ASSASSINATO SEM SENTIDO
Ledice Pereira
Aquela mansão pertencia a uma família quatrocentona e foi
passando de pai para filho através dos séculos.
Ultimamente viviam ali Dona Carmelita que, em breve, iria
completar 80 anos, viúva de seu Genaro,
falecido há décadas, dois filhos, uma irmã de criação, uma nora, três netos,
uma criada e seu marido que fazia as vezes de jardineiro, motorista e faz tudo.
Ela, matriarca, criara sete filhos dentro daquele casarão,
apenas com a ajuda de Filomena, a irmã de criação, que beirava os sessenta e
que vivera ali a vida toda, desde que fora adotada por dona Dorotéia, mãe de
Carmelita, que sempre a tratou como filha legítima, embora não a tivesse
adotado oficialmente.
Tivera três filhos homens e quatro mulheres, a mais nova,
Cleide, completara quarenta anos há dois meses. Perdera uma filha ainda muito
jovem, num acidente de ônibus. Jamais superara aquela perda.
Genaro, primogênito, era um dos filhos que
ali vivia com a família. Tinha sessenta anos, era casado com Clotilde, que não
se dava muito bem com a sogra e vivia pedindo ao marido para se mudarem dali, com quem tivera três filhos homens, Marcus,
Claudio e Rogério, respectivamente com trinta e um, vinte e nove e vinte e sete anos, todos
formados e tentando trabalhar nas suas profissões.
Domingos, advogado, tinha cinquenta e cinco
anos e era divorciado de Thereza há treze, tendo então se mudado para a mansão
por insistência da mãe, que nutria por ele um sentimento especial, o que
provocava certo ciúme nos outros filhos. Com a ex- mulher tinha uma relação
muito conflituosa, o que dificultava sua relação com os filhos, Eduardo de vinte e seis anos e Sonia de vinte e um, que viviam com a mãe na
cidade vizinha onde estudavam e que ficava cerca de quatro horas dali.
Eduardo cursava o
segundo ano de Medicina, e Sonia preparava-se pela terceira vez para prestar o
vestibular de Direito. Tinham uma vida de privações, uma vez que o pai apenas
se responsabilizava pelo pagamento do aluguel da casa onde moravam e das
mensalidades escolares, por entender que eles deveriam arranjar algum tipo de trabalho
para ajudar a mãe nas
despesas da casa, já era apenas vendedora numa loja de departamentos.
Os outros preferiram morar longe dali. Costumavam
visitá-la de quando em quando, cada vez
mais espaçadamente, o que a deixava queixosa.
Rodrigo tornara-se um marceneiro bastante
conceituado ali na região. Tinha um gênio esquisito. Não se dava com os dois
irmãos. Morava numa cidade vizinha, tinha cinquenta anos, não havia se casado e
vivia para o trabalho. Ia raramente visitar a mãe, que sempre reclamava com
Filomena que procurava animá-la:
— Qualquer dia, quando menos esperar ele aparece aqui.
Flora era a filha mais chegada. Tinha quarenta e sete anos,
casara-se com Jorge, um bancário, residia na mesma cidade e tinha duas filhas
gêmeas, Tânia e Vânia, dezesseis anos.
As meninas adoravam a avó e estavam sempre ali. Traziam
amigas, faziam piqueniques, nos arredores da casa e tinham um carinho muito
grande pela avó e por Filomena, fazendo a alegria das duas.
Joana, quarenta e quatro anos optara por ter uma vida
independente. Saíra de casa com vinte anos e ninguém sabia muito como vivia, o
que fazia, com quem se relacionava.
Cleide tinha um bom emprego público na
Capital, onde residia com uma amiga e de onde saía muito raramente para visitar
a mãe.
A casa tinha oito quartos na parte de cima, sendo cinco
suítes e mais dois banheiros e uma sala de TV, onde dona Carmelita costumava
assistir aos seus programas vespertinos e filmes de suspense.
Embaixo, ficavam a biblioteca, outra sala de TV, a sala de
jantar e a de estar, um lavabo e uma enorme cozinha, que juntava modernidade a
um fogão à lenha, que dona Carmelita insistia em manter. Era o cômodo mais
frequentado daquela linda mansão envolta pela Mata Atlântica.
Os jardins a circundavam com todas as espécies de plantas e
árvores o que tornava a casa um pouco sombria e escondida. A varanda dava para
os fundos onde se abria um enorme pomar cheio de árvores frutíferas.
Ao fundo, ficavam os aposentos de Filomena e de Gervásia, a
criada e Valmir, seu marido.
Muitas vezes, dona Carmelita insistira com Filomena para que
viesse ocupar um dos quartos, mas ela se
recusara.
Dona Carmelita costumava dormir muito tarde, com frequentes crises
de insônia era a última a se recolher. Todos conheciam e respeitavam seus
hábitos. Isso incluía acordar mais tarde, pois era quando conseguia
verdadeiramente dormir.
Naquele manhã Filomena a encontrara caída na sala de
leitura, onde gostava de passar horas a ler e reler os livros da enorme
biblioteca formada por seu Genaro. Vestia a mesma roupa do dia anterior o que
significava que não teria ido para o quarto. Estava rígida e fria.
Imediatamente, assim que avisados, todos foram chegando. Perplexos
se juntaram no ambiente. O primeiro a chegar foi o neto Eduardo, apesar de
morar mais longe. Explicou que se encontrava próximo dali. Não soube dizer se a
mãe e a irmã viriam.
Dr. Leôncio, investigador e amigo da família, foi chamado
para desvendar o que ali acontecera, pois não havia sinal algum que
evidenciasse um arrombamento praticado por alguém de fora.
As chaves estavam na parte de dentro da casa e as chaves de
Filomena e Gervásia continuavam com elas, pois costumavam abrir a cozinha logo
cedo para o preparo do café da manhã.
No entanto, o corpo de dona Carmelita caído no chão da biblioteca,
tinha sinais de agressão física. Tudo parecia indicar que havia sido
estrangulada. Um livro aberto jazia no tapete. A xícara do chá costumeiro caíra
sobre a bandeja, deixando escorrer o líquido sobre a pequena vasilha onde
restavam alguns biscoitos. A poltrona, de costas para a janela, havia sido
levemente deslocada, deixando transparecer as marcas no tapete.
Dr. Leôncio, rodeado de seus colaboradores, isolou o recinto
solicitando aos familiares que permanecessem nos demais cômodos, embora alguns
chocados e entre lágrimas não se
conformassem com aquela determinação.
A equipe começou por retirar o corpo e numa maca
transportá-lo para o Instituto Médico Legal, a fim de autopsiar a vítima.
Os objetos encontrados na sala foram separados em envelopes
para serem analisados pelo Departamento de Investigação Criminal da Polícia da
cidade. Vários peritos vasculhavam cada centímetro do recinto, procurando por
indícios que os pudessem levar à elucidação do crime.
Todos os familiares e criados foram inquiridos e tiveram que
prestar depoimento.
Os criados foram os primeiros a serem interrogados e
demonstravam certo medo e constrangimento.
Filomena chorava sem parar, inconsolável que estava.
Genaro e Domingos fumavam um cigarro após o outro, andando de um lado
para o outro da varanda.
Clotilde juntara-se aos filhos que estavam muito chocados.
Tânia e Vânia chegaram com a mãe. Estavam perplexas. Não se
conformavam com o acontecido.
Dona Carmelita era uma pessoa querida por todos os moradores
daquela cidade. Frequentava a igreja semanalmente. Era piedosa e muito
generosa. Não tinha inimigos e nada parecia ter sido roubado das salas anexas
ou da biblioteca.
Ocorre que dona Carmelita era detentora de grande fortuna
que herdara de sua família quatrocentona e que era administrada por Domingos e
Genaro, com a supervisão de César, o advogado da família e sócio de Domingos.
A fortuna era alvo de cobiça de alguns dos integrantes da
família e já havia provocado algumas desavenças entre eles. Achavam que a
herdeira deveria dividir sua fortuna em vida, já que tinha o suficiente para
viver tranquila e confortavelmente até morrer. Mesmo que viesse a viver ainda
muitos anos.
Dr. Leôncio, velho amigo de dona Carmelita tinha ciência
desses perrengues e, portanto, não descartou a possibilidade de haver entre
eles um assassino.
Além de tomar o depoimento de todos que poderiam ter
adentrado ao local do crime, tirou suas impressões digitais.
Clotilde resolveu providenciar lanches para todos,
orientando Filomena e Gervásia que pareciam paralisadas pelos acontecimentos.
Chegaram Joana e Cleide, esta acompanhada da amiga com quem
dividia o apartamento.
O dia custou a passar e todos se acomodaram para passar a
noite da melhor forma possível nos inúmeros ambientes da velha mansão.
Na manhã seguinte, alguns mostravam sinais de cansaço, olhos
inchados, semblante triste ou preocupado.
Flora, que havia preferido ir para casa com as filhas,
voltou logo cedo aparentando muita tristeza e incredulidade. As três irmãs
abraçaram-se chorando muito.
Filomena mais parecia um autônomo, servindo e abraçando a
todos.
O telefone não parava de tocar. Amigos começavam a chegar.
Todos queriam saber o que ocorrera, como teria acontecido, quem estava na casa
na hora. Se ninguém tinha ouvido nada. A comoção e a perplexidade eram gerais.
Apenas às 17:00h, Dr. Leôncio retornou à mansão trazendo o
resultado da autópsia.
Nesse momento, cada um estava entregue ao seu pensamento.
Gervásia e Valmir estavam preocupados porque achavam que,
sendo empregados e não familiares, seriam os mais prováveis suspeitos.
Flora, abraçada às filhas e ao marido, pensava com seus
botões:
“Quem seria o
desgraçado que teve coragem de fazer uma monstruosidade dessas com ela que era
a pessoa melhor do mundo”.
Eduardo falava ao telefone com sua mãe informando-a do
acontecimento. Parecia não estar preocupado com o desenrolar da investigação.
As gêmeas tinham acabado de chegar da escola onde não
puderam faltar devido às provas que
tiveram que fazer.
Domingos sussurrava com Cesar sobre negociações escusas feitas
às escondidas dos irmãos e que envolviam belas quantias de dinheiro. Ele temia
que agora isso fosse descoberto.
Os netos, quase todos, aguardavam de mãos dadas o comunicado
de Dr. Leôncio.
Dr. Leôncio, bastante circunspecto, reuniu todos os
presentes informando que a autópsia concluiu pela ingestão de Polônio, o mais
letal dos venenos.
Houve uma comoção geral.
E antes que alguém pudesse tirar qualquer conclusão os
policiais detiveram Eduardo.
Ele, esquizofrênico, fazia tratamento desde a adolescência,
quando a doença fora detectada. Estudante de Medicina, era o único ali que
tinha acesso ao tal veneno. Além disso, a janela da sala de leitura, periciada,
encontrou uma pequena marca, que analisada
revelou parte de uma digital. A digital coincidia com a do filho de
Domingos.
A revolta pela forma como o pai o tratava e a diferença com
que levava a vida com todo conforto, diferentemente da vida difícil que levava
com a mãe e a irmã, o fizeram arquitetar a morte da avó.
Ele, sem demonstrar qualquer emoção, friamente deixou-se
prender revelando que resolvera cursar Medicina com a intenção de não só
desgostar o pai que o queria a seu lado no escritório de advocacia, como pela
possibilidade de ter acesso a alguma droga que pudesse servir aos seus
propósitos.
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