SANGUE
NA IGREJA
Ledice Pereira
Fazia doze anos que eu trabalhava ali, ao lado
de Padre Bernardo. Cheguei à cidade aos dezessete anos. Nem sabia o que faria
naquele lugar tão distante de tudo, aonde cheguei após a morte de minha mãe,
com quem eu vivia em Presidente Prudente. Ela morreu de maus tratos, sem que eu
pudesse fazer algo por ela.
Ele, também recém-chegado, com apenas trinta e
cinco anos, fora designado para substituir o pároco de idade avançada.
Ficara sensibilizado com minha história,
me ofereceu emprego e moradia, depois eu tivera
que fugir de meu padrasto que, com a morte de minha mãe, vivia me assediando.
Aos poucos foi conquistando o povo daquela cidade
carente. Organizava festas para arrecadar fundos que revertessem em prol da
comunidade. Reunia a garotada, a quem pregava ensinamentos da igreja, e os
envolvia em jogos e brincadeiras que os mantinham longe das ruas e das
tentações.
Era um homem inteiramente voltado para a
comunidade.
E, agora, ele estava ali, caído em uma poça de
sangue, no meio da sacristia e justamente eu o havia encontrado.
Meu coração batia descompassadamente e eu nem
sabia o que fazer, por onde começar. Estava paralisada. Nos meus vinte e nove
anos, jamais tinha vivido uma situação
como aquela.
Chegou o sacristão, os devotos, que vinham
para a Missa das oito e, todos pasmos, se perguntavam o que teria acontecido.
Os mais controlados resolveram ligar para o
Departamento de Polícia da região.
Depois de quarenta e cinco minutos, chegaram o
Delegado, dois policiais e os paramédicos que vinham numa ambulância do Samu.
Isolaram a área, impedindo que a população,
que ia chegando, avisada do acontecido, adentrasse à igreja.
Algumas mulheres choravam. Os homens, em
rodas, faziam suposições do que poderia ter havido no interior da sacristia,
que não apresentava sinais de arrombamento.
“O que vai
ser de mim sem a proteção e estímulo de Padre Bernardo.”- pensava eu. “Foi ele quem me fez terminar meus estudos e
me incentivou a prestar concurso público para professora na Escola Municipal. Graças
a ele, consegui alugar uma casinha pequena, perto da escola, e ali me instalar.
Eu e meu cachorro Lord, um vira-latas que me adotou.”
Estava tão absorta com meus pensamentos que
nem percebi a chegada dos peritos acompanhados da investigadora Lenita Fragoso.
Eu já a vira na TV, em entrevista, mas nunca
ao vivo, tão de perto.
Era jovem, teria uns trinta e sete anos
talvez, era alta e tinha um ar determinado. Vestia um conjunto de calça e
blazer azulão, calçava uma sapatilha e tinha os cabelos loiros presos num
coque despojado.
Tinha em mãos uma caderneta onde fazia
anotações.
Mesmo atônita, eu prestava atenção em tudo que
ocorria e observava que a investigadora examinava cada milímetro do local,
questionando o sacristão, os policiais e alguns curiosos.
O corpo de Padre Bernardo foi retirado pelos
paramédicos e levado para o Instituto Médico Legal da cidade mais próxima.
Nesse momento, comecei a chorar copiosamente o
que fez com que as pessoas me vissem e viessem me amparar. Eu não podia me
conformar com a morte de um homem tão bom.
A diretora da escola, que também foi atraída
ao local, me conduziu até minha casa aconselhando-me a tentar descansar.
Somente no final da tarde do outro dia a
autópsia foi concluída. A causa da morte foi insuficiência respiratória e
hemorragia interna, devido a várias facadas que ele levara nas costas e que
atingiram seriamente o pulmão.
Lenita Fragoso me procurou nos dias que se
seguiram. Fez várias perguntas se desculpando por perceber que eu estava muito
abalada.
Contei-lhe como havia chegado ali, fugida de
casa e como fora acolhida pelo Padre. Como tinham sido aqueles doze anos para
mim, para o padre e para a comunidade, principalmente para garotada pobre que
ele orientava, cuidando para que não caíssem no mau caminho das drogas e de
outros vícios. Ele os ensinava música e os iniciava nos esportes, contando para
isso com voluntários, alguns aposentados, velhos treinadores de futebol e
voleibol.
“Ele não
possuía inimigos, ao menos que eu soubesse.”
A partir do que lhe contei, e do que apurou
com o sacristão e com a comunidade, a investigadora arregaçou as mangas e
passou a estudar os fatos que culminaram com o assassinato.
Depois da Missa de sétimo dia, rezada por um
padre da cidade vizinha, as coisas começaram a voltar lentamente ao normal,
embora a falta do padre se fizesse sentir em todos os lugares.
Na escola, percebia-se que os alunos estavam
desatentos e sem vontade de aprender. Alguns cabulavam aula e ficavam em
rodinhas conversando. Disfarçavam quando eu ou outra professora nos
aproximávamos. Parecia que sabiam de alguma coisa que nós desconhecíamos.
Passados seis meses de intensa investigação,
fomos surpreendidos uma tarde pela chegada da Dra. Lenita acompanhada de duas
viaturas.
Vários alunos de dezesseis e dezessete anos,
convocados a depor, confirmaram as suspeitas da investigadora.
Meu padrasto, tendo descoberto meu paradeiro e
inconformado com a proteção que o Padre dedicava a mim e aos garotos menores,
impedindo-os de entrar no mundo do crime, encomendou a um grupo de traficantes,
que agia na redondeza, a morte de Padre Bernardo.
Felizmente e graças à atuação da Dra. Lenita
Fragoso, a Polícia Federal conseguiu
prender o mandante e toda a quadrilha, enviando-os para o presídio de segurança
máxima de Presidente Prudente.
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