Pertencia a uma família quatrocentona - Fernando Braga


Pertencia a uma família quatrocentona
Fernando Braga

É preciso, inicialmente, definir o que se considera como uma família quatrocentona. Mesmo com toda a globalização, crescimento das cidades, cosmopolismo, o termo quatrocentão conserva o significado de cidadão pertencente a uma família antiga, tradicional e rica ou poderosa, membros de uma elite econômica. Teoricamente, eram descendentes de portugueses que vieram para o Brasil no século XVI, muitos fugindo da Santa Inquisição, alguns fidalgos. Alguns se casaram com índias, como João Ramalho, que se casou com Bartira, filha do cacique Tibiriçá, e seus descendentes mestiços se entrelaçaram com as famílias luso brasileiras de São Paulo. Têm uma história de quatrocentos anos. O termo se presta também para referir-se a numerosas famílias paulistas, que em 25 de janeiro de 1954, comemoram a data do quarto centenário da cidade de São Paulo, sentindo-se como fundadores e responsáveis pelo desenvolvimento da capital paulista. Muitos eram donos de imensas áreas no estado e literalmente de cidades inteiras. Essas famílias traziam títulos honoríficos da época do império (barões, marqueses, condes, viscondes) e mesmo títulos conferidos pelo Vaticano, por obras de benemerência. Barões do café, grandes proprietários de fazendas, com o apogeu na república velha, até 1930, dominavam o sistema bancário, moravam em mansões com arquitetura tipo parisiense na Avenida Paulista, Angélica e depois no Jardim América, com tradição de enterrar seus mortos em mausoléus familiares no Cemitério da Consolação, com arte sacra. Contudo, muitos deles perderam toda ou parte de suas fortunas em 1929, com o chamado “cracking” do café, mas mantiveram o status. Consideravam-se diferentes dos chamados “nouveau riches”, imigrantes europeus que vieram pobres e tornaram-se também muito ricos.

Bem, agora quero contar a história de José Roberto Q.B, mais conhecido como JR,  assim chamado por seus colegas de uma faculdade médica, na década de 60. Sentia-se especial, pois havia passado brilhantemente no exame vestibular, considerava-se bonito, era rico, nascido no seio de uma família quatrocentona, onde era o primogênito, vestia-se bem e seu carro era o Chevrolet 63, último ano. 

Morava em uma mansão no Jardim América, com chofer particular, mordomo e seus fins de semana passava, frequentemente, em Santos, onde tinha, naquela época um iate. Frequentava as aulas, mas não era de estudar com assiduidade, algumas tardes ia para a Rua Barão de Itapetininga apreciar o “footing” onde encontrava sempre com o  amigo  Mauro Ramos, jogador do São Paulo e da seleção brasileira. 

Na Escola, tinha apenas dois ou três amigos, também abonados, que tinham carro. Não praticava esportes e sempre preferia estar sozinho “a mal acompanhado”. Sentia-se e se comportava como um quatrocentão, um “dandy”. Falava sempre de sua família, de seu relacionamento com pessoas e famílias importantes, e quando podia, não perdia a chance de menosprezar alguns colegas menos favorecidos. 

A maioria dos professores o conhecia como o famoso JRQB, que dizia querer ser um famoso cirurgião plástico. Veio a graduação e quando recebeu o “cartucho” das mãos do diretor da faculdade, os membros de sua família lá estavam, para aplaudirem-no, freneticamente. Afinal, um fato importante, pois era o primeiro da família dos QB a receber o diploma de médico. A comemoração se deu no dia seguinte, em sua mansão. A festa saiu na mídia, que chamou a atenção para a riqueza e detalhes do evento , mas apenas três colegas e dois professores participaram dela.

 Passaram-se alguns anos e sabia-se que ele trabalhava com um famoso cirurgião plástico, professor da faculdade, também quatrocentão. Estava noivo, programando seu casamento com uma linda moça, também de ilustre família, quando a vida lhe preparou uma cilada.

 Um dia acordou e ao se olhar no espelhou observou que suas pálpebras estavam muito inchadas, assim como seu rosto. Ao urinar percebeu que saiu pouca quantidade, o que já havia notado antes. Logo apareceram os outros sintomas. Foi procurar um colega que, facilmente, após exames, diagnosticou uremia e insuficiência renal aguda. Teve que fazer diálise, mas uma insuficiência renal crônica, com falência total dos rins, se instalou.

 Já havia começado a fase dos transplantes, mas o difícil era conseguir o doador, pois a fila era enorme e nem o dinheiro resolvia. Tinha dois irmãos que se prontificaram a doar um de seus rins, com a vantagem de ser um doador da família, com menor possibilidade de rejeição.

 Ocorreu então algo inesperado. Os seus pais agora já idosos, proibiram qualquer irmão doasse o seu rim. JR não entendeu. Perguntava aos pais:

— Por que eles não podem me doar um dos rins? Como irmão, é mais difícil a rejeição, nos afirmou o especialista. Os pais continuaram negando, mas não explicavam nada.

 JR tornou-se muito agressivo, descompensado, agitado como nunca estivera antes.

Um dia, vendo a situação psicológica dele se agravar, uma tia idosa, aproximou-se dele e disse:

— Seus pais têm razão em um ponto importante. Eles nunca tiveram coragem de lhe falar, mas você é filho adotivo, pego para criar com alguns meses de idade. Sua mãe era uma empregada da família, que se tornou mãe solteira e não tinha condições para cria-lo. Ela morreu faz alguns anos. Somente alguns membros de nossa família conhecem este fato, mas tive que lhe contar, porque não sendo da mesma família, o risco de rejeição renal é grande. Ouvindo tudo isto, JR ficou imóvel, mais pálido do que já estava e apenas bradou:

— Mas, por que eles não me contaram a verdade? Porque fui enganado toda a minha vida? Isto não se faz. Me fizeram de idiota e até me diziam que eu era quatrocentão! Na realidade, sou um verdadeiro bosta.

 Sua tia saiu, ele trancou a porta do quarto, não quis falar com mais ninguém. No dia seguinte saiu cedo, comprou um mata rato e ao chegar em casa, tomou-o junto com refrigerante.

 Teve um enterro de quatrocentão, no Cemitério da Consolação, no mausoléu da família QB.

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