Ao Pé da Cruz - José Vicente J. Camargo


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Ao Pé da Cruz
José Vicente J. Camargo

Trim, Trim, Trim!

Com o susto detetive Galvão faz um gesto brusco com as mãos, esbarra na xícara de café quente, deixa cair na calça, solta um palavrão e atende:

− Alô! Quem é?

− É o Guilherme! Vou direto ao assunto:

 “ Encontraram agora há pouco mais um corpo de homem coberto com véu negro. Desta vez foi num dos altares laterais da igreja Matriz. Tem um corte profundo na garganta, igual aos outros. Não há dúvida que se trata do mesmo assassino ou...assassina.

− Em qual altar? Pergunta Galvão

− No de Jesus Crucificado.   O corpo está debruçado com a cabeça ao pé da Cruz. A polícia técnica já está no local colhendo digitais.

− Feche a igreja! Ordena o detetive. Não deixe ninguém se aproximar, nem mesmo o padre. Por enquanto todo mundo é suspeito. Vou trocar de calça e vou pra aí.

− Trocar de calça? Que negócio é esse? Você tá com alguém aí? Pergunta o auxiliar em tom jocoso.

− Deixe as piadinhas de lado! Estou sozinho em casa quebrando a cabeça nessa investigação. Foi o susto da campainha do seu telefonema que me fez derrubar café na calça. Agora é seguir as pistas que tenho na cabeça: todas as vítimas são homens e todas as cenas dos crimes tem algo relacionado com a Paixão de Cristo: Cristo Morto, Cristo na Cruz, Cristo Ressuscitado, e o mais interessante: todas as vítimas cobertas com um véu negro. A primeira vítima foi encontrada na sacristia da igreja da Boa Morte. Tinha no pescoço uma corrente com crucifixo de ouro que, apesar de valioso, não foi roubado. A segunda, encontrada no cemitério da mesma igreja, foi esfaqueada junto a um túmulo decorado com a escultura da ”Pietá”.

− É, você tem razão! A terceira vítima, na igreja de São José, estava no altar do Cristo Redentor. Boa pista essa sua...

− Concordo! Diz Galvão, tropeçando na calça que estava trocando, fazendo-o bater com a cabeça na porta do armário − novo palavrão se faz ouvir no pequeno apartamento de quarto e sala próprio para solteirões, como ele, na faixa dos cinquenta anos − Doravante vamos nos concentrar nesta pista! Peça na secretaria das igrejas a lista dos fiéis que mais frequentam as atividades religiosas, os que pagam o dízimo, os que coordenam as pastorais, etc. Numa cidade de médio porte, a lista não deve ser muito grande...

 Na igreja Matriz, o detetive Galvão recebe o relatório preliminar da polícia técnica:

“Não há vestígios de digitais no local do crime! O assassino usou luvas. Encontrado fio de cabelo loiro, de homem”.

Guilherme se aproxima e lhe entrega a lista dos paroquianos mais assíduos das três igrejas e comenta:

− “Cinco desses paroquianos constam na lista das três igrejas: três mulheres e dois homens. Uma delas, é a cuidadora da casa paroquial onde moram, além dela, padre Anselmo, padre Duarte e padre Luís, responsáveis pelas igrejas da Boa Morte, de São José e da Matriz. Ela cuida da faxina, da cozinha, das compras e das roupas. É, apesar de jovem, viúva e sem filhos, muito devota e discreta – faz questão de manter em segredo a rotina da casa e dos padres. Há boatos maldosos que ela é também “dama de companhia” deles. A segunda, uma solteirona de meia idade, não esconde que é apaixonada por padre Anselmo. Está presente em todos os atos religiosos que ele celebra. Assiste todas suas missas, sentada na primeira fila. Só comunga e confessa com ele. Desde que o noivo a deixou, no dia do casamento, usa luto da cabeça aos pés. Na igreja, cobre o rosto com um véu negro. A terceira das mulheres é uma ex-freira que abandonou os votos por incompatibilidade com as regras do convento e hoje ensina catecismo para crianças nas três igrejas. É bastante introvertida, não gosta de falar do seu passado de freira e chama a atenção por passar horas contemplando o altar da Crucificação. Quanto aos dois homens: um é o Antonio − sacristão das igrejas. Órfão, foi criado em seminário de padres até os vinte e um anos, quando, já noviço, desistiu da batina, casou e hoje é esposo e pai exemplar de quatro filhos. O outro é um senhor de terceira idade, aposentado, cujo passatempo é frequentar igrejas e fazer promessas. É ultraconservador, detesta comunistas e de tudo que seja contra a moral e os bons costumes. É membro honorário da associação “Deus, Família e Propriedade”.

− Vamos seguir a rotina desses suspeitos e ver se descobrimos algo mais, responde Galvão. Contudo, não podemos descartar a possibilidade de uma outra pessoa, não tão chegada à igreja. Mas, tratando-se de crimes tão peculiares só pode ser algum psicopata ou...

Foi então que a ficha cai na mão do detetive! Chama o auxiliar de volta e ordena:

− Pesquise junto a hospitais, clínicas, médicos psiquiatras, serviços sociais que cuidam de pessoas com distúrbios mentais. Veja se têm como paciente, algum desses suspeitos ou outros que odeiam tudo que tenha a ver com religião. Não deve ser difícil, já que a cidade não é nenhuma metrópole...

Apresse antes que outro crime ocorra...

Auxiliado por outros investigadores, Guilherme faz uma varredura nos locais indicados. Num posto de saúde consta o cadastro de uma mulher esquizofrênica, que durante os surtos da doença, em delírio, esperneia e grita para salvá-la do fogo do inferno e solta palavrões contra algo − ainda não bem definido pelo médico – que tem a ver com sangue, cruz, escuridão, manto preto...

Dia seguinte, na chefatura, Guilherme apressa-se:

− Chefe! O esforço valeu! Encontramos a ficha de uma paciente na Santa Casa, que bate com a da suspeita ex-freira que ensina catecismo.

− Mas, indaga Galvão, como pode uma mulher doente e franzina como essa, que parece não fazer mal a uma mosca, ter coragem de matar a sangue frio homens bem mais fortes e os colocarem nas mais estranhas posições? Só se teve a colaboração de um ou mais homens. Portanto vamos ter que continuar a busca... Mas, espere! A ficha diz que ela deu entrada na Santa Casa pelo SAMU, vindo da Matriz, onde teve um surto de esquizofrenia. Quem chamou foi o Sr. Antonio, sacristão. Agora a coisa começa a esquentar. Vamos visitar o sacristão e saber mais sobre esse surto ou, melhor ainda, vamos primeiro falar com a dama de luto, apaixonada pelo padre Anselmo. Ela não perde uma missa, com certeza sabe algo.

No casarão antigo, estilo português, de paredes azulejadas, com portas e janelas de pinho de Riga, abre Dona Gertrudes, que ao ver os dois homenzarrões na soleira da porta, recua e tenta fechar, mas é barrada pelo detetive:

− Senhora, somos da polícia! Só queremos algumas informações – muito sutil, lembrando da paixão dela, o detetive acrescenta: sobre padre Anselmo...

Ouvindo a palavra mágica, Dona Gertrudes não só os manda entrar, conduzindo-os à sala de piano, como também pede à empregada abrir as janelas e trazer café com amanteigados.

− Ao vosso dispor, diz aos visitantes, trocando a sisuda carranca de sempre por um traço de sorriso que contrasta com a vestimenta negra.

O detetive, ajustando-se na cadeira de palhinha, inicia usando a mesma astúcia da palavra mágica:

− Padre Anselmo está muito preocupado com os crimes que vêm ocorrendo nas igrejas da cidade. Queremos ajudá-lo e elucidar o mais rápido possível, tais afrontas à lei de Deus. A Sra., devota que frequenta diariamente a igreja, presenciou o surto que acometeu a professora de catecismo, que foi socorrida pelo sacristão Antonio?

− Jurei, responde ela, perante Cristo na Cruz, manter segredo de tantas injúrias proferidas. Mas, se é para o bem do padre Anselmo, digo que a professora era o próprio Satanás contorcendo-se e mandando ao fogo do inferno nosso Salvador – benze-se três vezes e continua − só se acalmou quando o sacristão lhe abraçou com força e disse baixinho palavras que não entendi, pareciam ser em latim. Logo chegou o SAMU e a levou para a Santa Casa. Meu espanto aumentou dia seguinte, quando, já recuperada, ela voltou a ensinar as crianças, numa boa, os mandamentos de Deus. E aumentou mais ainda, quando a vi, após a aula, ir à sacristia falar com Antonio, de portas fechadas. E esta rotina vêm se seguindo desde então.

O detetive mira Guilherme, faz um aceno positivo como a dizer “xeque mate”, levanta e ao despedir-se de dona Gertrudes, confidência no ouvido:

“Obrigado pelo segredo! Padre Anselmo quando souber, mal vai poder dormir de tanta alegria. Com certeza sonhará com a senhora”...

Chegando na Matriz, os dois se dirigem à sacristia, onde encontram Antonio nos preparativos para a próxima missa. Usando sua astúcia costumeira, o detetive vai direto ao assunto:

− Queremos lhe interrogar sobre os crimes ocorridos por aqui.

Antonio perde a calma aparente, agita-se e gaguejando responde:

− Em que que posso ser útil? Não presenciei nenhum deles. Só sei o que a imprensa publicou.

− Mas o senhor fala latim, foi criado em seminário de padres, conhece bem a professora de catecismo que, como o senhor, também deixou o hábito por “força maior”. Gostaria de saber que força maior foi essa. Por acaso deixou de acreditar em Deus ou foi uma conduta imprópria de algum colega ou superior?

As pernas do sacristão amolecem, seus ombros se curvam e comenta:

Nos ataques de surto, ela amaldiçoava a Cruz que a traiu, o Senhor que permitiu tais agressões no silêncio da clausura, tudo em latim. Eu, entendendo a língua, descobri que ela passara pelo mesmo infortúnio que eu, de assédio sexual. Recuperada, contei a ela minha história, quando meu professor de teologia me punha de castigo em seu quarto, até recitar de cor, os principais salmos do evangelho. Como não conseguia, me pedia compensações...  Então ela e eu passamos a nos identificar cada vez mais. Só que sua sequela foi mais profunda que a minha. A esquizofrenia a deixou a margem da vida, enquanto, no seu interior, crescia o desejo de se vingar de tudo que lembrasse seu confessor: o crucifixo no peito, o negro da batina, o quadro da crucificação na parede do quarto.

 − Mas vocês dois tão franzinos, como conseguiram apunhalar as vítimas bem maiores e as colocarem em posições tão esquisitas? Pergunta o detetive.

− Aí é que o Sr. se engana! Contesta Antonio. Nós não matamos ninguém! Ela, nas crises, berrava vingança, mas eu a persuadi de tais intenções. É Ele no céu, que dará a quem for, o castigo merecido. A nós, mortais, cabe acatar Sua vontade.

Essa declaração, foi como uma ducha de água fria arrancando os louros da vitória da cabeça do detetive. Mira o colega que o acompanha e questiona:

− Voltamos à estaca zero?

− Talvez não! Intervém Antonio. Tenho notado nas últimas semanas, a presença de um homem loiro e forte em quase todos os atos religiosos. Ele se posiciona atrás de uma das colunas da nave principal, e, quando o miro, ele se disfarça virando de lado. Desconfiado, passei a observá-lo escondido. Notei que ele olha fixamente para dona Gertrudes, que, como sabem, assiste diariamente as missas.

Imediatamente, Galvão relaciona a cabeleira loira do sujeito com o fio de cabelo loiro achado pela polícia técnica no altar do último crime. Uma ducha, desta vez quente, lhe recupera o ânimo e indaga:

− Vi que a igreja possui câmaras de vigilância bem posicionadas. Requisito as fitas em nome da investigação. O Sr. e meu assistente as analisarão para identificar o tal homem loiro. Enquanto isso, vou fazer mais uma visitinha a Dona Gertrudes.

Antes de deixar a Matriz, pega três santinhos que estão à disposição e retira emprestado da lapela do sacristão, um alfinete do Coração de Jesus.

Na soleira da porta, nem precisa tocar campainha. Dona Gertrudes abre, estampando o tracinho de sorriso:

− Recado do padre Anselmo? Pergunta

− Ainda não! Responde o detetive. Em breve, com certeza. E não será recado não! Uma visita em pessoa para agradecer sua colaboração.

O efeito não poderia ser maior! Na sala de música pede à empregada, além do cafezinho, servir suco, bolo e compotas de doces – preparadas por ela – com queijo fresco da fazenda. Por sua vez, o detetive lhe entrega, respeitosamente, os santinhos e o alfinete do Coração de Jesus: “para as orações pelo rápido desfecho dos crimes que ofendem o Salvador”. Vendo a luz brilhar nos olhos da corola, Galvão ataca:

  O sacristão Antonio me confessou que a Sra. é a paroquiana mais fiel aos mandamentos de Deus, e que já foi noiva!

Dona Gertrudes cospe o resto de chá, engasga com o bolo e protesta:

− Esse Antonio não tem o mínimo respeito por mim. Diz coisas das quais não sabe. Mas, se for para apressar a visita do padre Anselmo, digo que sim. Fui noiva de um interesseiro que só pensava na minha herança. Meu pai não aprovava o casamento, mas, inocente, insisti. No dia do casório, meu noivo soube que meu pai só consentiria a união com separação de bens. Aí o judas me abandonou e fugiu da cidade. Nunca mais soube dele.

− Não teria por acaso uma foto desse infiel, usurpador de donzelas? Indaga Galvão. É muito importante. Prometo guardá-la a sete chaves e peço ao padre Anselmo devolver-lhe pessoalmente.

Novamente a palavra mágica age como pó de “pirilim – pinpin”! Ela levanta sem dizer nada e volta com um envelope amarelado. Abre e retira uma foto dizendo:
− Só guardei essa por que estão meus pais e irmão! É do jantar de noivado. As demais queimei. Meu pai era católico fervoroso, presidente da ordem dos marianos e muito amigo do cônego Martins – que Deus o tenha – que influenciou meu pai contra meu casamento com tal libertino, caçador de dotes, querendo dar o golpe do baú.

− Esta foto basta, afirma o detetive. Não se preocupe, só vamos checar uma pista. A Sra. não tem nada a temer. A devolvo ao padre Anselmo para entregar-lhe.

− Avise-me antes por favor. Tenho de preparar mais compotas e amanteigados para tão ilustre visita.

Mal chega na chefatura, corre em sua direção o auxiliar Guilherme:

− Conseguimos identificar o loiro no filme, fizemos uma foto, e dado que morou na cidade vários anos, é muito conhecido na redondeza. Já sabemos até onde se hospeda: Hotel Majestic!

O detetive a compara com a foto que tem no bolso e exclama:

− Acertamos na mosca!  Expede um mandado de prisão e peça à perícia comparar o cabelo dele, com o fio de cabelo encontrado na cena do crime.

O procurado é pego em flagrante dando uma de “Don Juan” encima da filha de um rico comerciante da cidade. Na delegacia, após a confirmação positiva da perícia, confessa que praticou os crimes por ódio da igreja, que o impediu de passar a mão na fortuna da noiva, empurrando goela abaixo sua doutrina ultrapassada a ela e ao seu pai. E, cada vez que vê a noiva, seu ódio cresce e o leva a praticar tais crimes.

− E porque o manto negro cobrindo as vítimas? Indaga Galvão

− É para lembrar à igreja, o que sua intromissão na vida alheia pode causar. Um exemplo disso é justamente meu caso, que desde então vivo fugitivo, e da minha ex-noiva, que passou a vestir-se de negro e a sofrer na solidão. Tinha interesse sim na sua fortuna, mas isso não quer dizer que não seria um bom esposo e pai de família.

“Fim de jogo”! Exclama Galvão.    

Retornando à escrivaninha de sua sala, encontra um boletim da chefatura informando:

“Senhora Dolores Soares, professora de catecismo em várias igrejas da cidade, teve um surto de esquizofrenia na igreja da Boa Morte e, subindo no altar da Crucificação, retira a ponta da lança de um dos carrascos e a crava no peito. Socorrida, foi levada para a Santa Casa onde já chegou sem vida”.

Galvão reflete:

“Pelo menos, no último ato, teve a presença Dele...”


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