quartel. Frio danado empunhando um fuzil sem balas e tiritando, adormeci, só acordando com a aproximação do Sargento da guarda a me recomendar, não durma.

        Lembro-me da descrição que Fernando Sabino (ele serviu o CPOR em Belo Horizonte na Cavalaria 1941-44) fez, dos cavalos do CPOR local, que escapando, invadiram Belo Horizonte numa noite em que ele estava de guarda. Vivíamos num mundo ingênuo e sorridente, sem nos darmos conta.

        Soube que mais tarde, após 1968, as guardas eram feitas com fuzis armados e ordem explícita de atirar se o indivíduo não se identificasse e chegasse muito próximo.

        Éramos jovens e tínhamos sonhos típicos dos anos dourados. Ao nosso redor, no entanto, os fatos aconteciam e os dias sombrios se acumulavam como nuvens de tempestade.

                Por exemplo, João Franco Pontes, coronel da cavalaria, aliás, exímio cavaleiro, que assinou na qualidade de comandante do CPOR meu certificado de conclusão da primeira fase, foi um dos 81 signatários do famoso Memorial dos Coronéis de fevereiro de 1954 que iniciou a crise que terminou no suicídio de Getúlio Vargas, em agosto desse mesmo ano.

        Como “prêmio” recebeu já no governo Juscelino o comando do CPOR, tropa de paisanos que sequer dormia no quartel e nem tinha mobilidade nem características de unidade de combate. Comparado aos Regimentos de Infantaria e Cavalaria do II Exército, era uma conjunto nada confiável para um levante.

        É bom lembrar que entre os coronéis que assinavam o tal Manifesto estavam nomes como: Golbery do Couto e Silva, Amaury Kruel, Jurandir Bizarria Mamede, Silvio Couto Coelho da Frota, Ednardo D’Avila Mello, Euler Bentes Monteiro, Alfredo Souto Malan etc. Todos com participação expressiva e ativa na tomada do poder pelos militares em 1964.




AO CAIR DA TARDE (Maratona Literária) - Maria Luiza Malina



Resultado de imagem para por do sol na estrada


1 – MARATONA - CONOTATIVA

AO CAIR DA TARDE
Maria Luiza Malina

A calmaria da estrada ansiosa esperava o entardecer. Era o tempo em que ela mesma se recolhia com o empoeiramento da vegetação. Serenamente os poucos passantes acompanhados de seus cães iam rareando. Recolhiam-se em suas casas à espera do fim do dia. Aos poucos, o espetáculo da natureza se repetia cedendo lugar à misteriosa escuridão que, ganhava seu fulgor com a luz amarelada das candeias, o fogo zunindo, a lenha aquecendo a água para o merecido banho antes da janta. Tocos de velas para a hora da Ave-Maria, iluminam as silhuetas da família em prece. Os pequenos repousam de barriga cheia. Os travesseiros de macela, aguardam aflitos, o roçar dos rostos rudes das mulheres aprumadas com seu cheiro de água-de-rosas nos longos e molhados cabelos.

A noite cai, as românticas luzes amareladas se apagam sem pressa.  A vida silencia.

****

2 – MARATONA – ANÁFORA

O MENSAGEIRO
Maria Luiza Malina

Um toque na porta, desperta um turbilhão de pensamentos sensatos e insensatos; um toque na porta suave sobressaltou-lhe mais do que um forte toque, na certeza era alguém que conhecia os hábitos da casa. De fato, aquele toque na porta era marcante. O mensageiro de boas notícias chegava devagar e se ia como um vento que passa sem ser percebido. De poucas palavras entregava as encomendas e pedia um copo de água.

Um toque na porta, tornou-se raro. Com o modernismo as campainhas roubaram o som dos toques nas portas. No entanto, habitualmente o mensageiro, sem qualquer correspondência tocava à porta daquela casa em busca de seu copo d’agua. De idade avançada agradecia e seguia o caminho. Nos meses chuvosos, a água era substituída por um copo de café com leite quente. Agradecia e, cabisbaixo se ia.

Os toques na porta foram se rareando. Os utensílios destinados a ele, continuavam no canto da prateleira na cozinha, um tanto embaçados. Num certo dia de inverno, a porta ressente ao ser tocada de maneira mais forte. Rapidamente, a senhora Julieta se recorda do mensageiro e, depois de uns instantes de preparo, abre a porta com o copo quente de café à mão. Sobressalta-se. Ao invés do mensageiro, era um esfarrapado pedinte. Ao estender a mão ela o reconheceu. Era o então mensageiro, abatido, doente e envelhecido. Viera agradecer-lhe todos os copos de água e café que recebera enquanto trabalhava, dizendo que era o único alimento que recebia do dia, pois com a esposa enferma dedicava tudo a ela. Ao sair fechou o pequeno  portão de ferro com cuidado. A poucos passos desfaleceu. A senhora Julieta nunca mais soube alguma notícia do mensageiro, nem mesmo seu nome.

****

3 – MARATONA – ANACOLUTO

O COLIBRI
Maria Luiza Malina

Hoje vi um colibri, não me lembro da data em que fiz um conto sobre “O sumiço do Beija-flor”. Na verdade naquela ocasião, por causa dos produtos chineses disponíveis no comércio, estava preocupada com a imitação perfeita das flores de plástico nos bebedouros.

No corre-corre das grandes cidades, os bebedouros ficam presos nas sacadas dos edifícios ou nos jardins das casas, com pouca manutenção; digo higienização, uma vez que os mesmos recebem água açucarada e atrai outros insetos, criando um foco de bactérias em que, o coitadinho do Beija-flor espeta seu bico sugando o falso néctar e, é aí que acontece a “coisa”, seu bico fica impregnado destas bactérias e em consequência ele não pode mais se alimentar.

No beija-beija da flor o Beija-flor encontra a morte, na flor que não é uma flor, plante uma flor!

****

4 – MARATONA – POLINÔMIO CRIATIVO:
vento-chapéu-fotografia-cabelo-bicicleta-sorriso-olhar-coração.


O VENTO E A FOTOGRAFIA
Maria Luiza Malina

O coração palpitou demais quando o vento derrubou o chapéu, mal consegui tirar a fotografia. Do olhar escondido pelo longo cabelo, só o sorriso pude registrar quando a bicicleta passou.


ADEUS, PARA NUNCA MAIS - Maria Luíza Malina



Imagem relacionada


ADEUS, PARA NUNCA MAIS
Maria Luíza Malina

Uma caneca de café bem quente, naquela gaveta da estante as notícias das cartas nunca abertas acumulavam velhas notícias.

Percorreu-me um calafrio.

Levantei-me das minhas próprias cinzas.

Se o fiz foi para não sair machucada, de espinhos bastam os catus e as roseiras, simbolos de proteção e amor. A vida continuava com aquele nó na garganta, conheci todos os produtos naturais para aliviar o incômodo que se escondia dentro de mim.

Um dia pulei fora, sem mais nem menos, num espaço de tempo branco, diria eu... Tornou-se visível a minha frente, a passos despassados em câmara lenta a imagem que me captaria por toda uma vida.

Garboso. Uma simetria invejável. Olho no olho. Volitante desejo de um destino se concretizando dando asas à imaginação. Um desavisado tropeço nos jogou de encontro, um ao outro, em um apertado abraço de socorro, espalhando risos por entre os traseuntes. Lá estávamos. Sentados na cinza sarjeta como se fosse o braço do melhor sofá do mundo. Ríamos em desconversas de não sei de quê, talvez jogávamos a poeira do passado conversando sobre o presente.

O “adeus, para nunca mais” que tanto me feria, os desencaixei sem lembranças, eram apenas envelopes fedentamente amarelecidos. Nunca mais nos separamos.


SEDE QUE DOI - (A moda de Cordel) - Oswaldo U. Lopes




SEDE QUE DOI  (A moda de Cordel)
Oswaldo U. Lopes

                               A ilha é seca faz tempo
                               Procurei água não achei
                               Achei foi vento, muito vento
                               Lembrei dela que pra trás deixei
                               Sede quando pega dói
                               Parece pedra que girando mói

                               Que disse o barqueiro risonho
                                Procure a cacimba do Padre
                               Pareceu-me muito bisonho
                               Conversa parecida a de comadre
                               Agora estava eu tristonho
                               Querendo ajuda de compadre

                               Procurando a maldita cacimba
                               No fundo da rocha ou pendurada no alto
                               Que seca não fosse e, pimba
                               Minha sede matava num salto
                               Deus protege os ignorantes
                               Que sofrem mal de amor, os amantes

                               Será que ela vai sentir saudade
                               Amor que no começo era amizade
                               Virou paixão, sofrimento de ausência
                               Que de tanto sofrer virou sofrência
                               E agora ia se tornar solidão
                               Mas não ia ter fim, só apartação
         


                              
                              

Improvável resgate - Ises de Almeida Abrahamsohn


Resultado de imagem para Bêbado e garrafas vazias

Improvável resgate
Ises de Almeida Abrahamsohn

         ̶  Ei, doutora! A televisão quebrou. Me arruma algum aí pra consertar.

        Célia olhou na direção daquela voz áspera. Por detrás de uma cortina de pano escuro esticada na frente do pilar do viaduto apareceu a cabeça do homem. Jovem ainda, calculou a moça habituada às caras dos moradores de rua. Devia ter entre trinta e quarenta anos.

        O rosto escanhoado e as roupas surradas, porém limpas destoavam dos seus fregueses habituais.

           Este está há pouco tempo nas ruas. Vamos lá a escutar sua história, pensou a assistente social.

        Elpídio estava há um ano em São Paulo. Viera de uma sonolenta cidade da Bahia perto da divisa com Minas. Falava bem, tinha segundo grau incompleto. Profissão definida não tinha, mas já havia trabalhado como garçom, ajudante de pedreiro, lavador de carros, e auxiliar de portaria na Bahia e em São Paulo.

        Por que morava na rua? O que acontecera com os empregos? Célia perguntava por perguntar, tinha que fazer o cadastro, sabia que as respostas eram tingidas pela inspiração do momento. Não tinha família, nem lá nem cá. Os empregos eram temporários, a carteira assinada prometida não acontecia, era despedido antes de três meses, tinha ficado doente...  

        Por que foi despedido?

          ̶  A crise, doutora, foi a resposta ensaiada. Mas Célia conhecia várias outras possíveis causas. Fazia parte de seu treino. Suspeitou... Mas não havia como obter dele a resposta.

        A história era parecida com muitas outras que escutava diariamente, e  devia ser, até certo ponto, verdadeira. Porém, este cara tinha ainda chance de sair das ruas. Convidou-o para tomar café no bar da esquina. Depois da média reforçada com pão e manteiga o rapaz voltou ao pedido do dinheiro para a televisão. Célia duvidou da existência do aparelho. Elpídio insistiu em mostrar. Afastou a cortina que ocultava a moradia dos olhares de curiosos.

        De fato, lá estava a televisão, além de lâmpada e até um forno elétrico todos de uma gambiarra dos fios da iluminação sob o elevado. O rapaz tinha montado sob o viaduto a moradia com cama dobrável, cadeiras e até um improvisado lavatório com bacia e um espelho de moldura entalhada dourada de potencial valor para algum pseudo antiquário.

        ̶  Tudo material descartado que ajeitei, falou orgulhoso.

Célia observou que o espaço era varrido e limpo.

O rapaz apontou a TV e explicou.

        ̶  É o nosso divertimento. Meu e dos colegas que moram aqui embaixo. A gente vê a novela, o futebol e toma umas cervejinhas.

        Célia se comprometeu a voltar e a tentar arrumar outro aparelho. Também o cadastrou para um eventual emprego.

        Voltou uma semana mais tarde com a reposição da TV e a oferta de um emprego numa marcenaria perto de sua casa onde ele poderia também dormir num cubículo no fundo da garagem.

        Encontrou de novo Elpídio após um mês, já instalado e trabalhando na marcenaria. Tudo dando certo, foi a informação. Gostava do trabalho, fazia de tudo e pensava em tirar carta de motorista para poder guiar o caminhão de entregas. O rapaz, agora melhor vestido e calçado, com o cabelo aparado não mais lembrava o antigo morador de rua. Convidou Célia para uma pizza na padaria da esquina chamando-a de seu anjinho protetor.

        Passado mais um mês, Célia foi à marcenaria procurar Elpídio para fazer o seguimento social. O rapaz estava sumido há cinco dias, mas deixara todos os pertences no quartinho. Não ligou, nem deu satisfação. Iam entrar em contato com ela se ele não aparecesse em uma semana.

        Antes de verificar nos hospitais foi até os baixos do viaduto. Achou-o semi desacordado, estirado sobre um colchão imundo, rodeado de garrafas vazias em frente à velha TV trombeteando algum noticiário de meio-dia.

        Célia suspirou. Então era este o problema de Elpídio: dipsomania, uma das formas de alcoolismo mais difíceis de tratar. Ao acordar era até possível que não se lembrasse da bebedeira. Célia teria que convencer os patrões a aceitá-lo de novo no emprego e encaminhar o rapaz para tratamento. Iria funcionar? Não sabia, mas  tentaria. Anjos, mesmo os terrenos, não desistem fácil de suas missões.