A polêmica (Conto) - Artur Azevedo



O Romualdo tinha perdido, havia já dois ou três meses, o seu lugar de redator numa folha diária; estava sem ganhar vintém, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado por uma quimera da juventude, se lembrara de abraçar uma carreira tão incerta e precária como a do jornalismo.

Felizmente era solteiro, e o dono da "pensão" onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários.

Cansado de oferecer em pura perda os seus serviços literários a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando para sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos de consideração e renome.

Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscípulo no

Colégio Vitório, a quem jamais ocupara, embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando raras vezes se encontravam na rua.

O negociante ouviu-o, e disse-lhe:

- Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva; por enquanto preciso da tua pena.

Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar! Foste a sopa que me caiu no mel! Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço que te vou pedir. Confesso que não me tinha lembrado de ti... perdoa...

- Estou às tuas ordens.

- Preciso publicar amanhã, impreterivelmente, no Jornal do Comércio, um artigo contra o

Saraiva.

- Que Saraiva?

- O da rua Direita.

- O João Fernandes Saraiva?

- Esse mesmo.

- E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo?

- Sim. Ganharás uns cobres que não te farão mal algum.

A essa palavra "cobres", o Romualdo teve um estremeção de alegria; mas caiu em si:

- Desculpa, Caldas; bem sabes que o Saraiva é, como tu, meu amigo... como tu, foi meu companheiro de colégio...

- Quando conheceres a questão que vai ser o assunto desse artigo, não te recusarás a escrevêlo, porque não admito que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero tratá-lo com luva de pelica.

Sou eu o primeiro a lastimar que uma questão de dinheiro destruísse a nossa velha amizade.

Escreves o artigo?

- Mas...

- Não há mas nem meio mas! O Saraiva nunca saberá que foi escrito por ti.

- Tenho escrúpulos...

- Deixa lá os teus escrúpulos, e ouve de que se trata. Presta-me toda a atenção.

E o Caldas expôs longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questão comercial, de um capricho tolo que só poderia irritar, um contra o outro, dois amigos que não conhecessem o que a vida tem de áspero e difícil O artigo seria um desabafo menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil poderia, efetivamente, evitar uma injúria grave.

O Romualdo, que há muito tempo não pegava numa nota de cinco mil-réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura de lavadeira, cedeu, afinal, às tentadoras instâncias do amigo, e no próprio escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente.

- Muito bem! - exclamou o Caldas, depois de três leituras consecutivas.

- Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente a questão!

E, depois de um passeio â burra, meteu um envelope na mão de Romualdo, dizendo-lhe:

- Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. - A época é difícil, mas há de se arranjar.

O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem mil-réis! Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande!

Na manhã seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da "pensão" que lhe emprestasse o Jornal do

Comércio, e viu a sua prosa "Eu e o sr. João Fernandes Saraiva" assinada pelo Caldas; sentiu alguma coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espírito e se reflete no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessável, e aquilo era uma quase traição. Entretanto almoçou com apetite.

À sobremesa entrou na sala de jantar um menino, que lhe trazia uma carta em cujo sobrescrito se lia a palavra "urgente".

Ele abriu-a e leu:

"Romualdo. - Preciso falar-lhe com a maior urgência. Peço-lhe que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo que possa. Recado do - João Fernandes Saraiva."

Este bilhete inquietou o ex-jornalista.

Com certeza, pensou ele, o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente alguém me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritório... desconfiou da coisa e foi dizer-lhe...

Mas para que me chamará ele?

O seu desejo era não acudir ao chamado; alegar que estava doente, ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas o menino de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossível fugir!

- Diga ao seu patrão que daqui a pouco lá estarei.

O menino foi-se.

O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café, saiu, e dirigiu-se ao escritório do Saraiva, receoso de que este o recebesse com duas pedras na mão.

Foi o contrário. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe:

- Obrigado por teres vindo! Estava com medo de que o pequeno não te encontrasse! Vem cá!

E levou-o para um compartimento reservado.

- Leste o jornal do Comércio de hoje?

- Não - mentiu prontamente o Romualdo. - Raramente leio o Jornal do Comércio.

- Aqui o tens; vê que descompostura me passou o Caldas!

O Romualdo fingiu que leu.

- Isso que aí está é uma borracheira, mas não é escrito por ele! - bradou o Saraiva. - Aquilo é uma besta que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome!

- O artigo não está mau... Tem até estilo...

- Preciso responder!

- Eu, no teu caso, não respondia...

- Assim não penso. Preciso responder amanhã mesmo no próprio Jornal ao Comércio e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas a resposta.

- Eu?...

- Tu, sim! Eu podia escrever mas... que queres?... Estou fora de mim!...

- Bem sabes - gaguejou o Romualdo - que sou amigo do Caldas. Não me fica bem...

- Não te fica bem, por quê? Ele com certeza não é mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção minha injuriá-lo; quero apenas dar-lhe o troco!

No íntimo o Romualdo estava satisfeito, por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quiserem, de equilibrar o seu remorso.

Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu:

- Por amor de Deus não te recuses a este obséquio tão natural num homem que vive da pena!

Tu estás desempregado, precisas ganhar alguma coisa...

O Romualdo cedeu a este último argumento, e, depois de convenientemente instruído pelo

Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu ali mesmo o artigo.

Reproduziu-se então a cena da véspera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: - Bravo! Não podia sair melhor! - e, tirando da algibeira um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil-réis e entregou-a ao prosador.

- Oh! Isto é muito, Saraiva!

- Qual muito! Estás a tocar leques por bandurra: é justo que te pague bem!

- Obrigado, mas olha: recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no jornal pode haver alguém que conheça a minha letra.

- Copiá-lo-ei eu mesmo.

- Adeus.

- Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me!

- Está dito.

No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o jornal do Comércio na mão.

- O bruto replicou! Vais escrever-me a tréplica!

E batendo com as costas da mão no jornal:

- Isto não é dele... Aquilo é incapaz de traçar duas linhas sem quatro asneiras... mas ainda assim, quem escreveu por ele está longe deter o teu estilo, a tua graça... Anda! Escreve!...

E o Romualdo escreveu...

Durante um mês teve ele a habilidade de alimentar a polêmica, provocando a réplica, para que não estancasse tão cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia insinuações vagas, mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um ora com outro, era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço.

Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: - Escreve!

Escreve! Eu quero ser o último!

Por fim, vendo que a questão se eternizava, e de um momento para o outro a sua duplicidade podia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo, por sua própria conta, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra de forma.

E o público admirou essa polêmica, em que dois homens discutiam com estilos tão semelhantes que o próprio estilo pareceu harmonizá-los.

O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comércio, onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo

Dinheiro fácil - Ises de Almeida Abrahamsohn

 



Dinheiro fácil

Ises de Almeida Abrahamsohn

 

Reinaldo estava atolado em dívidas e à beira da falência. Era gerente de uma locadora de automóveis cujo razoável lucro não era suficiente para seus hábitos. Tudo havia começado quando, há três anos, se tornou amigo de dois clientes ricos e passou a frequentar rodas de pôquer com altas apostas, restaurantes e vinhos caros, prostitutas de luxo e hospedagem em hotéis idem. E, naturalmente, haviam as despesas normais da família que incluía Márcia e os filhos Pedro e Luciano. Márcia trabalhava e contribuía, mas o que tirava no escritório de advocacia não era suficiente. Antes das novas amizades do marido, o casal ganhava o suficiente para ter um bom padrão de vida. Reinaldo sempre se sentiu atraído por luxo. Bem lá no fundo reconhecia que, ao se casar com Márcia, um fator tinha pesado bastante. O sogro, dono de um famoso escritório de advocacia, era muito rico. Riquíssimo e avarento na opinião de Reinaldo. O velho fazia questão de repetir que os filhos, Márcia e o irmão, tinham que trabalhar e fazer o próprio pé de meia. Dinheiro demais empobrece a alma, dizia o velho. Algum dia vocês e meus netos vão herdar minha fortuna, mas ainda tem tempo. Márcia nunca fora acostumada a luxos e não sentia falta do dinheiro do pai.

Reinaldo, desesperado por dinheiro vivo, sabia que não adiantaria pedir ao sogro. O sovina ia querer saber os motivos do empréstimo e investigaria a situação da locadora se ele inventasse uma possível expansão do negócio. Já havia pensado e repensado em vários estratagemas para arrancar o dinheiro do velho. Nenhum daria certo. Estava no escritório tarde da noite verificando apólices de seguro quando tocou o telefone. Era um dos malditos agiotas. O cara já tinha ligado no dia anterior. Queria pelo menos parte do empréstimo, trezentos mil para ser exato. Agora ameaçava executar a dívida tomando a loja. Seria o fim de tudo, pensou. Da loja, do casamento, e ainda ficaria devendo na rua da amargura.

Foi quando lhe veio a ideia de como poderia extrair grana do sogro e resolver todos os problemas. Um falso sequestro. Genial, pensou. O velhote não iria se negar a pagar o resgate de um neto. Ficou pensando, qual dos dois meninos. Acabou optando por Luciano que tinha cinco anos. O outro, de oito, seria mais difícil. Precisava achar alguém disposto a capturar o menino  e mantê-lo escondido até o pagamento do resgate. Era uma chateação inevitável mas tinha que ser. Lembrou do Carlão da oficina de conserto dos automóveis que sempre se queixava da falta de grana e de como a mulher o atazanava para comprar um apartamentinho. Sim, o Carlão era o cara certo. Podiam ficar com o garoto uns dias na casa em que moravam num bairro distante no Embu. Pediria resgate de dois milhões e aí se livraria da maior parte das dívidas. Pensou até em pedir mais, mas quantias muito maiores o sogro teria dificuldade em mobilizar rapidamente. Dois milhas é café pequeno para ele.

Dia seguinte, foi procurar o Carlão. O rapaz estava hesitante. Ofereceu dar cem mil pelo serviço. Era grana suficiente para comprar o sonhado apê da Lindalva, ou pelo menos para a entrada. Não haveria risco, assegurou Reinaldo. Você fala para ela que é o filho de um amigo, a mãe está muito doente e a criança não tem com quem ficar. O menino vai ficar no máximo uns dois , talvez três dias com vocês.

Finalmente acertaram o plano. Carlão pegaria Luciano quando estivesse indo para a aula de natação. Todas as terças feiras por volta das três da tarde o garoto e a babá caminhavam até a escolinha que ficava a alguns quarteirões da casa.

No dia combinado lá estavam os dois, Reinaldo na direção e Carlão ao lado, no Fiat verde do mecânico à espera de Luciano e da babá. A combinação era que Reinaldo, vestido com um macacão escuro e usando uma balaclava apenas guiaria o carro sem abrir a boca. Carlão pegaria o garoto dizendo para a babá que era o novo motorista da avó e que ia levar Luciano para passar a tarde na casa dela. Reinaldo ficaria no carro esperando numa rua lateral. Quando chegassem perto da casa do mecânico, este sairia com o menino e Reinaldo voltaria com o carro para a oficina.

O esquema funcionou com alguns percalços. Antes que a babá conseguisse ligar pelo celular para casa, o rapaz pegou o garoto pela mão com a promessa de que iriam ao zoológico com a avó. Caminharam rápido. O Carlão puxando o garoto pela mão. Ao dobrarem a esquina levantou o garoto e carregou-o no colo até o carro. Rápido, cara, que a babá tá vindo atrás. O carro arrancou e na rua seguinte misturou-se ao tráfego. No banco de trás, Carlão repetia ao garoto que logo chegariam à casa da avó. Mas o garoto estava desconfiado, perguntou por que o motorista tinha aquela máscara preta e disse que queria ir para casa. Carlão deu-lhe um copo com coca cola e um saquinho de batata frita. Luciano adormeceu ao comer as primeiras chips. Ao avistar a casa, Reinaldo parou o carro e Carlão carregou o garoto adormecido até a entrada.

A mulher estranhou. Quem é esse garoto ? Por que está dormindo assim?

Carlão repetiu a mentira combinada para Lindalva, que não pareceu convencida. Ajeitaram o menino no pequeno sofá em frente à televisão. A mulher insistiu:

Carlão, essa história está mal contada. Que amigo é esse? As roupas dele são de marca. Que eu saiba você não tem amigos ricos. O que acontece ?

Depois de outras perguntas que Carlão não conseguia responder, finalmente cedeu e desembuchou.

Lindalva, aguenta aí . Você não quer o apartamento? É a nossa chance. Só temos que ficar com o garoto por alguns dias. O cara vai pagar cem mil.

A mulher retrucou nervosa:   Isso é crime , Carlão. Não vai dar certo vamos sair dessa. Esquece o apê. Liga para a casa do cara e fala que você vai levar o garoto lá e que o trato tá desfeito. Mas Carlão não queria saber e ameaçou. O menino vai ficar por bem ou por mal. Vou pegar essa grana fácil.

Lindalva perdeu a paciência e avançou sobre o marido para arrancar-lhe  o celular e descobrir a última chamada . O homem, possesso, revidou um safanão que a atirou ao chão. Curvou-se sobre ela: E vai ter mais, Lindalva. Cala a boca senão vai levar mais porrada. Não vou desistir agora.

A mulher levantou a custo e, com a boca sangrando, cambaleou até o banheiro. Trancou, lavou o rosto e ficou sentada até Carlão parar de esmurrar a porta e ela se acalmar. Vai ver ele tem mesmo razão . Pode dar certo. Vou cuidar bem do menino. É a nossa chance de sair desse buraco aqui longe de tudo. Sempre sonhei com um apartamento meu perto de condução e comércio. Não aguento mais pegar dois ônibus e trem para trabalhar. Qualquer coisa eu aviso a polícia e tiro o corpo fora. Que se dane o Carlão.

Quando Lindalva abriu a porta, o marido já tinha saído. Na sala o garoto ainda dormia pesadamente. Coitado, quando acordar vai ser um Deus nos acuda. Nem o nome dele eu sei. E quando acordar vai ser de noite. É capaz de eu estar sozinha. O Carlão vai ficar na oficina até bem mais tarde. Bem do jeito dele, deixar o problema para eu resolver. Quando o menino acordar vai estar com fome. Preciso fazer alguma coisa para ele. É filho de gente rica... Que será que ele come? Eu tenho arroz e feijão. E também tem ovo. Vai ser isso. Meus sobrinhos adoram arroz com ovo. Acho que toda criança gosta.  E não tenho mais nada. E vai tomar água. Limonada ainda dá pra fazer. Mas suco, esquece. Não posso sair e deixar ele sozinho.

Às seis da tarde Luciano ainda dormia. Lindalva nervosa andava de um aposento para outro da minúscula casa. A cada minuto olhava a sala. Limpou duas vezes o chão já limpo dos dois quartos, e arrumou a cozinha. O arroz e feijão estavam sobre o fogão e na mesa um prato para o menino. Pensou em ligar a TV. Não posso fazer barulho, pensou. E se os pais já tiverem avisado a polícia ? Vai sair no noticiário das seis.

Decidiu-se por ligar o rádio baixinho na cozinha. Estava na hora da benção das seis. Ficou mexendo na sintonia do velho rádio da cozinha. Era um hábito seu mesmo agora que tinha celular. Todas as tardes, ao fazer o jantar, ligava na hora da ave-maria. Ficou mexendo na sintonia procurando notícias. Escutou até as sete, o cardápio habitual de crimes da grande cidade , mas nada de sequestros. A polícia mantinha segredo até resolver os casos. É isso, pensou Lindalva.

Ouviu um gemido vindo da sala. O menino acordava. Mexia a cabeça e resmungava algo que ela não conseguia entender. Até que abriu bem os olhos e gritou pela mãe. E pelo pai e por alguém chamado Célia. Devia ser a irmã ou talvez babá, pensou. Levantou dum pulo e gritou que queria ir para casa e queria ir ao banheiro. Lindalva pegou–o pela mão para mostrar o banheiro, mas o garoto se assustou, deu-lhe  um pontapé e saiu correndo. Logo em frente era o banheiro. O garoto fechou a porta e ela ouviu a descarga. Tentou abrir, mas o menino fazia força contra a porta e gritava que queria sair e ver a mãe e o pai. A mulher não sabia o que fazer. Sorte que a porta não tem chave por dentro, pensou. Decidiu deixar o garoto lá mesmo até ele cansar de gritar. Ela teria mesmo de trancá-lo em algum lugar. Não tinha forças para ficar lutando com o menino. E ele podia  se machucar e, se escapasse para fora da casa, era um breu em volta até uns 500 metros onde tinha o primeiro poste de luz. Ficou ali agarrada ao trinco enquanto o menino gritava e chorava. Finalmente, rouco, parou e pediu para sair. Quero telefonar para minha mãe. Cadê seu celular ? Tô com fome. Quem é você?

Ainda tentou dar uns socos e pontapés em Lindalva, mas ela lhe prometeu que, se parasse, poderia comer e depois ligar para a mãe. Luciano desconfiado resolveu seguir até a cozinha. Comeu arroz com ovo frito e bebeu água.

Ao terminar de comer o menino voltou à carga. Queria telefonar. Lindalva disse que não tinha telefone, o marido tinha levado, mas o esperto garoto logo rebateu que era mentira. Tentava gritar mas, de tão rouco  só saiam uns grunhidos. Corria pela casa tentando achar uma saída. Todas as portas estavam trancadas. Para alcançar os trincos das  venezianas das janelas, empurrou uma cadeira e passou a esmurrar as janelas. Lindalva falava que não tinha ninguém lá fora para ouvir e já tinha desistido de correr e de tentar conter o garoto. Alguma hora há de cansar e parar.

De fato, foi o que ocorreu. Quando seu marido chegar vou pegar o telefone e falar com minha mãe e meu pai, avisou Luciano, ao se atirar no pequeno sofá da sala. Estou com sede. Você não tem Toddy aí? Essa hora eu sempre tomo um copo e vejo desenho na TV antes de dormir. E estou com frio. Lindalva disse que tudo bem. Não tinha Toddy mas tinha chocolate, que era a mesma coisa, e ia preparar o leite para ele. Pegou um cobertor e ligou a televisão. Com o barulho da TV, o menino não a ouviria falar ao telefone. Avisou que iria ao banheiro.

Lá dentro, Lindalva pegou o aparelho na bolsa pendurada atrás da porta e ligou o chuveiro. Carlão demorou para atender. A mulher insistiu que o plano não ia dar certo. Não conseguia controlar o menino e se ele saísse correndo pelos ermos, aí é que a coisa complicava. O marido retrucou que agora tinham que prosseguir. Pense no apê, Lindalva.... Para acalmá-la falou que ia conseguir  algum calmante com o pai do garoto, e então seria mais fácil controlar a fera. Te ligo daqui a pouco. Fica fria aí! Daqui pouco levo o remédio.

Ao sair do banheiro, a moça viu com alívio que  Luciano tinha adormecido. Baixou um pouco o volume da TV e foi sentar na cozinha. Depois de meia hora ligou para o marido. E aí, Carlão , conseguiu o remédio?

Mas o mecânico não tinha o remédio e estava nervoso ao telefone. A mulher sabia que quando ele começava a gaguejar era porque estava realmente fora do controle. Tinha ligado para o pai do menino que ficou histérico com a ligação e desligou o telefone antes que ele pudesse falar. Disse que não podia ter contato, que a polícia podia  verificar as chamadas e chegar ao Carlão e tudo estaria perdido. Tinha enviado um WhatsApp para Reinaldo explicando a urgência do calmante, mas este não respondeu e bloqueou o número. 

Lindalva do outro lado estava cada vez mais nervosa. Chega, Carlão. Vamos devolver o menino. Você vem cá e levamos ele de carro. Deixamos em frente da casa dele e sumimos. Você sabe onde é! Já foi levar algum carro na casa deles.   

Mas Carlão não queria ouvir falar. Chegou em casa passada meia noite e sem o calmante. Lindalva estava fora de si. Colocaram o garoto num colchonete no quartinho ao lado do quarto do casal e bloquearam porta. Ela pegou o celular para ligar para a polícia, mas o marido deu-lhe mais uns safanões e se apossou do aparelho. Disse que se o menino acordasse ia amordaçá-lo e de manhã iria conseguir a p....  do calmante. Lindalva exausta deitou na cama do casal. O marido ficou vigiando. De olhos fechados, com o lábio sangrando e o rosto inchado ela pensava em como sair dessa sem que o garoto sofresse mais. Adormeceu por algumas horas. Quando acordou percebeu que o marido tinha saído com o carro. Entreabriu a porta do quartinho. O menino dormia. Eram cinco da manhã. Começava a clarear.

Lindalva aprontou leite com chocolate para quando ele acordasse. Ela mesma tomou café e um pedaço de pão. Teria que agir rápido. Acordou o garoto que logo começou a chorar. Luciano, vou levar você para casa. Mas você precisa ajudar. O Carlão levou o carro, é muito cedo, então a gente vai ter de ir na bicicleta até a estação de trem. O garoto parou de chorar para dizer que não sabia andar de bicicleta, mas a moça explicou que ele iria sentado no cano e que precisava ficar bem quieto para ela poder guiar. Fazia frio e Lindalva fez o garoto vestir um velho casaco seu. Depois dos primeiros quinze minutos sentado no cano duro da bicicleta e passada a novidade o menino começou a reclamar e a choramingar. Estavam quase chegando na estação quando apareceu um carro da polícia. De dentro saíram dois policiais, um homem e uma mulher ambos  de arma em punho. Largue a criança, gritou um. Senão vou atirar. Lindalva, aterrorizada parou e empurrou Luciano na direção do policial. Só depois, percebeu Carlão algemado no banco de trás. Gaguejando disse que estava levando o garoto para casa. Que não tinha nada a ver com o caso. Que era  mulher do Carlão e que ele apareceu com a criança para ela cuidar e quando quis telefonar tinha apanhado e mostrou o rosto  inchado e marcado. Algemada, Lindalva foi empurrada para o banco de trás do carro.  A policial com o garoto assustado no colo sentou entre os dois. Vamos para a delegacia, avisou ela e não quero conversa aqui no carro. Na delegacia, esperavam a mãe e o tio do menino para levar o garoto para a casa da avó. Ali Lindalva acabou escutando como a polícia tinha chegado ao Carlão. Alguém tinha anotado a placa do carro e ligado para a polícia. Um garçom de um bar próximo desconfiou do fiat parado com motor ligado cujo motorista rapidamente cobriu o rosto quando um homem carregando um menino entrou no carro que partiu a toda velocidade.

Antes de ser empurrada para um quartinho sem janela, Lindalva ainda gritou para  mãe do garoto. Eu cuidei bem  do Luciano. Estava trazendo ele de volta.... Depois ficou lá, isolada, sem saber mais o que acontecia. Cansada, sentou no chão apoiada na parede e começou a rezar. Tinha que provar que não tinha nada a ver com o sequestro. Se não era cadeia na certa.

Fora do quartinho, na delegacia os policiais combinavam com o avô do menino como pegar Reinaldo em flagrante. O avô tinha recebido na noite anterior um bilhete com o pedido de resgate e as instruções onde entregar encontrar o neto e depositar o dinheiro. Como Reinaldo saíra cedo de casa, fingindo-se de desesperado, nem atinava que Luciano àquela hora já estava são e salvo na casa da avó.

Lá pelas cinco da tarde soou o telefone. Era Reinaldo. Queria combinar o lugar da troca. A sacola com dinheiro pelo neto. Marcou encontro na estradinha escura que levava à casa de Carlão, perto de uma construção abandonada. Ficaria num carro sem placa, o velho atirava a sacola e ele, depois de conferir o dinheiro, avisaria o Carlão para deixar o garoto em algum ponto da cidade e ligar para a mãe com a localização.

Tudo perfeito. Não podia dar errado. E sem polícia. O velho não ia arriscar meter a polícia no meio.

       Onze da noite, Reinaldo ansioso esperava no carro, luzes apagadas. Até agora tudo certo. Tinha ligado há duas horas para o Carlão. Sim, ele estava com o menino. Perguntou se dormia. Claro. Tive que arrumar um calmante pro seu filho. Cê acha que ele ia ficar quietinho? Foi sacanagem você não ter arrumado. Tive que sair pedindo por aí. Dei metade do comprimido de dormir da minha irmã e ele dormiu na hora. Escuta aqui! Eu quero a minha parte amanhã mesmo, em dinheiro. Nada de banco.

       Pouco depois Reinaldo viu o carro do sogro se aproximando. Farol baixo como combinado. O sogro saiu do carro e gritou Cadê o menino?

  Joga o dinheiro,  e vai embora. O menino tá bem, gritou Reinaldo disfarçando a voz abafada pela balaclava. Pouco depois o saco de dinheiro aterrissou no meio da estrada.

Ao ver o carro sumir na escuridão, Reinaldo, moveu a lanterna pelas moitas próximas. Nada, silêncio absoluto. Abriu a porta do carro e andou os poucos passos que o separavam do sucesso. Ofegava e sentia o barulho do próprio coração quando se abaixou para agarrar o saco com a grana. Pesado...tinha os dois milhões ali. Sua salvação. O velho nem regateou. Beleza, foi fácil, congratulou-se. Ergueu-se com o saco e virou-se para voltar ao carro.

Não chegou até a porta. Quatro intensos fachos de luz e o grito de “Pare ou leva chumbo” o imobilizaram. Não parou. Apertou o saco contra a barriga e correu. Ainda ouviu um segundo “Pare” antes de cair com a dor da primeira bala na panturrilha. A segunda atingiu o tórax. Caiu de lado. Não conseguia mais respirar, a dor era intensa. Ainda teve força para se virar. Sentiu a chuva fina molhar o rosto antes de morrer.

Epílogo: Carlão foi condenado a cinco anos em regime fechado. Lindalva pegou um ano em regime aberto e se separou do marido. Vive com a irmã e continua a sonhar com um apartamento só para ela.

O lago da antiga infância - Ises de Almeida Abrahamsohn

 

 


O lago da antiga infância

Ises de Almeida Abrahamsohn

 

Felipe insistiu ao telefone. Venha, Marcos. Descansar aqui, longe de tudo, fará bem a você. Lembra? Éramos crianças e, todo o ano, nas férias a gente vinha para o sítio da vó Ida. Ela nos ensinou pescar.... Cê lembra ainda? Todo o dia à tardinha ela chegava à beira do lago. Tinha uma cadeira velha que só ela usava. Trazia o caniço e o cestinho de iscas ou às vezes ficava lá só pra ver o pôr do sol. Era a meditação dela. Venha! Vai fazer bem a você.

Desde quando a avó falecera há vinte anos Marcos nunca voltou lá. Os pais queriam vender a propriedade, mas Felipe insistiu que tomaria conta, ninguém precisaria se preocupar. Até pensava em se mudar para lá com a família. O que, é claro, nunca aconteceu. A cunhada e os filhos se negaram terminantemente a viver naqueles ermos.

Ele mesmo até tinha se esquecido da existência do sítio. Quase não tirava férias. Apenas uma semana de folga aqui e ali. Sempre o trabalho, cada vez mais trabalho, exigências, pressão até que não aguentou mais. O médico disse que se tratava de “síndrome de burnout”. Tinha que se afastar por um tempo. O convite do irmão vinha a calhar. Respondeu que iria sim. Dentro de dois dias. Iria só ele. A mulher detestava mato. Tinha alergia a mosquitos. Ela ficaria feliz em ir para o apartamento da praia.

Após desligar o telefone, Marcos sentou-se na poltrona da sala. Lembrava pouco da velha casa. Apenas que tinha varanda. O piso era de cimento queimado vermelho. A cozinha com a antiga geladeira de porta única, ,o fogãozinho a gás e um filtro de barro queimado. Nada mais.

Porém, vívido, como se fosse ontem, viu o estreito caminho em meio ao mato que levava ao lago. Via a si, menino, caminhando até o envergonhado ancoradouro construído pelo avô sobre troncos de eucalipto, as tábuas sem pintura já ensaiando apodrecer. A cadeira lá à espera,  de braços enferrujados e assento puído. Amarrada a um esteio, descansava a canoa larga, caipira, de madeira alcatroada, sempre fedida a peixe na qual ele e o irmão remavam até o meio do lago. Existiria ainda a canoa? E o silêncio quase absoluto no meio do lago, quebrado apenas por algum pio de pássaro. Pescador quase não fala...

Até o fim da tarde ficavam os dois irmãos. Até quando o sol poente iluminasse a mata do outro lado. A superfície da água espelhando o céu tingido de vermelhos flamejantes. Ao voltarem, os remos revolvendo as águas em infinitas nuances do amarelo ao rubro mais escuro. O ancoradouro já alcançado entre as primeiras sombras da noite. A avó Ida ali sentada, suave como a paisagem, os cabelos brancos iluminando o rosto. Não esqueçam de amarrar a canoa e de trazer o balde com os lambaris.

O TEMPLO – IGREJA BUDISTA - Antonia Marchesin Gonçalves

 

 


O TEMPLO – IGREJA BUDISTA

Antonia Marchesin Gonçalves

 

 

                        Após a primeira guerra, mais o menos em 1927, vieram muitos emigrantes europeus e também uma grande comunidade de japoneses para o Brasil, precisamente no interior paulista, para trabalharem nas grandes fazendas. No caso de Cafelândia vieram mais italianos, espanhóis e, principalmente, em número maior de japoneses. Ao contrario dos europeus, os japoneses vieram como donos de terras compradas lá no Japão.

                        Os católicos europeus tinham a sua pequena igreja que já existia na cidade, que mais tarde tornou-se uma Catedral, com a ajuda da comunidade católica, com até uma bela praça pegando toda a quadra.  Surgiu a colônia Hirata budista, havendo um grande numero de japoneses, começou-se a arrecadar fundos para erguer o seu templo budista, conta a lenda que foi o primeiro no Brasil. Hirata era um jovem bem preparado líder deles, que acabou morrendo aos vinte e sete anos de febre amarela

                        Conseguiram comprar um grande terreno na periferia da cidade. Trabalhavam em suas terras e ao mesmo tempo faziam suas cerimônias, primeiro no terreno e todos unidos construíram o seu templo. Começou pequeno, à medida que melhoravam de vida foram aumentando. O altar todo de madeira escura entalhada, que foi importada do Japão, como também a imagem de Buda toda dourada, seus incensos perfumando todo o ambiente. Para a inauguração foi enviado o monge jovem, que ficaria e ali moraria, para celebrar todas as cerimônias.

                        Alguns anos depois, já mais prósperos conseguiram importar um sino de bronze imenso, que fica na lateral à direita da porta principal sendo toda entalhada, usado para as batidas cerimoniais. Por ser um templo, é muito simples, mas o primeiro templo chegou a pegar fogo, sendo salvo só o altar, que é mais adornado e sempre com os incensos acesos para cada pessoa que vai lá meditar. Todo o templo foi refeito e nos festejos dos cem anos da vinda da colônia japonesa ao Brasil, houve muitas comemorações, sendo uma delas, a vinda do príncipe Heroito, para visitar pessoalmente o templo e sua comunidade, motivo de orgulho para todos, até hoje inclusive nas novas gerações. Sendo antigo e tradicional se tornou um ponto turístico da cidade, adornado com um jardim típico com bonsais lindos.

                        Ali são feitas muitas festas com comida típica e seus esportes favoritos, que duram dois dias de confraternização. Quando o visito sinto a paz interna que paira dentro daquele lugar sagrado.

TESTEMUNHA ACIDENTAL - Suzana da Cunha Lima

 




Primeira hipótese:

A fotógrafa está  a trabalho, fotografando uma desfile cívico na avenida e se deparou com uma cena de possível assassinato. Usando o zoom, identificou o provável assassino como professor da Escola Municipal situada numa rua transversal.

 

Segunda Hipótese

A fotógrafa está  a  trabalho, capturando cenas de monumentos históricos vandalizados, como evidências da negligência do poder público e para complementar um pedido de providências à municipalidade. Em dado momento,  percebeu um movimento suspeito num grupinho perto de uma bar e reconheceu um conhecido seu, aliás, seu próprio cunhado,  incitando a multidão ao vandalismo.  Que fazer? Mostrar as imagens à polícia que reforçariam seu pedido?

 

Terceira Hipótese

A fotógrafa estava  em sua hora de lazer, tentando filmar o novo jardim da pracinha em frente ao seu prédio, , resultado de uma coleta entre os moradores do local. Como estava à frente desta arrecadação, queria mostrar a todos que colaboraram, o resultado final.  Subitamente percebeu uns três indivíduos mal encarados  indo em sua direção, com o evidente propósito de lhe roubarem a câmera, seu instrumento de trabalho e que era bem cara. . 


TESTEMUNHA ACIDENTAL

Suzana da Cunha Lima

 

Sempre amei fotografar.  Minha primeira Kodak (eu tinha 12 anos) era uma gracinha e eu tirava fotos de tudo: formigas carregando folhas e até de banana amassada.  Meu pai me ensinou a revelar as fotos e quando casei , meu marido adotou minha paixão e instalamos  um pequeno laboratório em casa. Aos poucos fui aprendendo as manhas, até entrei num cursinho rápido para aprender mais sobre filtros, luz e cores.  Hoje já não existe nada disso,  em termos amadores. Os celulares possuem câmeras muito boas com excelentes recursos.  Mas lá pelos anos 80, as máquinas fotográficas, eram bem maiores, a minha tinha um zoom ótimo (e pesado) e se usavam muitos acessórios que tornavam as fotos muito boas e nítidas.

Uma tarde, fui buscar minhas crianças na escola uma hora mais cedo, porque eles iam desfilar na avenida pelo dia da Bandeira. Como ainda faltavam alguns minutos, fiquei ajeitando minha máquina, vendo os filtros necessários e experimentando o zoom. Queria pegar as carinhas de meus filhos bem de perto. Estava  meio escondida atrás de uma árvore, porque nunca gostei de foto posada, quando, sem querer, capturei a imagem de um casal saindo da lanchonete.

O que me chamou a atenção, na hora, foi a rude atitude do homem.  Ele passava o braço em volta dos ombros da moça e parecia murmurar algo em seu ouvido, que, parece, não a havia agradado. Cliquei tudo desde o início, pois me chamou a atenção o fato de parecer que ele a estava estrangulando, tipo “dando uma gravata”  pois logo a seguir, ele a empurrou, fazendo-a andar para  para uma rua  fora da praça e do movimento de pessoas e não os vi mais. Eu gelei. Já estava na hora da parada. Fiquei com medo que o  homem tivesse me visto ali com aquela máquina grande, seguramente com zoom e eu seria uma testemunha da ação dele, que nem sabia direito o que era.

Quando consegui revelar as fotos, era bem nítido o movimento do indivíduo apertando a garganta da moça. Fiquei atônita! De noite, no noticiário, anunciaram o assassinato de uma mulher, encontrada na calçada de um bairro chique da capital. Não havia pista alguma.  Estavam imaginando ser um crime passional. Mas quem seria o assassino?  E eu, lutando com minha consciência, porque nas fotos estava bem nítido o rosto do assassino. E eu o conhecia.  Era de meu cunhado, que lecionava naquela escola há muitos anos. O que fazer?

A CATEDRAL DE COVENTRY - Oswaldo U. Lopes

 




A CATEDRAL DE COVENTRY

Oswaldo U. Lopes

 

        Às vezes, poucas, somos surpreendidos por gestos ou situações que nos fazem pensar que a espécie humana tem salvação e quiçá futuro.

        Durante a Segunda Guerra Mundial, na chamada Batalha da Inglaterra, a Alemanha que tinha lá seus informantes e espiões no Reino Unido, resolveu bombardear Coventry que fica no coração da Inglaterra, no que eles chamam de Midland.



        Não nos cabe discutir o bombardeio de Coventry que era um importante centro industrial e se converteu durante a guerra em produtor de armas e equipamentos militares. Anos mais tarde os aliados também reduziram a pó importantes cidades alemãs que sustentavam o esforço de guerra dos nazistas.

        A destruição da cidade refreou a presença das indústrias que, no entanto, ainda hoje é sede da Jaguar e parte da produção da Land Rover. A cidade é famosa pela lenda da bela Lady Godiva aquela que andou nua montada num cavalo branco pelas ruas da cidade, para que seu marido baixasse os impostos.

        Vou ficar com fama de machista, mas seria bom termos entre nós algumas Ladys Godiva que nos socorressem por causa dos altos impostos. A lenda tem todos os ingredientes necessários. O único cidadão que saiu à janela para vê-la, um alfaiate Thomas (Pepping Tom), acabou cego.

        O gesto que nos surpreende teve como início o dia 14 de novembro de 1940. Nessa data a belíssima catedral dos fins do século XIII foi destruída pelo bombardeio e só permaneceram de pé, as paredes laterais e a agulha de mais de 90 metros de altura.

        Os ingleses resolveram reconstruir sua catedral, mas o fizeram erguendo uma nova, moderna próxima as ruinas da antiga. Resolveram, também, conservar as ruinas e orná-la de várias maneiras. Com os restos das travas de maneira, fizeram uma tosca cruz que resultou belíssima e por traz dela uma frase: Father Forgive. Pai perdoai-os... Que está em Luca 23: 34




        No espirito da reconciliação, cruzes semelhantes foram enviadas e estão em Berlim, Paris, Belfast e Volgogrado (antiga Stalingrado)

        Dentro do que seria o átrio da antiga catedral colocaram uma belíssima escultura denominada Reconciliação de autoria da escultora inglesa Josefina Vasconcelos. Com um nome desses ela parece, mas  não é brasileira, e sim filha de um diplomata brasileiro, casado com uma senhora inglesa.

        Para que não paire dúvidas sobre o espirito da reconciliação, há ainda uma placa datada de 1990, cinquenta anos após o bombardeio em que se lê:

        Uma nação não levantará a espada contra outra nação – Malaquias 4 -3 e abaixo

        Service of Remembrance and Reconciliation

        Pelo menos até agora, na Europa, sede de inúmeras guerras no passado a reconciliação tem funcionado e as disputas resolvidas, sem o apelo as armas. O que nos reserva o futuro só Deus sabe, mas o gesto, pelo menos, foi feito.

Bodas de Ouro muito bem comemoradas - Ledice Pereira

 



Bodas de Ouro muito bem comemoradas

Ledice Pereira

 

 

Mara aproveitou a sesta do marido para sair fotografando como gostava. A viagem, em comemoração às bodas, desenrolava-se tranquilamente. Agora estavam em Austin, cidade dos Estados Unidos que não conheciam. Nelson não tinha muita paciência para as fotos da esposa. Achava-a muito meticulosa.  Ela procurava sempre o melhor ângulo. Ajustava todos as engrenagens da potente câmera que ganhara de presente. Demorava para tirar uma simples foto.

A tarde não estava tão fria e nem chovia. Colocou, sobre a camisa flanelada, a jaqueta acolchoada sem mangas, que lhe protegeria o peito, e lá foi à procura dos pássaros que costumavam fazer uma revoada naquele horário da tarde. Pensou ter ouvido o barulho que faziam e desceu apressada. Queria fotografá-los. Sentiu que chegara meio atrasada.

Assim mesmo, preparou a câmera, deu um zoom e um cano de fuzil interpôs-se entre a imagem das aves que buscava, não a impedindo de disparar instintivamente o botão. Estaria vendo coisas? Tirou o olhar do foco, procurando o intruso. Queria entender o que ocorria. Sim, parecia ser mesmo um fuzil. Ouviu o tiro distante, enquanto imaginava estar ali um caçador de aves, aguardando a revoada. Houve correria. Pôde avistar um corpo caído adiante.

Foi o tempo de dar meia volta e entrar apressada e trêmula no hotel. Atravessou em meio aos curiosos que, atraídos pelo ruído,  aglomeravam-se no saguão e em frente ao prédio, fazendo suposições, procurando adivinhar o que havia acontecido.

Mara dirigiu-se ao elevador que, felizmente, encontrava-se vazio. Estava apavorada. Os oito andares custaram a ser vencidos, parecia uma eternidade. Bateu à porta e, quando Nelson abriu, jogou-se nos braços dele em prantos. Ele, sem saber o que estava acontecendo, procurou acalmá-la, pegou-lhe um copo de água e abraçou-a. Nunca a vira tão descontrolada e tremendo tanto. Pensou até em chamar um médico, pedindo ajuda à recepção.

Ela o fez desligar o telefone. Tentou se controlar e contou o que vira. Tinha medo. Julgava ter fotografado um criminoso. Conectou a câmera ao bluetooth para verificar melhor no celular o que havia capturado. O rosto meio protegido por um capuz mostrava uma silhueta que talvez pudesse ser detectada por um banco de dados do FBI.

Ficou dividida entre o dever de colaborar e o medo de ser perseguida pelo criminoso. À noite, mais calma, durante o jantar no próprio hotel, decidiu com o apoio do marido que cumpriria com o seu dever.

Nelson tinha um grande amigo, respeitado advogado,  que residia há anos em Nova York e para quem resolveu ligar, contar o fato e pedir uma opinião. O amigo ofereceu-se para acompanhá-los ao FBI. Teria mesmo que viajar a trabalho para Austin dali a dois dias.

Aguardaram ansiosos a chegada de Walter. Ele os tranquilizou. Ninguém saberia que ela conseguira fotografá-lo daquela distância. Quem imaginaria que um potente zoom colaboraria para possível identificação.

Walter tinha livre acesso aos escritórios do FBI. Ligou para lá, marcando um horário para um encontro com o chefe do departamento de investigação.

De posse da foto apresentada por Mara, o departamento partiu para investigar a nova pista.

Mara e Nelson já tinham passagem reservada para Las Vegas no dia seguinte. Receberam os agradecimentos do FBI, sendo informados de que teriam ciência do desenrolar das investigações.

Pela TV, dias depois, tiveram notícia da prisão do criminoso. O rapaz, pertencente a perigosa gangue era,  há muito tempo, procurado por ser um foragido da prisão, onde pagava pena por outro crime cometido.

Como agradecimento, o casal foi agraciado com toda a despesa do hotel em Las Vegas, além de um jantar reservado em hotel de luxo, com os cumprimentos do Chefe de investigação, pelas bodas de ouro que comemoravam.

Naquela noite, vestidos com suas melhores roupas, compareceram ao hotel indicado. Mara fotografou a linda mesa e solicitou ao gentil garçom que registrasse aquele momento para que ficasse eternizado. Os filhos, certamente, ficariam ao mesmo tempo orgulhosos e surpresos quando eles contassem sobre a incrível aventura vivida.

UM BOM NEGÓCIO - OSWALDO U. LOPES

 




O VELHO GASPAR TROPEIRO

Oswaldo U. Lopes

 

        Três hipóteses para contar uma história com base na figura:

1-   Gaspar chegou de viagem, recolheu a tropa e se dá ao luxo de fumar um charuto.

2-   Gaspar ouve uma proposta de negócio que envolve sua tropa. O charuto é uma forma de ganhar tempo para responder.

3-   Gaspar viu ao longe uma tropa e já não tendo idade para sair com a tropa puxou um charuto para pensar na vida.

Hipótese escolhida, a de número dois.

 

 

UM BOM NEGÓCIO

 

        O homem a sua frente falava com calma, sem pressa. Gaspar já o conhecia como um negociante esperto e responsável por várias novidades na pequena vila.

        — Pois é seu Gaspar, o senhor já não é jovem, a tropa também não é. Estou lhe oferecendo um preço bom pelo conjunto. O pessoal já notou que o senhor já não faz tantas viagens como fazia antigamente.  Neste último semestre foram só duas.

        Gaspar precisa de tempo para responder. Se fosse pelo instinto mandava o homem pra aquele lugar de imediato, mas ainda não era o caso. Para ganhar tempo ascendeu um bom charuto e desviou o olhar para o alto, enquanto pensava.

        Bom negócio é a comadre da sua madrinha. O que você entende de tropa? Eu estou nessa desde que tinha onze anos e tropeava com meu falecido pai. Aquilo é que era vida. Pegava mercadoria nos armazéns de Sorocaba e punha a tropa a andar rumo ao sul.

        Não tinha nem BR nem asfalto. A gente, meu pai o ajudante dele de nome Francisco e eu, distribuía a carga pelas mulas e tocava em frente. Eu ia na ponta da frente, meu pai atrás que é o lugar mais importante para vigiar os muares e o Francisco no meio para evitar que alguma mula desgarrasse de lado.

        Se o tempo ajudasse e não tivesse muita chuva, a viagem levava um mês e meio para chagar a Pelotas destino final da tropa. Se tivesse carga para Sorocaba, o que era muito bom para o bolso, mas ruim para viajar, era mais um mês e meio para chegar em casa. Se não tivesse carga, o que era ruim para o bolso, mas bom para a viagem, em um mês estávamos de volta.

        O que ele tá falando é a mais pura verdade, já não tenho idade e já não tem carga para tropeiro. O que ele vai fazer com a tropa não é problema meu, fico com o burro Jagunço que esse é de estimação e o resto vai-se.   Olhou mais uma vez para o céu e falou:

        — Podemos fechar negócio, você põe mais dez contos na sua proposta e eu aceito, só que tiro o burro Jagunço que esse não tem preço.

        — Negócio fechado seu Gaspar.