SANGUE NA TRILHA DA MONTANHA
Suzana
da Cunha Lima
Ela
morava numa das seis casinhas naquela pequena vila, onde só entravam os carros
dos moradores. Janice gostava de se sentar na pequena varanda, onde pendurara
uma bela samambaia e entrelaçadas na grade preta, subiam alguns pés de azaleia
que floriam gloriosamente na primavera. Era seu pequeno jardim, seu mundo
perfumado e florido. Ali podia observar todo o movimento das outras casas e até
da rua central, pois sua casinha era a primeira perto da guarita.
Deus
a presenteara com uma bela vida, pensava, uma infância alegre e amorosa e uma
juventude pontilhada de festinhas e de esportes menos convencionais, porque
amava fazer trilhas com seu grupo do Clube de Excursionistas. E, contudo,
estudara, era advogada e tivera certo sucesso, até se casar meio tardiamente e
ter seus dois únicos filhos. Um belo casamento e nunca lamentara ter deixado a
profissão para cuidar dos filhos.
Quando
se sentava na varanda, depois do olhar esgotar a paisagem urbana que via dali,
o pensamento voava para muito longe, voltava no tempo e se detinha em algum
lugar do passado. Havia uma visão
recorrente que a deixava com calafrios e contra a qual ela pouco podia fazer, a
não ser recordar tudo em seus mínimos detalhes, para esgotar o horror e poder
voltar à normalidade.
Via-se
outra vez, adolescente, percorrendo a trilha que levava à Pedra da Gávea, no
Rio. Eram umas dez pessoas, no
máximo. O guia era o profissional que o
Clube designava para se responsabilizar por aquela empreitada. Cuidadoso e experiente ia levando as pessoas,
ensinando a trabalhar com as cordas, sempre atento a algum que demonstrasse
medo ou inabilidade. A vista lá de cima
era magnífica e valia todo o cansaço. Na volta, o cuidado era com pedras soltas
e com a própria lei da gravidade, que levava as pessoas a irem mais depressa do
que a prudência aconselharia. Podia ocorrer, num grupo mais amador, que algum
resolvesse ficar em algum trecho, por estafa ou medo, e o guia os deixava num
ponto seguro, para recolhê-los na hora da descida.
Naquele
dia, uma meninota de doze anos, amedrontada, resolveu ficar e o guia a deixou
sentadinha numa pedra lisa, em segurança.
Com ela ficaram o tio, de uns 45 anos, o irmão de oito anos e o outro guia, Nestor. Passado algum tempo, o irmão quis subir e
encontrar o grupo, obrigando Nestor a ir
junto. Ficaram apenas a menina e o tio,
aguardando a volta deles. Eles abriram a
mochila e retiraram de sanduíches de pernil e sucos, além de frutas. Picnic nas
alturas, tendo o mar e a montanha como testemunhas.
Neste
momento, Janice resolveu voltar antes dos outros e como era bem experiente, o
guia pediu-lhe que o esperasse junto à menina e o tio, para concluírem a trilha
todos juntos.
Janice
desceu rapidamente, mas ao se aproximar do lugar onde os deixaram, notou algo de anormal. Não os viu logo, mas escutou gemidos de dor,
abafados. Com cuidado para não ser vista,
conseguiu chegar mais perto e ficou horrorizada com a cena. Amarrada com cordas, a menina estava sendo
estuprada pelo tio, num desvão da montanha.
Na boca, um lenço quase não a permitia respirar, daí seus gemidos
abafados.
Janice
não pensou muito e foi direto para cima do agressor, gritando bastante e rezando
para o pessoal lá em cima escutar. Dali
começou uma luta bem desigual, pois o homem era corpulento e Janice,
magrinha. Ela estava vendo que ia acabar
rolando pela ribanceira e dali para as escarpas mais embaixo, com grande perigo
de vida. Mas estava tão furiosa com a
covardia do homem, que enfiava os dedos
nos olhos dele e o mordia com força, sem querer largá-lo. Se eu cair, ele cai
junto, pensou. Foi quando ouviu um tiro
ecoar pela montanha e seu agressor tomou, atingido na nuca. Ela caiu junto, respingada de sangue. Ficou
um tempo imóvel, ainda atordoada, e aí lembrou-se da garota amarrada. Foi
rastejando até lá e logo tirou o lenço de sua boca e ela começou a gemer e
chorar e Janice consolou-a como podia. Começou a desamarrá-la com muita dificuldade,
pois era uma corda grossa, com os nós bem apertados. Foi quando notou seus
olhos esgazeados de pavor, fixados em algo que estava atrás de Janice.
Qual
não foi sua surpresa quando ouviu outro estampido e o rosto da menina ficou
tinto de sangue. Jogou-se no chão,
esperando o próximo tiro, mas só conseguiu ver um vulto vestido com uma
jaqueta, descer rapidamente o trecho restante,
segurando uma espingarda. Ela ficou ali no chão, imóvel, paralisada pelo
horror da cena.
E
daí por diante foi um pandemônio. O
pessoal desceu rapidamente ao escutar os tiros e viu aquele espetáculo
inusitado de sangue e violência. O guia rapidamente
usou o rádio para pedir serviço médico e policia, e ouviu as primeiras explicações à Janice. Mesmo muito cumprimentada por seu heroísmo, Janice
teve que dar milhares de explicações do ocorrido. Quem era o homem da jaqueta que levava uma
carabina?
Nenhuma
resposta foi dada naquela ocasião. Investigações sobre os dois mortos não
levaram a nenhum parecer conclusivo. Envolveram os pais da menina e a família,
para maiores informações sobre o tio estuprador. Os participantes do grupo que
subiu a trilha naquele dia e o próprio Centro Excursionista foram
exaustivamente interrogados. Mas ninguém conseguiu achar o assassino, nem a
razão de ele ter acabado também com a vida da menina, afinal, uma vítima
inocente.
E o caso ainda aguarda novas pistas ou
indícios para ser concluído e continua assombrando Janice, que não consegue,
até hoje, digerir aquela cena horrenda.
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