O PRÉDIO DA BARONESA - Oswaldo U. Lopes



O PRÉDIO DA BARONESA
Oswaldo U. Lopes

                   Era uma das casas antigas ainda remanescentes na Avenida Paulista. Já houvera de tudo naquela avenida. Casas derrubadas em uma noite, como aquela de estilo mourisco. A ameaça de tombamento fazia milagres em termos de desconstrução civil.

                   Situação compreensível, marco da cidade inaugurada em 1891 a Paulista era uma espécie de joia da coroa. Nela abastadas famílias enriquecidos pelo comércio de café e pelos primórdios da industrialização no Brasil, construíram casas nos mais diferentes estilos que refletiam momentos diversos e origem diversificada dos imigrantes. Italianos, libaneses, alemães, sírios. Erguiam suas mansões buscando o talento e a criatividade de arquitetos europeus. Embora fosse conhecida como avenida dos barões do café, só uma das casas tinha essa origem, exatamente o solar da Baronesa de Arary.

                   Quem não se lembra de um membro da família Matarazzo, talvez já não tão rico como no passado, que na calada da noite colocou ele mesmo uma bomba, para destruir a famosa casa da família, ameaçada de desapropriação pela esquerdista prefeita Erundina, para que ali fosse alojado, sublime revanche, o museu do operário?

                   Trama bem urdida, do ponto de vista da propriedade e seus ameaçados donos, foi um sucesso. Inteira só sobrou a antiga sauna e a ideia de desapropriação morreu por ali. Por tortas vias prevaleceu o bom senso sobre a raiva intempestiva. A casa talvez merecesse ser preservada, apesar de seu pouco valor histórico e arquitetônico, mas não para abrigar a luta de classes de um marxismo do século XIX.

                   Bem, de volta a casa antiga remanescente, localizada na valorizadíssima esquina da Peixoto Gomide com a Av. Paulista, era propriedade da tia Dalmácia que faleceu com mais de cem anos em 1951 e que a pleno juízo, não só não tremia, como fazia tremer quem ousasse falar em vender ou derrubar a casa, sobretudo se fosse parente. Ali se juntavam famílias e histórias dos baronatos paulistas. Dois irmãos, o Barão de Araras e o Barão de Arary, donos de terras imensas na região de São Carlos, Araras e adjacências. Viúvo o Barão de Arary interessou-se pela bonita jovem de treze anos, Dalmácia, filha de seu irmão, para ser esposa de um filho seu.

                   É como dizem, viúvo ou viúva é o que não morreu. Não estando morto, o Barão achou-a tão interessante que em vez de pedi-la para o filho, tomou-a para si mesmo e casou-se com ela. Formou uma nova família e com ela teve mais cinco filhos que se juntavam aos nove do primeiro casamento.

                   Ocorreu o esperado, ela ficou viúva e proprietária de muita terra e muito dinheiro. Comprou o terreno na Av. Paulista e lá construiu uma casa sofisticada e  portentosa. Dizem que sua festa de cem anos foi um assombro, uma espécie de ultimo baile da Ilha Fiscal paulista. Não faltou ninguém da alta sociedade, embora haja registro da presença da baixa também, por causa de pequenas ocorrências, tais como furtos, mãos bobas etc.

                   Em tudo isso o investigador Sergio Hiroito pensava enquanto se aproximava do edifício que levava o nome da Baronesa de Arary.

                   Não bastava ser japonês, introvertido (se era japonês introvertido é redundância), tinha por passatempo estudar e ler sobre a cidade. Sabia de tudo sobre as regiões mais antigas, aquelas que tinham histórias para contar. A piada na policia civil era saber quando iam mandá-lo para a Liberdade, conhecido reduto nipônico.


                   Pois é, o edifico Baronesa de Arary resultou do desmanche rápido e bem feito da antiga casa. A baronesa se foi aos 101 anos e seus herdeiros foram mais ligeiros que os socialistas de plantão, num fechar de olhos a casa estava no chão, e o terreno pertencia a uma incorporadora que fez um lançamento espetacular que marcou época. O projeto era muito charmoso e tinha de tudo em suas quatro torres, apartamentos maiores, menores e até do tipo janela e quitinete, estes compondo a maioria. A construtora colocou o nome da Baronesa no edifício que se tornou a glória do momento. No andar térreo instalou-se uma filial da Casa Vogue o suprassumo da elegância. Gente conhecida e cultuada figurava entre os proprietários. Walmor Chagas e Cacilda Becker na cobertura e por ai a fora.

                   Como aquilo tudo desmoronara, como o nobre edifício se tornara um terrível treme-treme a manchar o nome respeitoso da baronesa?  

A ação pertinaz e seguida de alguns síndicos conseguira estancar a hemorragia, mas não a fama. Era um edifício quase normal, estava longe dos holofotes e de ter como habitantes gente do tipo dos primeiros proprietários, mas estava desfigurado. Unidades maiores haviam sido reformadas e resultaram em apartamentos que mal acomodavam uma família.

                   Fora ali no 705,  sétimo andar, é claro, que o ocorrido requeria a presença de Hiroito. O pequeno apartamento era alugado por duas secretárias, solteiras, com ares balzaquianos, quer dizer com mais de trinta. Já não tinham grandes ambições e ilusões. Trabalhavam perto e eram absolutamente independentes. Pequenas festas, pé na jaca de sexta-feira, rolavam no 705 sem causar maiores problemas. Evitavam drogas e delas fugiam como o diabo da cruz, embora a cruz gostasse de perseguir o diabo e não raro rolavam comprimidos de ecstasy no 705.

                   Aurora, a  mais velha, saíra para comprar pão na manhã de sábado, deixando Elza, a mais nova, dormindo no único quarto. A noite fora agitada e o sábado era sábado que ninguém é de ferro

                   Quando voltou da padaria, com pão fresco, leite e queijo prato dera aquele grito que ecoou forte pelo velho treme-treme. Encontrara Elza no  banheiro com as mãos amarradas  nas costas, uma fita adesiva larga sobre a boca e um saco plástico enfiado na cabeça. Assassinato com requintes.

         Um caso de encomenda para Sergio Hiroito Aquinagawa, opa esquecemos de esclarecer que o nome de família era Aquinagawa, Hiroito era uma homenagem de seus pais ao glorioso imperador do Japão, e Sergio uma concessão necessária ao mundo ocidental em que viviam.

         Sergio Hiroito era conhecido por evitar, fugir até do que chamava de método alemão: para que fazer fácil se difícil também vai. Não inventava, buscava exatamente o caminho das pedras, explorava comportamentos humanos na sua complexidade ou simplicidade como gostava de demonstrar.


         Havia um claro sentido de mensagem na forma cruel como se concretizara o assassinato. Deixar avisado aos circunstantes que sobre aquela matéria não se brincava. Ninguém ouvira nem um grito sequer um gemido. Era obvio que Elza conhecia o assassino e o deixara aproximar-se sem reação. Houvera certamente intimidação, mas ela não se sentira ameaçada num primeiro momento. Vai ser um bom quebra-cabeça, pensou Hiroito enquanto contemplava o banheiro e depois o quarto.

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