O CRIME DO PADRE ENSANGUENTADO - Oswaldo U. Lopes



O CRIME DO PADRE ENSANGUENTADO
Oswaldo U. Lopes

         São 23h00min em ponto e o ônibus leito para Votuporanga começa lentamente se afastar do terminal rodoviário da Barra Funda. Acomodado, mas ainda sem sono o detetive Sergio Hiroito da Divisão Especial do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção a Pessoa Humana) da Policia Civil de São Paulo, vai pensando na turbulência do dia.

         A fotografia do padre morto e todo ensanguentado chegara pela manhã vinda de Votuporanga. O crime comovera a cidade e até no Gabinete do Governador houvera manifestações. Aparentemente o Padre Arlindo era bem quisto e de conduta ilibada, quer dizer, não era pedófilo nem tinha uma família pela cidade ou corneava algum paroquiano mais desavisado. Essas e outras piadas circularam na Divisão Especial sem maiores consequências.

Foi com surpresa que recebeu a chamada do Delegado Principal e a missão de deslocar-se para Votuporanga e lá permanecer o tempo necessário para apurar o que de fato acontecera. Tinha o respaldo dele e do secretário, mas devia agir com sobriedade e não se expor muito. Que evitasse situações de confronto com os delegados locais. Já havia verba liberada e nas circunstâncias e pelo preço fora até sorte encontrar uma vaga no ônibus leito. Aviões na ultima hora são caríssimos e pedir uma vaga num voo, estava fora de cogitação. A manchete viria na certa: “Japonês da estadual vai investigar o crime do padre”. Era conhecido da reportagem policial da capital, mas em Votuporanga era quase certo que passaria despercebido.

Teria adorado fazer a viagem de trem, como costumava fazer com os pais quando era moleque. Seus avos eram de Oswaldo Cruz, perto de Bastos, o quartel general da imigração japonesa, rural, no Estado de São Paulo. A viagem era longa e começava com a Companhia Paulista e se completava com a Estrada de Ferro de Araraquara (Araraquarense, para os íntimos). O pai havia se mudado para São Paulo ainda jovem e conseguira certo sucesso como desenhista e grafista. Os avós plantaram tomate até o fim da vida.

Hoje a viagem de trem não era mais possível, pelo menos para passageiros, havia uma revitalização extraordinária para cargas através da ALL (American Latin Logística), e ele tinha notícia dos enormes trens que cruzavam Votuporanga e até, pasmem, desastres de trem nessa cidade.

Foi pensando nestas coisas e em outras de sua infância que Hiroito adormeceu e acordou praticamente dentro de Votuporanga as 06h00min da manhã.

Foi, para sua surpresa, recebido cordialmente sem manifestações hostis ou ciumentas. O delegado local Joaquim Andrade tinha sido do DENARC e depois de se meter em certas confusões habituais no pessoal que mexe com drogas, fora transferido para a relativamente calma Votuporanga.

Ao final do dia tinha um quadro claro dos acontecimentos. Na noite de domingo o velho sacristão ao preparar-se para fechar a igreja se deparara com o horrível quadro: o padre morto todo ensanguentado, no chão do seu pequeno escritório.
A igreja do Bom Jesus era simples, nave relativamente comprida, arco cruzeiro, sacristia à esquerda com o escritório do padre num canto. Do outro lado, salão paroquial com uma minúscula sala, do sacristão ao fundo.

Antônio, o sacristão, profissão que exercia há mais de cinquenta anos, por volta das dez, como fazia toda noite, preparou-se para fechar a Igreja e recolher-se à casa paroquial que ficava fora, nos fundos do terreno da Igreja. Para tanto se dirigiu ao escritório do padre que também iria se recolher.

Foi quando o encontrou morto, numa poça de sangue, provavelmente baleado. Mistério completo, não via o padre desde a missa da tarde que terminara as 19h00min o que demarcava a hora do crime entre as 20h00min e as 22h00min. Motivo? Hiroito que gostava das coisas simples pensou na pedofilia ou relações similares, mas com um sacristão de quase setenta anos a coisa não progredia. Não havia meninos no coro, nem coroinhas.

Se o padre tinha uma espécie de família, e tinha, era muito discreto. Como Hiroito descobriu depois a tal família era composta apenas da mulher do padre que vivia em outra cidade, Jales e que era da mais completa discrição. Chegou a conversar com ela que estava visivelmente abatida e chorosa, mas não tinha o menor aspecto de quem era capaz de empunhar e descarregar um revolver.

Outro mistério era que o sacristão que se não era bom de ouvido, surdo não era, não ouvira nada naquela noite, nada de nada! A autopsia revelara arma automática de calibre grosso cujos dois projeteis haviam perfurado a aorta, daí o sangramento encontrado à volta. A hemorragia fora tão grande que a morte deve ter sido quase instantânea.

O intrigante era a ausência de ruído.  Deviam ter usado um silencioso. Arma automática de grosso calibre, silencioso eram hoje comuns no crime organizado, mas não na longínqua Votuporanga, a menos que o Padre Arlindo estivesse metido numa história daquele tamanho e fez o gesto mental de algo muito grande. Era certo que aquela história de silencioso encurtava o campo dos possíveis criminosos.

Resolveu procurar o confessor do padre. O padre Caetano vivia em Fernandópolis que era pertinho, como informara o sacristão. Foi até lá, não acreditando que iria conseguir alguma coisa, e de fato não conseguira. Mas, os tempos eram outros e o Padre Caetano, não o recebeu mal, alegou o segredo do confessionário, mas agregou uma frase interessante:

— Eu o absolvi, mas lhe disse que devia reparar o mal causado. Que mal era esse que podia ser reparado?

Padre Arlindo era padre secular, ou seja, não pertencia a nenhuma ordem religiosa, pelo que, com exceção de família, pelo voto de celibato, podia ter bens matérias e rendas independentes da Igreja. E as tinha. Antônio informara que o Padre era dono de uma fazendola que começara com um sitio e recentemente se expandira pela compra de terras vizinhas. Nelas cultivava produtos de todo dia, como hortaliças e até tirava leite em quantidade apreciável. Tudo era entregue na cooperativa local que repassava para a merenda escolar.

Epa! A luzinha acendeu!

Merenda escolar estava na ordem do dia, ou melhor, na desordem do dia. Em várias cidades, vereadores, secretários e ate prefeitos estavam sendo investigados. Se este era o crime do Padre Arlindo o que poderia ser o reparo a que aludiu o padre confessor.

Delação premiada era outra coisa que estava no todo dia dos jornais. O padre resolvera contar tudo e gravara um depoimento explosivo na manhã daquele sábado como o atestava sua ida para delegacia. Provavelmente fizera o depoimento na frente do escrivão e do delegado. Tudo perfeito, não fosse um pormenor, ambos estavam também metidos na fraude da merenda e com a denúncia do padre a coisa ia tomar vulto e chagaria neles. Sumiram com o depoimento e resolveram que era melhor sumir com o padre também.

Hiroito telefonou de seu celular, longe de Votuporanga, para o Delegado Chefe e explicou a situação. Era obvio que pelo tamanho do peixe ele não ia poder dar a ordem de prisão. O próprio delegado o fez e deu fim ao mistério.


Como recompensa Hiroito ganhou uma passagem aérea para São Paulo e assim voltou de TAM e não de trem nem de ônibus.

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