Uma história real - Ledice Pereira

 



 

Uma história real

Ledice Pereira

(os nomes foram alterados, por razões óbvias)

 

Eu me lembro muito dela. Terezinha seria uns quinze anos mais velha do que eu. Irmã de Julieta, uma grande amiga de minha mãe. Frequentava muito nossa casa. Era baixinha, gordinha, meio infantil. O cabelo não era ralo e liso como o da irmã e o da mãe. Hoje, eu diria que ela possuía  o cabelo do tipo black power. Mas como o pai era um tipo caboclo, essa diferença entre as irmãs era aceita normalmente. Elas tinham também um irmão, Jorge, mais novo do que Terezinha que, por sinal, era um bon vivant. Não queria nada com o batente. Ao contrário de Terezinha, tinha traços da mãe, do pai e da irmã mais velha. Era bonito, simpático e galanteador e vivia cercado de jovens garotas casadoiras.

A diferença de idade entre as duas irmãs era de uns quinze anos, ou mais. Como a mãe fosse uma senhora bem mais idosa e doente, Julieta, que nunca se casou, fazia o papel maternal, cuidava, vestia, mimava, zangava e educava Terezinha.

Para mim, criança, estava tudo bem. Fui crescendo com a presença constante delas à nossa volta. Viajamos juntas, almoçávamos frequentemente na casa uma da outra. Enfim, éramos muito próximas, tanto que eu chamava Julieta de tia.

Os anos se passaram e um dia, eu adolescente, entrei na sala durante uma conversa que minha mãe tinha com uma prima. Elas comentavam que Terezinha era adotada. Aquilo caiu em mim como uma bomba. Durante vários dias e noites pensei no fato. Ao mesmo tempo, comecei a perceber e entender as diferenças, um certo atraso mental, as dificuldades que tia Julieta tinha para conduzi-la, o jeito infantil, apesar da idade. Por outro lado, notava o amor e a paciência que todos, pais e irmãos, tinham com ela.

Com trinta e poucos anos, Terezinha conheceu um rapaz por quem se apaixonou e de quem engravidou. A notícia pegou a todos de surpresa e foi difícil lidar com a situação, mas não havia o que fazer. O tal namorado, nem preciso dizer que sumiu. E Terezinha teve que levar adiante a gravidez, para a qual ela não estava nem um pouco preparada física e psicologicamente.

Tia Julieta, que era muito prática, tratou de fazer o enxoval do bebê e de organizar tudo para recebê-lo. O bebê, que nasceu com a cara da mãe, foi cercado de todos os cuidados e carinho.

Terezinha até se saiu bem na nova função dedicando-se de corpo e alma àquela criaturinha. Mas, esqueci de contar que ela que já sofria de asma, passou a ter frequentes crises que a deixavam sem ar. Quando o pequenino Thomas estava com dois anos, numa dessas crises, Terezinha veio a falecer.

Tia Julieta tinha então cinquenta e poucos anos, a mãe, oitenta e tantos e ficou com elas a tarefa de criar o sobrinho e neto.

Aproximadamente, um ano depois, numa conversa, tia Julieta deu a entender que, face à idade dela, seria bom se alguém adotasse o sobrinho. Eu que, a essa altura, já estava casada e tinha dois meninos, um de seis e outro de quatro, cheguei seriamente a pensar em adotá-lo. Conversamos muito em família, inclusive com os meninos e com nosso pediatra, tendo decidido pela adoção.

Tia Julieta veio passar um fim de semana em casa. O menino gritava por qualquer coisa. Mimado, estava tão mal acostumado que não queria comer nada, custou a dormir, teve acessos de raiva.

Se por um lado, nós ficamos temerosos de assumir aquela criança, a tia propôs de vir junto morar conosco. Não conseguiria separar-se do pequeno. E para nós, não havia a menor condição de tê-la também conosco. Seria difícil educá-lo, com as normas que eu já impunha aos meus, tendo ao lado alguém para deseducá-lo. O assunto morreu ali. Nunca mais falou-se no assunto.

Anos depois, tia Julieta faleceu, deixando a incumbência para os velhos pais. Eu soube que quem acabou cuidando do sobrinho foi Jorge, que depois de um casamento conturbado e o nascimento de um casal de gêmeos, divorciou-se.

Há pouco tempo, nas redes sociais, encontrei Thomas. Ele continua parecidíssimo com a mãe. Está formado e vive no interior. Expliquei quem eu era e contei-lhe que a tia me deu uma pulseira, pertencente a Terezinha, que deveria ficar com ele. Na verdade, eu nunca tive coragem de usar por julgar que não tinha merecimento. Ele disse que quando vier a São Paulo virá pegar essa lembrança. Não quis que eu mandasse por correio pois temia que pudesse extraviar.  

 A vida é uma jornada cheia de surpresas, desafios e provações.


 

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