O QUADRO
M.
Luiza de C. Malina
Elizabeth
na fase dos seus 65 bem vividos, esbelta senhora em cujas rugas o sorriso se
deitava, dedicava-se duas vezes por semana às aulas particulares em que ministrava
técnicas exóticas de pintura, momento em que o cheiro das tintas abria um
espaço para o contido em sua juventude.
Naquele
dia, tardei-me na aula. Aplicava pedras na tela. Ela se levantou. Tropeçou em
um dos quadros desbotados de flores secas. Blasfemou. Quis ajudá-la, no entanto ela se ergueu rápida
a falar de modo que a estranhei. Tornou-se raivosa, e amarga:
—
Oh! Isto não tem mais importância, ainda bem que se quebrou! Disse com forte
desdém. Lá estava tudo, feio, muito
feio, desbotado, queria que tudo tivesse se acabado naquela hora, aquele sangue
da flor misturado com a água, hug! Causava-me enjoo. Desculpa, sim... – e
continuou:
Era
jovem, tinha uma vida boa, até que num dia de muita chuva me abriguei junto à
porta de uma casa sob o beiral. De lá eu podia ver claramente o que acontecia
dentro da casa.
Fiquei
curiosa, porque alguém puxava os cabelos de uma moça. Via as mãos dele cheias
de cabelos enrolados. A moça no chão, chorando. Espichei para ver melhor. Bati
a cara no vidro que se quebrou. Eles olharam. Ele era um idoso e velho conhecido na cidade, tido como perigoso.
“Bem, eu
nunca iria me casar com um homem de mais idade mas ele tinha dinheiro, devia
ser por isso que ela estava com ele”.
Com
a vidraça quebrada afastei. Não deveria
ser vista. Deixei-os pensar que fui
embora. A chuva era muito forte. Estava encharcada e com frio. Fiquei
observando aquela briga, vi quando ele rasgou a blusa dela enquanto puxava mais
os cabelos exigindo que a moça a fizesse alguma coisa. Coitada, estava com os
seios à mostra. Eu me escondia para assistir os acontecimentos por parte.
Espreitava pela janela que começava a embaçar. Os gritos dela vinham pelo buraco da janela,
misturados aos plóc plóc das batidas das gotas da forte chuva. Ela aos pés dele
implorava que a libertasse, estava com um corte no peito. Pensei em chamar
alguém. A rua vazia. Uma densa corredeira se fez aos meus pés. Eu me espremia mais
contra a porta que de repente se abriu! Tratei de cobrir minha cabeça com o casaco preto. Fiquei de
costas. Nervoso, ele nem deve ter me visto. Parecia afobado, olhou de um lado para o outro da rua, e de súbito lançou-a na sarjeta. Agora podia vê-la com
clareza. Estava com os cabelos raspados de um lado só, sangrava, uma orelha que
parecia cortada e a faca enfiada na altura do estômago.
Escorreguei
sobre minhas pernas. O pavor me dominava naquele instante. Ao entrar, ele me
viu. Parou. Olhou-me furioso. Fiquei em estado de choque. Pensei em correr. Ele
entrou deixando a porta aberta, voltou com
um quadro nas mãos, e o colocou perto de mim e:
—
Hoje não tenho dinheiro para dar, fique com este quadro e venda-o, é de grande valor.
Petrificada
junto ao chão, vi o sangue se misturar à chuva na sarjeta. Estava
morta! A moça parecia morta! A porta outra vez se abriu. Não olhei. Encolhi-me
mais. Ele saiu levando uma mala debaixo do guarda-chuva preto. Nunca mais foi
visto. A corredeira movia lentamente o corpo da jovem que sangrava a água da
chuva. A intensidade da enxurrada aumentou em segundos e levou o corpo adiante,
parecendo que ela o queria seguir.
Não
sei por quê. Guardei esta porcaria. Nunca contei nada para alguém. Nunca
souberam o que aconteceu com a moça, naquela época, era apenas uma moça encontrada
morta.
—
Ah! Sim! Onde estávamos? Fique com o pouco que restou do quadro.
—
Não, não, muito obrigada.
—
Eu insisto. É seu!
O
quadro já enfiado na sacola foi-me empurrado porta afora. A porta se fechou.
Nunca mais retornei às aulas.
Sem
alternativa, lá estava eu de posse do famoso quadro. Antes de entrar em casa, acabei
de quebrá-lo acidentalmente dentro da própria sacola, alguma coisa fez minha
mão sangrar.
—
Maldito! – reclamei, ainda vou herdar um tétano.
Ao verificar, deparei-me com o brilho de
muitas, mas muitas pedras incrustadas numa espécie de cimento, que davam
suporte às desbotadas flores.
Cintilava
na dança do brilho o fascínio dos meus olhos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário