Um roubo quase
perfeito
Ises
de Almeida Abrahamsohn
Quando
Dona Clotilde Dutra
chamou seu joalheiro de confiança
para avaliar o colar e os brincos de
esmeraldas e rubis estava certa de que lhe renderiam pelo menos uns quatrocentos mil
dólares. Quase teve um ataque quando Latif,
depois de as examinar minuciosamente,
pigarreou e anunciou :
—
Madame, sinto muito, mas estas não têm
valor de venda. São excelentes réplicas, nada mais. Dona Clotilde,
incrédula, ainda murmurou:
—
Mas
o senhor mesmo esteve aqui há dois anos
e as avaliou como autênticas! O joalheiro acenou com a cabeça,
sugeriu-lhe um outro avaliador para confirmação e, diplomaticamente,
despediu-se sem pronunciar a conclusão
obvia: roubo.
No
dia seguinte, Clotilde fez vir outro
avaliador de loja conceituada que lhe confirmou o veredito do primeiro. Sem
demora recorreu ao detetive Matos que resolvera
um furto de que fora vítima há cerca de dez anos. Ele agora trabalhava
para a empresa seguradora das joias. Ao
abrir-lhe a porta, quase não o reconheceu. Antes magro e
ágil, agora avançava pela sala em
passos lentos precedido por uma protuberante barriga que o paletó encobria. A vasta cabeleira castanha tinha se reduzido à metade mas o detetive
conservara o fino bigode e ainda se vestia com o mesmo apuro: terno
marrom escuro, gravata e sapatos de
forma inglesa. Clotilde se perguntou se ele ainda seria eficiente como antes,
mas filosofou que ela própria ainda
conservava a mesma boa cabeça.
Após
os comentários de praxe, o Matos foi
direto ao assunto. Quis ver as joias, o
cofre onde ficavam trancadas, a penteadeira onde Clotilde as mantinha ao chegar das festas e antes de voltarem ao
cofre e
outras minúcias. Quanto às suspeitas que Clotilde poderia ter, o Matos logo percebeu que ela hesitava em
mencionar quem quer que fosse. Eram na
maioria parentes e pessoas estimadas.
Finalmente o Matos conseguiu uma lista
de quem frequentara a casa nos últimos anos.
Foram mencionadas duas sobrinhas,
Aline
e Márcia que, em ocasiões diferentes, moraram na casa por algum tempo antes de viajar para estudar no exterior. Insistiu
que isso fora há mais de dois anos e que não tinha porque suspeitar delas. Entretanto lembrou-se que Aline lhe fizera uma
visita de dois dias há cerca de 7 meses antes de retornar a Miami. Lembrou-se
também da fisioterapeuta que a tratara por alguns meses após ter fraturado a perna. Havia ainda
a faxineira Marilda e a empregada
Dolores que estavam com ela há mais de 8 anos. Também se lembrou do rapaz que instalou o computador e a
extensão de Wi-Fi para a sala e o escritório.
O
Matos ainda perguntou à Clotilde o que
era feito de seu ex-marido, de quem ela se divorciara há uns oito anos, quando
já viviam neste apartamento. Clotilde se espantou:
— O
Carlos, aquele pilantra , graças a Deus
nunca mais o vi, nem sei aonde anda. O Matos se lembrava do caso. O tal
Carlos fora flagrado com um rapaz e
anunciou que “saíra do armário” às revistas de fofocas. A fortuna era da mulher e o ex-marido ainda
extorquira dela uma boa soma sob ameaça de prosseguir com o escândalo público.
Clotilde
percebeu que o detetive anotava tudo no
tablet. Afinal, pensou ela, o Matos,
apesar da idade acompanhou a modernidade.
Ficou de voltar no dia seguinte para tentar ver se conseguia alguma
impressão digital no cofre ou na caixa de joias. Adiantou que não tinha
muita esperança. Neste crime que parecia elaborado, o criminoso decerto
usaria luvas.
De
volta ao escritório Matos cogitou por onde começaria. Talvez tivesse alguma
sorte buscando joalheiros que fizessem cópias de joias. Procuraria também
alguns de seus contatos entre os receptadores para verificar se as pedras lhes
tivessem sido oferecidas . A tal
sobrinha Aline era uma forte suspeita: conhecia bem a casa e nos dois dias que lá passara poderia ter
feito a troca das joias pelas réplicas.
Para
isso a ladra (ou ladrão) precisaria
saber a combinação do cofre. Até aí, qualquer um dos mencionados poderia ter
espiado Clotilde quando esta mexesse no
cofre que guardava, além das joias, também
dinheiro e documentos. De qualquer modo faria
uma investigação na situação
financeira dos suspeitos.
No
dia seguinte de manhã voltou ao apartamento munido do material para a coleta
das digitais. Fez um trabalho meticuloso de coleta: do cofre, da moldura do
quadro que ocultava o cofre, do estojo das joias e da penteadeira de Clotilde. Aproveitou e colheu
as impressões da própria e da empregada
e da faxineira. Encaminhou o
material ao Tiago do serviço de
datiloscopia da policia que fazia a verificação como serviço extra. À tarde,
levou as réplicas para os montadores de joias. O trabalho era de boa qualidade, possivelmente
a partir de fotos detalhadas das peças e não de uma foto rápida tirada com
celular ou de alguma foto de Clotilde usando as joias. Matos ainda ligou e passou uma foto das joias para o seu
contato entre os receptadores.
Chegando
ao escritório, Matos atendeu Tiago ao celular. Como esperava, nada de útil: as impressões digitais no
quadro e penteadeira eram apenas de Clotilde e da faxineira e no cofre e estojo
apenas de Clotilde. O seu contato de Miami
que tinha antes informado a
compra de um apartamento e de um carro pela suspeita Aline deixou-lhe um recado. Apurara que o dinheiro
para tal viera de uma indenização recebida em um processo.
Matos suspirou. Ainda não tinha nenhum indício do
ladrão. A faxineira e a empregada bem como a fisioterapeuta, também de reputação
ilibada, eram improváveis, assim como a outra sobrinha, Márcia, que continuava morando como estudante em Sidney.
Restava
o tal consertador do computador. Ficaria para o dia seguinte. Tirou a gravata e
abriu o colarinho antes de tomar o elevador. Foi para casa caminhando pela orla
até seu apartamento num prédio modesto no Leme. Essas caminhadas de final de
tarde costumavam lhe aguçar o espírito. Deu uma parada no bar do Gouveia para
um chope e lá ficou olhando
distraído o movimento no calçadão e na praia.
Voltou-lhe
à cabeça uma ideia que já lhe ocorrera antes.
O roubo, tal como executado, requeria duas pessoas, uma que conhecesse
muito bem as joias da Clotilde e outra
que tivesse acesso ao cofre para realizar a troca. Esta ultima tinha que ter a
combinação do segredo do cofre e a oportunidade de fazê-la. O Matos de repente exclamou para surpresa
dos outros fregueses:
—
Claro! Como não pensei nele antes! Rapidamente pagou a conta . O
Gouveia, já acostumado aos rompantes do
cliente de muitos anos, caçoou:
— Mais um mistério resolvido, Matos
?
No
dia seguinte cedo foi atrás do consertador de computador. Tinha apenas o nome, Laurindo Esteves e o numero do telefone celular.
Tentou conseguir o endereço com a desculpa de querer levar o computador
para conserto. Não conseguiu. O rapaz só
trabalhava com agendamento em domicilio. Combinaram a visita para o mesmo dia à
tarde. Matos tinha um computador mais
antigo encostado que o rapaz
modernizou. Assim conseguiu dele os
dados bancários para depósito e o nome completo. O primeiro nome era
Claudionor, que ele omitia no cartão de visitas. Sem que o suspeito percebesse,
Matos fotografou-o com o celular.
Depois
o Matos passou à caçada do ex-marido de Clotilde, Carlos Garcez. Apresentava-se como professor
de inglês e, de fato, tinha sido dono
até há uns três anos de uma escola
na Tijuca. A escola falira e o tal Carlos sumira do Rio devendo bastante dinheiro. Matos conseguiu junto ao
INSS descobrir o endereço de Carlos em Juiz de Fora e os nomes dos professores
aos quais Carlos dera o calote. Foi
procurá-los. Dos dois teve a informação mais importante do dia. O Carlos tinha
um namorado que fazia a manutenção do
equipamento da escola e, de fato, era o rapaz na foto tirada por Matos.
Bingo
! Pensou o detetive. Foram os dois. O Carlos deve ter fotografado as joias
quando ainda casado com a Clotilde, encomendou as réplicas e depois o
Laurindo, aliás Claudionor, se encarregou do roubo propriamente dito.
Fazia sentido, mas era preciso ter algo
sólido, no caso a movimentação de
dinheiro ou alguma compra de vulto para acionar a policia. Matos ainda descobriu, nas revistas antigas, que o namorado de Carlos por ocasião do divórcio era
o mesmo Claudionor. Infelizmente mesmo seguindo as pistas não conseguiu ver nenhum sinal de
enriquecimento na modesta vida de Claudionor.
Nesse
ponto o detetive Matos teve que recorrer ao seu amigo, o delegado Martins. Este
tinha como mexer os pauzinhos para averiguar os saldos bancários e obter informações dos dois suspeitos. De
fato, apareceram nas contas de Claudionor e de Carlos depósitos há cerca de um
ano (coincidente com os serviços de
Claudionor na casa de Clotilde) que somados chegavam a cerca de duzentos mil
dólares. A maior parte do dinheiro já
tinha sido retirada.
Os
dois ladrões foram presos. Parte do
dinheiro foi recuperada em contas nas Bahamas e um imóvel foi comprado por
Carlos na Bahia. A seguradora conseguiu
assim reaver parte do valor das peças.
O
Matos ainda queria saber do Claudionor como conseguira a combinação para poder abrir o cofre. Este com uma risadinha de superioridade
explicou:
— Foi
fácil ! As pessoas têm medo de esquecer senhas e códigos e em geral as escondem em algum arquivo de computador . Eu fiquei lá
no escritório mexendo no computador da velha
por dois dias. Finalmente achei o
arquivo, disfarçado entre arquivos de receitas de cozinha. Foi só testar
algumas das combinações de números que
encontrei a correta na receita de sopa de cebola. Foi muito azar o nosso. Se a Clotilde
não tivesse resolvido vender as joias o
roubo passaria desapercebido até o inventário,
talvez só daqui a vinte anos.
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