Navegando - Oswaldo Romano

Navegando - Oswaldo Romano
(imagem trazida do site: danielzinho-meusamigos.blogspot.com)


NAVEGANDO

        Que bom, o dia amanheceu com sol e o mar quase manso, navegável.

        Éramos treze pessoas, de crianças a vovós. Um arrais marinheiro, é o auxiliar prático de navegação costeira, e no comando vamos revezar os homens, entre os Mestres Amadores. Um deve assumir a responsabilidade do comando. Serei eu, Gerônimo, o comandante Rôni, simplificando.

        Aportamos em Paraty para completar o abastecimento de diesel, pois a Roma, esse é o nome da nossa embarcação, é beberrona, com a boa capacidade de 1600 litros em seus tanques, precisa ser vigiada. Percorremos várias ilhas até aportar na belíssima Catimbáu. Lindas, muito lindas as ilhas e suas praias, mas essa Catimbáu... tira o fôlego. Se não conhece, pense naquele pedacinho isolado, coberto de enormes pedras, entre elas banheiras de águas cristalinas, peixes coloridos, passagens, ponte de cabos, plantas nativas, pitangas, juás, enfim um prazer para os olhos.

Exuberante. Quem conhece, volta sempre.

        Mesmo as modernas máquinas fotográficas, diante de tanta beleza, não conseguem retratá-las porque as fazem frias, chapadas e que só a maravilha dos nossos olhos abre o espetáculo que deslumbra nossa mente. Viajamos na amplidão panorâmica, tridimensional: mar, montanha, céu. Só essas lentes que Deus nos deu oferecem tanta cor, tanta dimensão.

        Um lombo de robalo crostado na chapa, batatas, manteiga na alcaparra, é uma boa pedida... e vinho branco na temperatura, este moderado porque tem muito ainda do dia.

CAJAIBA

        Saindo do Catimbáu decidimos visitar a Enseada do Pouso 23°16,320’S x 044°32,839W, mais precisamente praia do Cajaiba e sua cachoeira. Procuramos a ancoragem bem devagar, tempo para digerir no relaxo o fausto almoço do restaurante.

Ancoramos junto à praia, antes do quebra ondas, e uns a nado, outros no bote nos reunimos na entrada da trilha, ali dá acesso a cachoeira. Depois da proteção aos mosquitos, principalmente dos chamados borrachudos, chinelos e pé na trilha. Previsto o percurso de meia hora. Na cachoeira uma festa, pois todos estavam havidos por água, então como há varias quedas e corredeiras foi aquele esparramo desordenado.

        Muita fala, os gritos misturavam-se ao compassado barulho das quedas. Banho aqui, banho ali, pedíamos que o tempo parasse. Mas, passou. Fomos nos reunindo, mirando toda beleza, um contando proeza, o outro tinha nova versão, quando foi notado a falta da menina Camila. Mila, seu apelido, tem nove anos é filha do Toni e da Emília (Lia). Brincando teria se escondido. Procura aqui, ali, começa intensa busca, nasce o desespero. Todos chamavam pela Mila, todos procuravam a Camila. Seu pai Toni subindo pelas pedras até a maior queda d’água, chamava, chamava. Gritou para que os de baixo calassem, queria impor seus apelos. Voltou a chamar, chamar. Chegou ouvir um longínquo e difuso paiiii... O som vinha da mata, mas não soube precisar o lado. Seria efeito agoniado, reflexivo. Eco do seu desespero. Agora pedia aos de baixo para gritarem, chamassem. Mas lá embaixo choros, misturando-se a gritos, já dominavam o grupo. Gustavo, o Gui, voltou à praia a passos largos, até corria para pedir socorro ao homem que lá na entrada tinha um quiosque de bebidas e conhecia bem o local. Outros queriam separados entrar pela mata, mas foram impedidos pelo Toni, o pai, pois alguém certamente se perderia. Nessa altura já ia caindo o sol, chegando à noite. Uns choravam, outros gritavam, mas ai não podiam e não deviam ficar. Era a chamada hora dos mutucas, e logo iria anoitecer.

        Com certeza a menina não tinha caído na água porque no fim das quedas e correntezas formava-se uma tranquila banheira, onde quem não subiu, ali ficou assistindo.

Contra vontade iniciaram a volta para a praia onde iriam aguardar, menos o pai. Ficou sentado numa pedra, olhava, chamava, chorava. Depois de passar várias revoadas, os últimos pássaros se acomodavam, escurecia rápido. Agora tudo era desconhecido, na situação o início do assombroso. O pai pedia socorro, pedia lanterna, um abrigo, invocava Deus.

        — Vou descer, buscar na lancha e depois fico aqui com você. Lá em baixo o dono do quiosque já sabe, o Gui desceu, já estão providenciando apoio, disse Rôni o comandante sentindo-se envolvido com uma ponta de culpa.
        — Fique ai. Não se distancie mesmo ouvindo algum barulho.

        Esta cachoeira, como quase todas, estão dentro da Mata Atlântica. Mato fechado, muito mais quando próximo das águas, só mateiro experiente o percorre, cortando palmiteiro e se esquivando dos inúmeros perigos. Mesmo para o pai Toni que insistia ficar ali, achando sua atitude o mínimo a fazer, não era prudente porque, muitos animais usam a noite para matar a sede e atacar outros que vem a procura da água, atraídos pelas quedas. Essa mata tem a Jaguatirica, perigoso mamífero carnívoro, cuja frequência é notada nas aguadas.

        O Rôni sabia disso, mas evitou comentar no momento o assustado pai.
        — Não saia daí eu volto já, já. Também sua mulher precisa de atenção... e Não saia daí continue chamando e se proteja, faça barulho.

        — O que a Lia tem? Perguntou Toni.

        — O mesmo problema seu. Só que é mulher, né?  Mais fraca, completou Rôni, saindo.

        Rôni chegou à praia ofegante, falou rapidamente com o grupo ali reunido, reunidos mas com os corações partidos porque carregavam a culpa de ter deixado a menina para trás, um imperdoável abandono. Uma triste sensação como aquela sentida quando se cruza a saída do cemitério e lá ficou uma pessoa amada. Esse sentimento foi percebido pelo comandante. Rôni pegou o bote, foi para a lancha e sua primeira providencia foi transmitir pelo rádio um SOS visando à equipe do resgate:

        — May day, may day, resgate. Atento, atento resgate. Lancha Roma chamando em situação de emergência. May Day, May Day, lancha Roma chamando resgate.

        Nada de responder. Nisso entrou uma outra:

        — Lancha Roma aqui é a lancha Corisco copiando seu chamado. - Interveio a Corisco. Quer que faça uma ponte? Como posso ajudar? Estou próximo à capitânia, cambio.

        — Oká Corisco, que bom, agradeço. Peça me chamar. Sou a Roma com sério problema aqui na praia Cajaiba. Para ganhar tempo o amigo vai ficar sabendo do ocorrido ouvindo meu relato, é que perdemos a menina... Tks Tks. Cambio.

Pouco mais de um minuto, e o resgate entra no ar:

        — Lancha Roma, Atenção Roma está na escuta? Aqui é o capitão da unidade de resgate. Primeiro dê sua posição.

Pouco mais de um minuto, e o resgate entra no ar:

        — Lancha Roma, Atenção Roma está na escuta? Aqui é o capitão da unidade de resgate. Primeiro dê sua posição.

        — Oká, oká Capitão. Deus é realmente grande. Estamos ancorados na praia Cajaiba, 23°15,929’S e 044°34,740’W, e o ocorrido é o seguinte: Copiou capitão?

        — Sim, está gravado, sei onde é, continue...

        — Era bem dia quando aqui chegamos pro banho da cachoeira...meu nome é Gerônimo...

        Assim fui contando o drama e o resgate, muito solícito, pediu calma, pois eu também estava muito abalado. O Capitão do resgate justificou viável sua saída à noite pelo mar, mas embrenhar-se na mata, seria muito imprudente. Amanhecendo tomaria todas as providencias e se necessário chamaria o helicóptero. Cansar os homens à noite, estaria prejudicando a busca da manhã. Um movimento na mata atiçaria a fauna, agravando a situação, pondo em perigo a menina. Quanto ao pai, recomendou: Tire ele de lá já!

Rôni preocupado com o pai Toni, lá sozinho, aceitou as ponderações do resgate e pegando lanternas e demais coisas, encarregou o arrais que ficasse atento no radio e que fosse administrando a situação. O Gui vasculhava imediações.

O grupo permanecia na praia, agora com a iluminação só de dois tocheiros de querosene do quiosque, todos ávidos por notícia. Para acalmar a todos Rôni falou do resgate, falou do helicóptero. Pediu que fossem logo para a lancha e aguardassem. Voltaria com o Toni, pois lá não podia ficar segundo o resgate. Na volta daria sinal com a lanterna para virem buscá-los.

        — Eu não vou, gritou a mãe. Quero minha filha. Não saio daqui, não saio daqui, me deixe aqui...

        Chorava copiosamente, ao extremo, nada mais podia falar. Rôni pedia calma, iriam achar sua filha. Era questão de horas.

        — A senhora vai com eles, eu vou buscar o Toni. Acredite em Deus! Tenha fé.

O comandante ficou enfraquecido diante do estado em que estava a mãe da Mila. Os demais tomados de medo por terem presenciado a agonia da mãe, seus choros, seus gritos de dor, estavam entregues, nada mais faziam a não ser abraçá-la. Dona Augusta imaginando a menina no mato, rezava pressentindo o pior. Rôni sentindo-se implicado não queria deixá-la, mas também precisava ir até o Toni. Deixou-o só era dia e agora naquela escuridão, sem lanterna, sem fogueira, preocupavam-se pela sua vida, ainda mais depois de ouvir o capitão do resgate: “Tire ele de lá já”. Falava a experiência.

        Lá em cima Toni, noite fechada, ouvindo o correr das águas entre tantas pedras, os ruídos, pios, gritos, correrias, punha-se atento, trêmulo. Um desses ruídos poderia ser de sua filha,. Mal conseguia afastar seu pensamento que só a via inerte no rio, rolando com as águas. Tremia...

        — Gente? Fiquem com a mãe, volto o mais rápido possível. Vão pra lancha. Agora não estou pedindo, estou mandando... deu meia volta, saía em direção ao Toni, quando...

        — Bruscamente o avô Téo disse: Quietos, quietos, atenção... parece que ouvi choro ...

        — É pássaro, ia dizendo o amigo Gui...


        — Rôni estancou, atento...

        — Pissiu, pissiu repetiu o avô, quietos. Foi um silêncio até da respiração... respiração do medo. Medo de não ser verdade. A verdade só Deus sabia.

Todos atentos, esperavam...

        A chamada nova trilha iniciava a esquerda do quiosque. A antiga, há tempos abandonada, saía longe uns 300 metros na praia à direita, junto a uma amendoeira na foz do rio da cachoeira.

Dali pressentia-se o choro que o avô escutou e apontou onde. Todos se voltaram naquela direção. Estava muito escuro. Num lapso a lua passou iluminando entre nuvens e algum vulto teria aparecido. Sumindo de novo ficou a dúvida, uma visão entre sombras contra a areia branca, sensação que tinha alguém lá.
        — Sim verdade, vejam. Não é ilusão, não.

Só que aparecia e na névoa das ondas o vulto se desfazia.

Camila quando chegou nesse local viu a distância a lancha iluminada entre as ondas encapeladas e visão turva.. Tentava chamar entre os choros, em vão.

 Além de longe, estava enfraquecida e dominada pelo medo. A voz mal saia.

        — Camilaáa, Camilaáa, Milaaa, insistiam os que estavam no quiosque na ponta da praia, mesmo sem vê-la.

Com o barulho das ondas quebrando ela não ouvia, mas viu uma luz frouxa que era de lampião muito distante. Tomou essa direção com muito medo, medo que foi aliviado quando ouviu as chamadas.

O grupo a viu correndo aparecer, flutuando na neblina, puxada pelo bracinho esticado para frente. Mas quem a puxava se estava só?

Querendo gritar a voz não saia, saia um suspiro magoado. Correu, correu, mas a emoção antes do encontro a derrubou na praia. De bruços ficou estendida, chorando, enquanto todos corriam em sua direção. Uma correria, uma alegria, uma gritaria. A mãe já no último fôlego jogou-se ao seu lado. Os outros chegavam caindo juntos, ajoelhando-se. Às lágrimas da mãe, misturadas àquela areia branca, empastavam seu rosto e o da menina. Obrigado Deus! Obrigado Jesus, ouvia-se. Aquilo comovia! Na hora, sentiam a emoção de um milagre!

        Do mar, uma onda com brilho e aos rolos veio morrer junto delas. Aproveitando-a lavaram a cara e a alma ficou mais leve.

        Ainda tremendo Mila levantou-se, olhou todos, ainda ajoelhados, queria fugir dali, o medo ainda a seguia, virou-se para a mãe, jogou-se novamente abraçando-a fortemente entre soluços.

Rôni esqueceu o pai lá em cima, naquele atribulado desfecho. Responsável saiu desesperado subindo a trilha, carregando sua lanterna, e ainda longe da chegada, ouvia uma debilitada voz que chamava: filhaaaaa, filhaaaaa, Camilaaaaaaaaaa...

         Toni o pai, quando viu os primeiros sinais da lanterna, sentindo-se inseguro chamou: Rôni, Gerônimo, Rôni...

        — Sou eu. Estou chegando, espere.

No encontro, ainda uns cinqüenta metros separados, Rôni foi logo dizendo: Ela chegou, está viva, a Mila chegou, esta lá em baixo, calma! Está tudo bem...

Toni despencou, sentou, levantou, cambaleou, caiu num profundo choro, e atirou se nos braços do amigo que foi contando...

        — Ela veio pela trilha antiga, depois de se perder próximo aqui da cachoeira quando foi apanhar flor, que por sinal carregou consigo até o fim. Era à flor do maracujá que a mãe ao encontrá-la tirou de suas mãos, toda amassada.

— Vamos? A Cami te espera.

        Na praia o Waldir já tinha voltado e esperava com o bote, o pai e Rôni.

        — Seu Toni! Que susto! Está tudo bem agora. Exclamou o Waldir.

        A Mila na lancha, agora aparentemente refeita, depois do banho que a mãe lhe deu ao chegar, um banho quente e rápido, agora toda agasalhada, estava com medo de ver a reação do pai que chegava. Encolhendo-se no colo da mãe, disse:

        — Mãe... ele vai me bater?

        — Não filha, não vai.

Este completamente acabado com o que passou nas últimas horas, ao subir na lancha só disse:

        — Filha, filha!

        Num forte abraço, fechou os olhos, não saiu uma única palavra, mas rolavam as lágrimas.

Um chamado do rádio quebrou o silencio.

        — Atento. Atento lancha Roma. Atento, atento lancha Roma.

        — Oka oka Lancha Roma na escuta, atendeu o Waldir.

        — Canal 69, oka?

        — Roma no 69 na escuta.

        — Aqui é o capitão Roque, do Resgate, está copiando?

        — Bem claro capitão. Acabava de pegar o microfone, ia lhe chamar. Um momento nosso comandante Rôni vai falar.

        — Capitão, Salve Capitão! Na minha vida esta e a maior alegria que até então tive. Está copiando Capitão?

        — Sim comandante. Prossiga, cambio.

        — Capitão Roque, vou passar o fone ao Toni, o pai da menina Mila.

        — Capitão Roque, aqui é Toni, o pai da Mila. Estou chegando da cachoeira, vivo, alegre, surrado, acabado e feliz por abraçar minha filha, capitão! Copiou? Copiou capitão. Cambio.

        — Que boa notícia! Como foi, cambio.

        — Quero lhe agradecer de coração. O Rôni nosso comandante fala com o senhor. Eu to só emoção...

        — Oi capitão, explico: Tem duas trilhas para a cachoeira. Atraída pela mata, a Mila que tem nove aninhos, deu uma errada e pegou o caminho da antiga trilha, perdendo-se. Quanto mais queria chegar às águas, mais se afastava. Deus a trouxe de volta saindo já noite na praia. Queria me antecipar a lhe dar a noticia, mas essa guarnição, como sempre foi mais rápida. Estou emocionado também, falei muito. Obrigado capitão, obrigado, cambio.

        — Comandante, fico feliz pela noticia, dou baixa no chamado e recomendo vigiar bem as crianças.  Chame amanhã, depois das duas, preciso acertar o BO. Agora descanse. Prenda bem a lancha e coloque alarme, se tiver. Boa noite a todos. Volto para o canal de chamada e aqui continuaremos vigilantes. Cambio.

        Com todos a bordo, foi servido lanche para uns e prato mais reforçado para outros que matando a fome vingavam tantas horas de sofrimento. Ninguém mais se lembrava da beleza vivida no dia.

        Gui só quis um café, estava mareado. Por medida de segurança a lancha foi levada mais ao sul onde apresentava maior abrigo. Foi lançada a segunda âncora e no GPS acionado alarme ao atingir arrasto superior a cem metros de segurança.

        O tanque de água doce marcava 500 litros, tranquilidade para o banho quente de todos. O dia foi pesado, ainda assim teve quem quis assistir um filme, alegando a chamada canseira que dá fuga ao sono. Toni o pai da Mila acomodou-se no cockpit e olhava o mar, os reflexos da lua, a imensidão das águas, simplesmente vagando, abobalhado, incrédulo, sentia-se anestesiado enquanto tomava uma forte bebida e tentava devorar um sanduíche. A mãe, Lia, foi deitar-se agarradinha a Camila. Não conseguia dormir. Tinha medo de dormir. Pra ela tudo já se parecia uma ilusão, seria verdade, teria sido um sonho?

O silencio total voltou na lancha, as luzes foram-se apagando, só ficou um sufocado ronco do gerador e do pai Toni, enquanto marcando ritmo quebravam as ondas lá na praia descampada. Via-se naquele quiosque um tocheiro ainda queimando o último querosene, as derradeiras línguas de fogo ora sim, ora não, apareciam.



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