O crime da casa paroquial
Ises
de Almeida Abrahamsohn
O
detetive Matos ainda enrolado na toalha
de banho correu para atender o telefone.
Era a governanta do padre Georg.
—
Senhorrr Matos, eine desgraça ! Precisa
vir logo. Padre Georg está Tod. Morto, o senhor comprreende, não ?
O investigador conhecia bem o local e as pessoas. O padre tinha chegado da Alemanha para
assumir a igreja alemã no bairro das
Laranjeiras . Viera substituir o padre Inácio, que estava de malas prontas para
assumir uma paróquia em Assunção.
Matos conhecia bem ambos os religiosos e a
maior parte da pequena comunidade porque, dotado de uma bela voz de baixo,
cantava no coral. Após os ensaios
participava com prazer da ceia organizada pelas colegas cantoras e
servida pela governanta, D. Cremilda, a quem sempre elogiava as tortas . Assim conhecera a maioria dos membros do
conselho diretor e administrativo da igreja.
A
residência paroquial era uma casa térrea
atrás da igreja, simples mas confortável.
Foi conduzido ao escritório pela
atarantada Cremilda. Lá encontrou o padre Georg, de pijama e roupão, caído de lado sobre
o tapete ao lado da escrivaninha. Manchas de sangue quase seco no tapete claro
sugeriam que o morto havia sido atingido na cabeça por um ou mais golpes de
algum objeto pesado de bordas cortantes.
Enquanto
aguardava a policia, o investigador registrava
o entorno. Observou que o padre estava à frente de um computador quando foi atacado pelo
assassino. O computador em si desaparecera restando apenas os cabos de conexão. Pela posição, a vítima deve ter se virado e
tentado se levantar após o primeiro
golpe antes de ter recebido o segundo ou
talvez um terceiro golpe e, finalmente,
desabara no chão. Não havia sinais de luta mas os dois armários estavam arrombados e as gavetas e arquivos abertos mostravam pastas e papéis revirados. Não atinou com algum objeto que pudesse
ter sido a arma do crime. Ao final, satisfeito, tirou algumas fotos e só.
Logo
chegou o pessoal da polícia para coleta
de material, impressões e remoção do cadáver para o médico-legal. Ao sair Matos
cruzou com o padre Inácio que voltava de viagem
e que, sabedor do acontecido, tentava acalmar a
governanta.
Na
avaliação do detetive, o crime tinha sido cometido por
alguém conhecido da vítima, talvez do próprio grupo
dirigente da igreja. Mas havia
que se descobrir o motivo para se
chegar ao assassino. O sumiço do computador e o vasculhar aos arquivos poderiam ou
indicar verdadeiramente um roubo,
ou terem sido forjados para ocultar o
verdadeiro móbil do crime. De qualquer modo, só viera por conta da chamada
desesperada da Cremilda e não havia
porque se intrometer.
Pelo
meio da tarde, no escritório, Matos
atendeu o diretor-presidente do
Conselho da Igreja que o contratou formalmente para a investigação. O detetive
sugeriu-lhe convocar as pessoas mais ligadas ao falecido para
algumas entrevistas a serem realizadas lá mesmo na paróquia.
Assim,
dois dias depois, lá estava o investigador
frente a frente com a contadora, Dona Úrsula, que parecia um tanto nervosa ao
responder as perguntas. Era uma bela mulher
de mais de quarenta anos, vestida com elegância
europeia: discreta e cara. Mudava de posição
na cadeira e mexia os pés. Mas o hábil
interrogador sabia que nervosismo
era uma reação comum, mesmo dos
inocentes. A contadora há muitos
anos trabalhava para a igreja e
admitiu que a situação financeira
da paróquia tinha piorado
mas era ainda recuperável se aumentassem o valor das
contribuições. Agora que o Pe. Inácio
estava de saída, ela já tinha se reunido duas vezes com o finado para inteirá-lo
da situação e passar-lhe alguns arquivos relevantes.
A
pessoa seguinte a ser interrogada foi D.
Lilly, secretária geral. Não escondeu as próprias antipatias para com alguns dos
membros do conselho. Era uma pessoa meio brusca,
de poucas e diretas palavras ,
mas, pelo visto e ouvido, muito
competente e honesta. Matos registrou
os comentários sobre gastos
excessivos do Pe. Inácio em viagens para visitar outras comunidades e igrejas
no país. Nas reuniões do conselho, o padre
e a contadora que , segundo a Lilly, se entendiam
mais do que bem, conseguiam afinal justificar as elevadas
despesas.
Matos
cogitou:
—
Maledicência ? Talvez, mas podia ser uma pista. Afinal, O Pe. Inácio era um belo homem de cerca de uns cinquenta
anos. Alto, cabelos escuros, de porte atlético e bronzeado mantidos pelo
ciclismo praticado ao redor da Lagoa. Nascera na Bavária e estava
no Brasil há mais de 8 anos. Falava bem
o português com leve sotaque nordestino e
viera há três anos de outra paróquia que
a ordem mantinha em Pernambuco. Que contraste com o finado! Pe. Georg era atarracado e loiro, daqueles cuja pele avermelhava mesmo sob o chapéu e camadas de protetor
solar. No rosto redondo, de testa alta, os olhos castanhos e perscrutadores
chamavam a atenção. Expressava-se em
uma mistura de espanhol e português e
tinha um jeito meio ingênuo e amável que disfarçava o olhar
inquisidor. Meia hora de conversa com o
homem e ele já saberia boa parte de sua vida.
O
detetive ainda ouviu mais duas ou três
pessoas da administração. Tentou aprofundar as questões sobre a situação do caixa e eventuais gastos feitos pelo Pe.
Inácio, mas nada conseguiu de concreto. O diretor
confirmou as discussões havidas no
conselho entre a D. Lilly , o padre
Inácio e a contadora, mas não lhes atribuiu muita importância. De
qualquer modo , as deliberações
recentes e a chegada do novo
padre deveriam estabilizar as contas e
acalmar os ânimos na
diretoria. Diretor, secretária e contadora,
fizeram juntos um levantamento do que
fora roubado. Além do computador pessoal
do falecido e seu celular, caixa da coleta do fim de semana e também
o computador de propriedade da igreja foram levados. Mas deste a maioria dos arquivos tinha cópias
de segurança conservadas pelo diretor .
Faltava
ainda o Pe. Inácio para ser interrogado. Era o principal suspeito de Matos,
supondo que ele estivesse realmente se apropriando do dinheiro da
comunidade. Mas o homem tinha um sólido álibi pois na noite do crime estava
hospedado em um hotel em Volta Redonda.
Isto o detetive já tinha
verificado. Era necessário tentar
localizar e checar
o que ainda havia de relevante nos dois computadores desaparecidos.
De
volta ao escritório, o detetive recorreu ao velho amigo, o delegado Martins.
Por sorte, o inquérito estava sob a
responsabilidade do delegado. Este lhe adiantou que apenas o computador semi-destruído do Pe. Georg
tinha sido encontrado por um
catador em uma lixeira do bairro.
O catador vinha
frequentemente à casa paroquial em busca de recicláveis e
soubera dos roubos e do
assassinato pela Cremilda, que não lhe
negava um bom prato de comida.
O
pessoal da informática havia sido acionado para
tentar recuperar o conteúdo do disco rígido que, por sorte, sobrevivera à destruição. Havia então que esperar o resultado e marcar
uma conversa com o tal Pe. Inácio.
Cansado, Matos
deu o dia por encerrado e caminhou pelo calçadão até o bar do Gouveia
no Leme. A caminhada e o chope de fim de tarde sempre lhe aguçavam o
cérebro. Decidiu dar mais atenção
à tal D. Úrsula, a contadora. O padreco podia estar viajando, mas o assassino poderia ser cúmplice ou amigo, o que colocava a contadora em
perspectiva. Esta, como a maioria das pessoas
da diretoria tinha acesso às
chaves da casa paroquial. A questão era verificar o quanto os dois eram próximos. Ficaria para
o dia seguinte.
O Gouveia, sempre gozador espicaçou:
—
E aí , já farejou o bastante para poder resolver o caso ? Tome mais um
chope para clarear a mente !
Pela
manhã o detetive se dirigiu à delegacia
. No setor de informática o técnico o esperava:
—
Já recuperei parte dos arquivos do disco. São planilhas
das contas da igreja e após
cada planilha original alguém refez as contas, inseriu a cópia corrigida e iluminou os valores que foram alterados. Provavelmente
a
vítima descobriu a fraude e ia denunciar. Há saídas
regulares de dinheiro, em geral uma
ou duas por mês, contabilizadas
como valores altos. O curioso é
que algumas são para firmas
aqui mesmo do Rio . Já verifiquei
e são de
dois hotéis em Niterói .
O
Matos ficou alvoroçado. Seria a contadora ou o padre que usavam os hotéis
em Niterói? Ou ambos? Já no primeiro, um três estrelas meio
descuidado, o gerente, ao saber
que se tratava de investigação de crime, facilitou:
—
Era um casal, tinham sotaque de
estrangeiros, bem vestidos , ele, cinquentão , alto, cabelos escuros, e ela, bem apanhada, talvez uns quarenta
e cinco. Ficavam o fim de semana e acertamos
a estadia com uma nota falsa para o
valor que estipulavam;
eu recebia na hora uma parte em
dinheiro vivo.
O
caso estava quase resolvido. Faltava apertar a Úrsula e o Pe. Inácio para a confissão final . Ainda
de Niterói o detetive ligou
ao delegado Martins para deflagrar
as prisões preventivas e ao diretor do conselho da Igreja para
relatar a investigação.
Este lhe informou que nenhum tinha aparecido.
O padre havia saído da residência no dia anterior à noite e, segundo a
Clotilde, não mais voltara. A Úrsula não
havia aparecido para trabalhar.
Matos
não se espantou quando três horas depois o delegado ligou:
Os
dois pombinhos alçaram voo ontem à noite para
a Austrália. Teremos que acionar
a Interpol. Reviramos o
apartamento da Úrsula, mas não achamos nem a arma do crime, nem o outro computador. Em compensação achamos uns e-mails bem picantes que ela esqueceu
de deletar !
Nenhum comentário:
Postar um comentário