O segredo guardado
Fernando
Braga
Com 60 anos, morava sozinha em um
pequeno apto no Itaim Bibi, desde que perdera seu marido, com um enfarte
fulminante.
Tinha uma vida tranquila, confortável,
parte proporcionada por seus três filhos, profissionais competentes. Sonia apesar
de dizer-se muito feliz, guardava algo que nunca se esquecera, que sempre
tivera receio de comentar, mesmo com seus filhos.
Passados quase 40 anos, lembrava-se com
detalhes bem nítidos um momento de sua vida, um ocorrido fatal.
Vinha em sua lembrança seu primeiro
namorado, Josias Decunto Oliveira, de 25 anos, filho de pais ricos, que lhe
deram, recentemente, um chevrolet belair.
Certa tarde convidou-a para dar uma
volta em seu carro, o que foi aceito após resistência.
Passaram por um barzinho onde tomaram
cuba libre, trocaram beijos e após duas horas saíram. Entraram no carro e
ouvindo uma deliciosa música americana, tomaram uma avenida pouco movimentada. Ele
estava muito falante, querendo mostrar-se, e pegou um Hollywood.
Não corria, mas largou por uns segundos
a direção do carro para acender o cigarro, e foi aí, neste preciso momento que a roda
dianteira pegou uma pedra e a direção mudou, desviando o carro, que foi
rapidamente rumo ao meio fio, atingindo
em cheio uma pequena garota que andava cuidadosamente de bicicleta. O baque foi
estrondoso jogando a criança e a bicicleta violentamente contra o poste.
Neste preciso momento ele acelerou, olhou
para os lados e para trás, para ver se alguém havia visto o ocorrido.
Sonia, na hora, pediu que parasse
imediatamente e voltassem para dar um atendimento à vítima. Mas, ele não deu
atenção. Queria apenas fugir do local. Ela pedia encarecidamente que parasse o
carro para que ela pudesse voltar sozinha, mas nada.
Dizia repetidamente ele, que a criança com a
bicicleta entrara em sua frente e que não tinha qualquer culpa.
Tomou
uma estradinha vicinal, parou o carro e disse ela:
—
Você é testemunha de que ela, imprudentemente, entrou na frente do carro e eu
não tive nenhuma culpa!
—- Por que você não parou para darmos assistência?
— Coisa
nenhuma, porque aí eu seria preso por algo que ninguém viu, e que não sou
culpado.
Ela estava muito nervosa e chorava
copiosamente. Ele procurava consolá-la, acalmá-la e enfatizava:
— Se nos pegarem você também será presa e
é bom ficarmos bem quietinhos. Se meu pai souber, pode me matar ou tirar meu
carro. Por favor, te peço, não comente isto com ninguém.
No dia seguinte, lendo o jornal da
cidade, ela soube que a criança estava internada e muito mal. Morreu dois dias
depois. Recortou a notícia que trazia o nome da
criança de apenas 11 anos e mencionava ainda, que quem a atropelara, não parara
para dar assistência.
O namoro esfriou completamente quando
resolveram guardar segredo do ocorrido.
Sonia veio para São Paulo para estudar e
por aqui ficou após seu casamento aos 26 anos. Teve três filhos, que se
tornaram bons profissionais, um médico, uma psicóloga e o mais jovem, advogado.
Com o passar dos anos, esta lembrança
terrível saía pouco da mente de Sonia. Sonhava,
tinha pesadelos, a maioria relacionados com sua covardia em não ter denunciado Josias.
Sabia que nada poderia acontecer a ela, mas guardava segredo total de tudo e a
todos, incluindo seu marido que muito amou.
Com 60 anos, tornou-se vítima de uma
doença insidiosa e prognóstico fatal. Na fase final, teve que ser internada.
Uma noite, chamou seus três filhos querendo
despedir-se deles e pedindo para elevar a cabeceira da cama, disse a eles:
—
Tenho uma confissão para fazer a vocês, um
segredo que guardo a vida toda, há mais de 40 anos.
Contou todo o ocorrido, a morte da
criança, a covardia de seu namorado e dela própria, a fraqueza de ambos, terminando
por dizer que queria morrer sossegada, após ter tido coragem em confessar a
verdade.
Neste
momento fez lembrar o nome completo daquele namorado e da cidadezinha em que
moravam. Entregou a eles o recorte de jornal, bem envelhecido, amarelado, sobre
a publicação do acidente, com o nome da infeliz. Morreu dois dias após.
Os três se reuniram, comentaram sobre o
que a mãe havia relatado e perguntaram para si mesmos:
—
Vamos deixar assim? Por isso mesmo? Nossa mãezinha não vai descansar se ficarmos quietos!
Foram à cidadezinha, procuraram pelo Sr.
Josias, um rico fazendeiro, conhecido em toda a região. Foram à sua casa e
pediram para falar com ele. Ao ouvir que era um médico e outros, logo os fez
entrar e os recebeu na varanda ao lado da piscina.
— E então? O que os senhores vieram fazer
aqui? O que querem de mim? Em que posso ajudá-los? - perguntou ele sorrindo.
Pelo nome não os conhecia, mas quando
disseram o nome de sua mãe, uma de suas ex-namoradas, imediatamente fechou a
cara, ficou sisudo, inquieto, mostrando preocupação. Pensou ele muito rápido: “O que vieram eles fazer aqui em minha casa? Será
que vieram me acusar? Querem me levar à polícia? Eles podem ter vindo me
chantagear e querem dinheiro!”
O médico calmamente relatou sobre a
morte de sua mãe, do segredo que por mais de 40 anos guardara, o que havia feito
com que sofresse todo o tempo não ter tido coragem de comentar com alguém. A sua
confissão foi o último ato de sua vida.
“Sabiam de tudo e com detalhes! Será que
um milhão os faria esquecer? Mas não pareciam necessitados e falavam com muita firmeza”
- pensava
ele.
Despediram-se secamente, sem dizerem
nada.
Conseguiram, pelo nome, localizar alguém
da família da criança morta. Seu pai já havia falecido, mas a mãe sofredora
continuava viva, velhinha. Encontraram-se com um irmão da vítima, que vendo o
recorte de jornal que lhe foi entregue ficou surpreso, emocionado. Nunca
ficaram sabendo dos culpados pelo acidente, por mais que tivessem procurado.
Após 40 anos, ali estava a verdade, que
demorou, mas não falhou. Todos da família ficaram surpresos ainda mais, quando
souberam o nome do verdadeiro culpado, a pessoa mais rica da cidade.
Os três irmãos se retiraram, deixando à
família o próximo passo a ser tomado. Missão cumprida! Que sua mãezinha agora
descansasse em paz!
Foi aberto um processo, o réu condenado
a vários anos de prisão e seu nome conhecido, ficou desmoralizado na pequena
comunidade e região.
Bem
feito, para quem mostrou-se um covarde, desumano e outras coisas mais!
Morreu
após 3 anos dentro da penitenciária.
O
motivo ninguém sabe! Talvez pelo seu sofrimento, merecido!
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