A epopeia de Pedro, o baiano. - Fernando Braga


A epopeia de Pedro, o baiano.
Fernando Braga

       Pedro nasceu em Aporá, um vilarejo baiano ligado por uma pequena estrada vicinal de terra, a quatro horas de Salvador,  e três de Feira de Santana. Seu pai, Otacilio Mendonça, havia desparecido quando ele não tinha mais que 8 anos, e já fazia mais de dez anos que não se tinha nenhuma notícia dele, foi então dado por morto.

       Vivia com sua mãe e um irmão menor em uma pequena área rural de 2 hectares a três quilômetros da vila, que seu pai lhes deixara. Tinha uma casa pequena de quatro cômodos, sem luz ou água encanada, tinham alguns porcos, três vaquinhas, um cavalo, um pequeno pasto, plantação de milho e ainda um pomar com cajueiros e mangueiras. Tudo isto, suficiente para viverem uma vida miserável e pobre, quando chovia. Mas na seca até a  Lagoa Aporá junto à cidade chegava a secar,  e vinha o desespero dos habitantes. Foi em uma destas secas, que seu pai desapareceu, deixando sua mãe com os dois filhos pequenos.

      Ele saiu a cavalo dizendo que ia até o vilarejo e após 4 dias ainda não havia voltado. Sua mãe procurou a pequena delegacia da cidade. Otacílio foi procurado e não encontrado nem mesmo o pangaré. As suposições eram de que havia sido morto, o corpo desaparecido, o cavalo roubado ou ainda, uma possibilidade mais remota, de que havia tudo abandonado e fugido, o que não era raro.

       Otacilio havia se casado com a Rita em Lagoinha, uma cidadezinha próxima, com atestado em cartório e pequena cerimônia em igrejinha.

       Pedro agora com 18 anos substituía o pai dedicando-se aos pequenos afazeres rurais, ajudando sua mãe “pau pra toda obra”. Estudou em uma escola rural, onde aprendeu ler, escrever, um pouco de matemática, história e geografia do Brasil. Pouco se lembrava do pai, mas a fisionomia ele conhecia bem, porque não se cansava de ver a fotografia do casamento deles, colocada em uma prateleira. Sua mãe com o tempo aceitou bem a ausência do companheiro, mas quando lembrava, sabia que ele havia ido embora, pois parte de suas roupas haviam sumido desde que se ausentou.
Pensava:

      — Se foi embora é porque não gostava de mim, mas me deixar sozinha em dificuldade, e ainda com dois filhos, é uma covardia.

Ele devia estar com 48 ou 50 anos. Ela estava com 46 e sentia-se cansada, mas não desanimada. O tempo havia sido cruel com ela, pois o trabalho naquele sol castigante, torrificante que destruiu sua pele, agora um tanto enrugada e já parecia de idade.

        Quando Pedro tinha 25 anos, encontrou em Aporá em ex-colega da escola rural, que contou que esteve em  São Paulo com o pai, por coincidência viram alguém muito parecido com Otacilio que passava  apressado em uma rua movimentada do centro. Quiseram segui-lo para conversar, mas naquela multidão perderam-no de vista. Tinham certeza absoluta tratar-se dele, que parecia bem disposto, mas bem gordo. Pedro resolveu falar com o pai de seu colega, que confirmou, jurando com os pés juntos que tinha certeza, de que a pessoa que vira, tratava-se do pai de Pedro.

       Pedro nada contou à sua mãe e irmão, mas começou a colocar na cabeça a ideia de ir em busca de seu pai em São Paulo. Ajuntou um pouco de dinheiro fazendo alguns bicos na vila e um belo dia decidiu tomar um pau de arara a caminho da capital paulista, jurando à sua mãe que voltaria em um mês.

       Chegando em São Paulo pegou uma pensãozinha barata e ia para as ruas do centro, na esperança de ver seu pai cruzando em alguma rua. Logo percebeu que aquilo era impossível. A conselho dos donos da pensão, foi procurar um serviço social, que o ajudasse a localizar Otacilio Mendonça, cor negra. Eram muitos com este nome. Lá comunicaram que um homem negro com este nome,  havia sido localizado em Mirassol, uma pequena cidade do noroeste paulista. Contudo, não conseguiram o endereço de sua residência.

       Tomou um trem e foi em busca de seu objetivo. No dia seguinte, foi até o centro da cidade começou aqui e ali, perguntar se conheciam um tal de seu Otacílio. Em um bar central, recebeu a seguinte resposta:

— Você tá falando do Tacílio, um gordo de cor que é corretor de fazendas?

— É dele mesmo. Como posso encontrá-lo?

 — Olha, ele vem muito aqui, toma café e umas cervejinhas com vários fazendeiros, sentado nas mesinhas da calçada. Ele é o preto mais famoso da cidade, o maior corretor de fazendas da região. Amanhã, sábado, se você estiver por aqui às 11 horas, é certeza que vai encontrá-lo.

 — Ele mora a quatro quarteirões daqui na Rua Princesa Isabel, não sei o número, mas é uma bela casa térrea, com um grande jardim na frente. São 10 minutinhos para ir até lá.

  —  Você o conhece? Ele tem duas filhas bonitas e um filho que se formou dentista, o Bento, nego forte e   rico.

       Saindo, Pedro foi sentar-se em um banco de jardim, debaixo de uma árvore frondosa e começou a meditar:

    — Será que este cara é o meu pai? Falaram que ele é corretor, que é rico! Não pode ser ele. Deve de ser outra pessoa, mas vou dar um pulo até a casa para ter certeza.

       Era um fim de tarde muito quente. Pedro foi caminhando e logo viu a casa que havia sido indicada. Toda  branca, com um jardim enorme e bem cuidado. Parou em frente e de repente o portão da garagem se abriu, saindo um carro bonito, com duas mocinhas dentro, uma delas guiando e com muita pose. Pensou:

Serão filhas do Otacílio? Será que são minhas irmãs? Elas  tem o cabelo liso, será que esticaram o bestunto? Não são pretas, mas mulatas. Acho que vou embora, não deve ser ele.

       Mas, com coragem, tocou a campainha e veio uma empregada atendê-lo na frente.

  —  O que o senhor quer?

 — Eu só queria saber se o seu Otacílio mora aqui e não precisa de alguém para cuidar do jardim. Estou precisando de um emprego.

    — O senhor precisa falar com a mulher dele. Ela deve saber. Espera um pouco aí.

       Logo veio uma senhora branca, bem  apessoada, também um pouco gorda que se aproximou e perguntou:

— Você é jardineiro? O nosso foi embora e realmente precisamos de outro.

— Olha dona, eu sempre mexi com plantas, não sei se sou muito bom, mas posso aprender rápido.

    — Vou falar com meu marido e lhe dou uma resposta amanhã. Ele agora não está, saiu para ver umas fazendas.

       — Qual o seu nome?

       — Meu nome é Pedro Gonçalves, venho do Mato Grosso e preciso muito de trabalhar. Me ajuda!

      — Volte aqui amanhã cedo.

       Novamente cogitou consigo mesmo:

       — Será meu pai? Será que casou com esta branquela? E a minha mãe que está viva? Será que ele podia casar duas vezes? Definitivamente não pode ser ele. Se o visse, será que o reconheceria através do retrato de casamento, que trago comigo? Vamos ver, amanhã vamos tirar as dúvidas!

       Voltou no dia seguinte, tocou a campainha e logo foi atendido pela empregada, que pediu que entrasse para falar diretamente com o seu Tacilio, que estava tomando o café na varanda, ao lado da piscina.

       Pedro entrou, viu o dono da casa, e ao aproximar-se teve  certeza absoluta de que era seu pai.

       — O senhor é o seu Otacílio, que vai me empregar?

      — Quem é você meu rapaz?

       — O senhor é Otacílio Mendonça, de Aporá?

  Quando citou Aporá, Tacilio já tremeu!

 — Sou sim e você?       

 — Eu sou Pedro, seu filho! Vim em sua busca após quase 20 anos! E consegui encontrá-lo. Deus seja bendito!

       Ao ouvi-lo Tacilio quase caiu da cadeira e imediatamente olhou para os  lados, para ver se alguém os ouvia. Levantou-se e pediu que o acompanhasse. Entrou em seu carro e saíram. Tomaram uma pequena estrada vicinal e após uns 5 quilômetros pararam. Otacílio disse:

       — Então você é o Pedrinho? Como estão sua mãe e seu irmão João? Estão ainda em Aporá?

       — Felizmente estão todos vivos e muito bem, apesar do senhor ter nos abandonado em uma situação muito difícil. A mãe teve que trabalhar muito para nos criar. Eles acham que o senhor morreu, mas pelo que vejo está bem vivinho e bem rico, não é? E agora pai? O senhor casou de novo, sei que tem outros três filhos, esta muito bem, um pouco gordo, e nós? Como ficamos?

 — Espera aí filho, vamos conversar com muita calma. Não vá me estragar a vida. Eu sempre quis voltar para vocês, mas as circunstâncias me foram favoráveis, consegui ganhar muito dinheiro como corretor de fazendas, tornando-me o maior conhecedor de terras da região. Sou muito conceituado no meio, na cidade. Casei-me novamente, sabendo que estava errado e na realidade sou um bígamo.

        Fique firme, que agora que sei que vocês estão vivos eu quero ajudá-los e muito! Não me entregue, não estrague a minha vida e a de vocês também. Não diga nada a ninguém, muito menos à minha esposa e filhos.

       — Daqui vamos a Fernandópolis, vou descontar um cheque de um cliente de R$ 50.000,00. Vou te dar este dinheiro, e você vai ao Bradesco para abrir uma conta, com este dinheiro. Você tem documentos?

       — Tenho sim, RG e CPF.

        — O senhor sabe que tanto a mamãe, sua primeira mulher e nois dois seus filhos, temos mais direito do que sua segunda mulher e seus outros filhos. O senhor concorda? Se não concorda vou procurar um advogado e pedir para todos virem para cá reverem o senhor.

       Claro que concordo meu filho. Só não estrague a situação toda. Em uns quatro meses, terei tempo de passar boa parte de meus bens a vocês e uma boa gaita. É só minha mulher não desconfiar e assinar o que lhe pedir.

       Vocês três ficarão muito bem de vida. Podem permanecer tranquilos em Aporá. Não comente também com ninguém na nossa vila e mesmo com sua mãe e irmão. Quando saí de lá, estava já muito mal com sua mãe e com a seca que nos castigou e nada deixou de pé, fiquei completamente doido. Tive muita sorte por aqui, com muito trabalho.

       — Mesmo naquelas circunstâncias, não podia tê-los abandonado. Sou realmente um covarde! Deus me perdoe!
       —  Como você conseguiu me localizar?

       —  Foi o seu Juca de nossa cidade que veio em São Paulo, por enorme coincidência, viu o senhor atravessando uma rua.  Nós não acreditávamos, mas, tempos depois, resolvi vir tirar a dúvida e achei-o. Agora estou contente!

      — Pois bem meu filho, pegue um taxi e vá dormir em Rio Preto no Hotel Camareiro no centro da cidade. Tem aqui mais R$ 5.000,00, suficientes para estas despesas e sua volta para Aporá de avião. Tem também os cheques para gastar os R$50.000,00 depositados em Fernandópolis. Como já disse, dentro de 4 meses volte e me procure aqui. Tá bem?

       — Tá pai! Volto mesmo! Obrigado, apesar de tudo!

       Otacílio deixou-o em um ponto de taxi, deu um adeus com as mãos e voltou para sua casa.

       Pedro desceu no hotel indicado, à tarde deu uma volta para conhecer a capital da araraquarense e voltou para o hotel, no meio da noite.


        No dia seguinte, a camareira ao abrir a porta do quarto, deu um violento grito e saiu correndo escada abaixo. Um hospede estava morto, esfaqueado no pescoço e tórax. Não tinha documentos ou dinheiro. Era Pedrinho!

Por onde andará Joana? - Ledice Pereira


Por onde andará Joana?
Ledice Pereira

Nora acordou sentindo-se deprimida naquele dia chuvoso.  Sentia-se assim sempre que o tempo estava feio.

— Não sei por que fico assim triste quando o dia está escuro. Tenho vontade de permanecer na cama. Por que será que isso acontece comigo?

E ela preparou seu café, tomou, pegou o livro que esquecera na sala no dia anterior e voltou a se deitar.

Teve que acender a luz, pois parecia noite e a chuva agora caía torrencialmente.

Entretanto, não conseguiu se concentrar. Seu pensamento voou longe, para um passado distante.

Naquele dia, também chovia muito. Eu estava na escola e brincávamos na sala de jogos já que não podíamos ir pra fora. Meninos e meninas, todos juntos. Joana estava de blusa azul marinho. Ficou toda manchada.

Eu tinha visto tudo de onde eu estava, mas não tive coragem de contar nada. Fui covarde!

É que os meninos me olhavam como se fossem me fuzilar. Eles não tinham certeza se eu tinha percebido alguma coisa.

Ela era a melhor no jogo de tênis de mesa. Vencia todos nós.

E acho que eles resolveram se vingar.

Bem que eu tinha reparado que eles conversavam num canto.

O campeonato começou e ela estava radiante, ganhando.

De repente, ela estava no chão, desacordada.

Tinha sangue no cabelo loiro e no supercílio, de onde se espalhara pela blusa.

Nos juntamos em volta dela e, quando os professores perguntaram o havia acontecido, ninguém sabia (ou queria dizer).

Eu tinha visto quando Jorge deu uma raquetada na cabeça dela. Uma não, algumas. E os outros ficaram em volta para acobertar.

Ela foi levada para a enfermaria da escola, depois para um Pronto-socorro, Levou cinco pontos nos supercílios. E teve que ficar afastada por uns dias.

Nunca mais quis participar dos jogos.

Os pais tiraram-na da escola.

E logo, consegui que meus pais me tirassem de lá também.

Com certeza isso contribuiu para me tornar medrosa, triste e solitária.”.



— Por onde andará Joana?

A LENDA DA VAMPIRA PERUANA - Carlos Cedano


A LENDA DA VAMPIRA PERUANA
Carlos Cedano

Em 1993 me iniciava como jornalista de um tabloide de Lima “A VOZ DO POVO” e fui designado para cobrir a famosa lenda da “vampira peruana” na cidade de Pisco na costa sul do Peru. Nesse ano se completariam os oitenta anos da maldição de Sarah Roberts uma tecelã de algodão nascida em East Lancashire (Inglaterra).

A lenda que mais se conhece e se transmite oralmente nos diz que em junho de mil novecentos e treze Sarah Roberts foi condenada à morte por oficiais de East Lancashire depois que foi acusada de bruxaria, vampirismo e assassinato. 

Segundo se acredita, ela ainda estava viva quando foi jogada num caixão de chumbo, amaldiçoando aqueles que determinaram seu destino, jurando se vingar em oitenta anos. O medo teria levado as autoridades a proibir seu corpo no cemitério e nenhum lugar queria aceitar o caixão de uma mulher que teria sido uma das três noivas do Conde Drácula!

A primeira coisa que fiz foi saber como ela teria chegado ao nosso país, mais exatamente a Pisco, um pequeno e miserável povoado de pescadores e lugar de embarque do pisco, uma eau-de- vie peruana a base da destilação da uva Quebranta, que era exportada para as outras cidades do país.

Por isso fui falar com o delegado de policia, que tinham me indicado como contato, Roberto Angulo. Ele me recebeu com cordialidade e sentados num bar começamos a conversar sobre a lenda da dita “vampira peruana”. Logo uma inglesa aqui em Pisco? Disse pra ele mostrando minha enorme surpresa e curiosidade!

― Pois é Gustavo porém existe uma explicação que não sabemos, até que ponto é verdadeira!  A lenda conta que por causa das acusações não havia lugar nenhum na terra onde Sarah pudesse descansar já que ninguém queria ter os restos mortais dela. Seu marido J. P. Roberts viajou o mundo tentando encontrar um lugar para enterrar sua amada esposa, ela acabou sendo aceita aqui em Pisco. Que argumentos ele usou? Não os conhecemos!

― Mas então ela já estava morta, né? Comentei pra o delegado.

― Sim, e no dia seis de junho deste ano de 1993 foi o “grande dia” que segundo a lenda aconteceria a ressurreição da vampira. As mulheres grávidas fugiram pra longe com medo de que seus filhos fossem “usados” por Sarah para reencarnar-se neles. O restante da população muniu-se de “kits” completos contra vampiros: alhos, estacas de madeira e cruzes benzidas pelos padres da igreja. A multidão foi pra o cemitério para aguardar a ressurreição, esperaram muito tempo e nada aconteceu!

― Então, esse foi o fim da lenda?

― Acredito que sim, mas não fique muito tranquilo Gustavo por que os medos são permanentes e alguém poderá inventar uma nova explicação para a não ressurreição da vampira, o inconsciente coletivo é muito criativo!

No dia seguinte voltei pra Lima e chegando escrevi uma reportagem de três capítulos curtos sobre a Lenda da Vampira Peruana, para minha surpresa eles causaram enorme alvoroço e excitação nos leitores da capital e em toda a mídia restante.
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No ano de 2007, quatorze anos após minha primeira visita, houve um terremoto de grau superior a sete na escala Richter em toda a região onde se localiza Pisco. Naquele ano eu então trabalhava num jornal de circulação nacional e fui enviado como chefe de uma equipe de três jornalistas para cobrir o evento. A cidade era uma desolação total, a maior parte das casas estava literalmente no chão, mais de quinhentos mortos e milhares de feridos e o número de desabrigados era enorme!

Soube que o delegado Angulo ainda estava na ativa, agora como chefe da delegacia de investigações. Ele me recebeu com muito carinho, estava um pouco envelhecido,  porém muito dinâmico e se dispôs ajudar-me na minha labor jornalística.

Almoçávamos todos os dias no mesmo restaurante e sempre brindando com deliciosos pisco-sours falando inicialmente sobre a tragédia da cidade, mas inevitavelmente em algum momento de nossa conversa voltamos ao passado e indaguei:

         ― Sobre o assunto da vampira não se falou mais, né?

Ele me olhou durante um tempo como meditando o que iria me dizer e por fim:

         ― Vou confiar-lhe um segredo Gustavo que guardo nestes últimos quatorze anos, tenho sua palavra de honra de que você o guardará só pra você?

Sem titubear lhe respondi:

― Com certeza pode confiar em mim, tem minha palavra!

Ok  - disse -  me espere na parte central da Plaza de Armas hoje às vinte horas.

Na hora marcada já caminhávamos até o laboratório forense da Delegacia, o lugar estava vazio, sem nenhuma alma. Subimos até o segundo andar, entramos na sua sala. Logo ele se dirigiu a uma enorme estante de aço num canto do escritório e enquanto o abria me disse:

         ― No dia da fracassada ressurreição e após a dispersão das pessoas achei importante dar uma olhada na lápide de Sarah Roberts, estava quebrada e mais tarde com ajuda de alguns colegas abrimos o túmulo para ver o que continha. Além de alguns ossos percebi que também havia um crânio praticamente intacto. Guardei-o discretamente num saco e o trouxe aqui para o laboratório.

         ― E dai? Perguntei ansioso.

         ― No dia seguinte o entreguei para o legista. Esperei durante algumas semanas pelos resultados. Eles estão aqui neste envelope! -  Disse Roberto e me o entregou.

Li o laudo que dizia em resumo, que as características morfológicas do crânio pertenciam a uma mulher alta, branca e com certeza de origem saxônica. No que acabei de ler o laudo o delegado retirou o pano que cobria um vulto redondo retirado do armário, era um crânio e ao contemplá-lo senti um intenso terror, seus caninos, além de pontiagudos e enormes, tinham o formato típico daqueles de um vampiro! Fiquei paralisado por alguns minutos antes de recuperar-me do medo causado por essa visão inesperada!


No dia seguinte voltei para Lima e pedi licença médica por alguns dias!

Uma mulher tão solitária - Ledice Pereira



Uma mulher tão solitária
Ledice Pereira

Nora era uma mulher solitária. Desde que nasceu morava na casa que herdara de seus avós, há 65 anos.

Nunca havia modificado nada ali. Eram os mesmos móveis, as mesmas plantas, os mesmos enfeites. Um verdadeiro museu.

Uma diarista vinha lhe fazer a faxina maior, uma vez por mês. No mais, ia tapeando como podia e, logicamente, a casa cheirava a mofo e pó.

Era filha única e a família se resumia a uns primos distantes que mal via.
Suas saídas resumiam-se ao mercadinho da cidade, onde tinha uma conta que pagava mensalmente,  e à igreja que frequentava às vezes.
Vestia-se de maneira sóbria e sem modernidades. Tinha parado no tempo.

Uma única amiga a visitava, esporadicamente.

O jardineiro podava as árvores do quintal a cada três ou quatro meses.
Lecionara, por trinta anos, na escola municipal,  onde se aposentou há quinze.

Vivia dessa aposentadoria e de uma herança que deixaram seus antepassados.

Vida triste, cheia de lembranças que ela preferia esquecer.

O domingo amanheceu escuro e triste. Era fim de outono e o inverno se anunciava. Uma chuvinha caia ininterrupta o que contribuía para que Nora não fosse nem ao jardim.

“Ah meu Deus, mais um dia escuro na minha vida. O Senhor sabe como detesto tempo assim. Me dá uma nostalgia, uma vontade de hibernar, de me esconder debaixo das cobertas. O Senhor deveria ter pena de mim. O que ainda estou fazendo aqui? Não tenho ninguém, não sirvo pra nada”.

E Nora desceu para a cozinha, fez seu café e o tomou com o pão amanhecido. Tomou seus remédios para depressão e ligou a TV na sala.

“Domingo não tem nada pra gente assistir. Detesto esses programas de auditório, de música, de culinária”.

A única coisa de que gostava era livros. Fizera uma assinatura e recebia em casa toda sorte de livros e os devorava.

Mas, naquele domingo, nem os livros serviram pra tirá-la daquela depressão.

E, novamente, vieram-lhe as imagens daquele dia em que Joana foi atingida por uma raquete, que resultaram em cinco pontos no supercílio.

“Eu deveria ter sido mais amiga de Joana. Afinal, éramos tão chegadas. Eu fui desleal. Deveria ter acusado Jorge daquele golpe traiçoeiro. Acho que ele estava despeitado porque ela não aceitara seu pedido de namoro. Acontece que ela preferia estar comigo. A gente se entendia tão bem. Gostávamos de passear juntas, de ir à biblioteca e depois parar pra tomar um lanche naquela lanchonete. Ficávamos horas conversando e nem sentíamos o tempo passar.

Como era mesmo o nome daquela lanchonete?

Nem me lembro mais. Faz tanto tempo!

Mamãe não gostava daquela amizade tão chegada. Acho que ela percebia que existia algo de estranho.


Se fosse nos dias de hoje não teríamos problemas, mas naquela época... Gostaria tanto de encontrá-la, saber o que anda fazendo, se casou ou, como eu, ficou solteirona. Gostaria de poder dizer a ela que nunca a esqueci. Que ela continua tomando conta do meu coração.”...


ACREDITE A ILHA DO CARDOSO EXISTE - Oswaldo U. Lopes


ACREDITE A ILHA DO CARDOSO EXISTE
Oswaldo U. Lopes

         La se vai a voadeira e com ela minha esperança de dormir numa boa cama e tomar um banho descente e quente. Para que gastar a mais com a voadeira se era para passar a semana inteira, viéssemos de escuna mesmo. Eu sei que a diferença é ridícula, para quem ganha o que ganhamos, mas vale o principio. Ainda tentei convencê-lo a ficar em Cananeia, numa boa pousada, com direito a banho quente, telefone celular e outras delicias da chamada civilização. Quem disse que homem é uma criança grande sabia das coisas. Os conselhos que recebi dos mochileiros amigos da minha filha se resumiam em: repelente e bronzeador. Por ai dá para imaginar o que nos esperava. Ah! Mesmo sendo as pousadas da ilha, absolutamente primitivas com quartos coletivos e banheiros fora, ele ainda quis o experimento primitivo completo. Reservou um quarto numa casa de pescador. O quarto é razoável de tamanho, mas dá na sala que junta com a cozinha. O banheiro é lá fora. Como de habito, em casa de pescador o cheiro de fritura é forte. To nessa faz tempo, devia ter-me acostumado? Você acostuma com o desconforto e uma higiene precária? A noite vem chegando e com o cansaço da viagem, pelo menos a primeira noite de sono esta garantida.

Manhã seguinte, a mulher do pescador põe o café na mesa. Café preto fraco, mas pelo menos quente, broa de milho e doce de banana e a própria em natura. Ele respira fundo e comente:

- Sinta o ar puro, veja a força da natureza.

 Pergunto se ele não quer aproveitar para ensacar o ar e vender puro como andam fazendo na China. Fica indignado e diz que vai andar nos manguezais, lembro que é bom levar repelente. Fica novamente indignado e diz que não precisa dessas frescuras. Fico por ali e vou andando para a praia,  é bonita e de águas claras. A mulher do pescador é simpática e de boa de conversa. Casada com o Raimundo ajuda na pesca e cuida da casa e dos hospedes quando tem algum.

Almoço peixe frito com farofa de banana e, pasmem, verduras frescas de uma horta comunitária. Já tinham me dito que sendo pescado fresco até bagre fica gostoso. Pura verdade, o peixe tirado da água e fritado na hora é um manjar imperdível. Descanso um pouco e vou ao mar, delicia das delicias. Resolvo ficar com a água salgada no corpo, a felicidade ajuda minha pele a não se queixar.

Já está escuro quando Olavo regressa de sua exploração no mangue. Esta com uma cara pra lá de molambenta. Pernas inchadas e arranhões pelo corpo todo. Se atira na cama sem comer nada e dorme direto.

Acorda em melhor estado físico, mas não mental. Informa que vai de novo para o desconhecido e com ar intrépido sai com o guia local. Repito o dia anterior, aproveitando e desfrutando cada momento desta paz não encomendada. A conversa com Rosa é cada vez mais interessante. Filha de caiçaras o pai queria que ela estudasse e ela completou o fundamental. Gostava de ler e tinha uma noção do mundo e das coisas que nos rodeiam que muito letrado por ai não tem.

Fim de tarde, Olavo esta de volta totalmente estropiado e lascado, o ar de machão da floresta virgem já não é tão visível. Deita-se e me parece febril. Durante a noite tem febre e queixa-se muito de dores nas juntas. De manhã, não consegue se levantar e vejo manchas avermelhadas pelo corpo, as dores articulares são fortes.

Uma coisa que sempre acompanha machão intrépido e a sorte. Descobre-se um médico infectologista que veio passar o dia na ilha. Simpático o doutorzinho, pena que veio de voadeira, com a noiva e para ficar apenas um dia. Examinou o Olavo e fez diagnóstico de chikungunya e me informou que essa palavra é de um dialeto da Tanzânia e quer dizer que não pode dobrar. Esse nome refere-se ao fato de por causa das dores articulares a pessoa não conseguir nem se abaixar. Me diz com razoável confiança que das três a chikungunya não é das piores e que Olavo, não foi afetado tão fortemente assim e que  deve melhorar muito em dois ou três dias.

— Quer saber de uma coisa, se eu fosse a senhora não levava ele para parte alguma. Daqui para São Paulo, vai ter que tomar voadeira e depois estrada dura e cheia de buracos. Vai ser um sofrimento para quem esta com as articulações inflamadas. Fique mais uns dias e quando ele melhorar vocês vão embora. Vamos ficar no tratamento sintomático. Analgésico quase que a vontade,  antipirético e boa sorte.

O doutorzinho além de gato era competente, três dias depois Olavo consegue se levantar e podemos enfim sair do Cardoso.

Até que o balanço final não foi tão ruim. Descansei, comi melhor do que esperava e aprendi muito com a Rosa que se revelou uma companhia inigualável. Ah! Tem um acréscimo, o intrépido caçador de aventuras selvagens sossegou por um bom tempo.


O QUADRO - M. Luiza de C. Malina



O QUADRO
M. Luiza de C. Malina

Elizabeth na fase dos seus 65 bem vividos, esbelta senhora em cujas rugas o sorriso se deitava, dedicava-se duas vezes por semana  às aulas particulares em que ministrava técnicas exóticas de pintura, momento em que o cheiro das tintas abria um espaço para o contido em sua juventude.

Naquele dia, tardei-me na aula. Aplicava pedras na tela. Ela se levantou. Tropeçou em um dos quadros desbotados de flores secas. Blasfemou.  Quis ajudá-la, no entanto ela se ergueu rápida a falar de modo que a estranhei. Tornou-se raivosa, e amarga:  

— Oh! Isto não tem mais importância, ainda bem que se quebrou! Disse com forte desdém.  Lá estava tudo, feio, muito feio, desbotado, queria que tudo tivesse se acabado naquela hora, aquele sangue da flor misturado com a água, hug! Causava-me enjoo. Desculpa, sim... – e continuou:

Era jovem, tinha uma vida boa, até que num dia de muita chuva me abriguei junto à porta de uma casa sob o beiral. De lá eu podia ver claramente o que acontecia dentro da casa. 

Fiquei curiosa, porque alguém puxava os cabelos de uma moça. Via as mãos dele cheias de cabelos enrolados. A moça no chão, chorando. Espichei para ver melhor. Bati a cara no vidro que se quebrou. Eles olharam. Ele era um idoso e velho conhecido na cidade, tido como perigoso.

 “Bem, eu nunca iria me casar com um homem de mais idade mas ele tinha dinheiro, devia ser por isso que ela estava com ele”.

Com a vidraça quebrada afastei.  Não deveria ser vista.  Deixei-os pensar que fui embora. A chuva era muito forte. Estava encharcada e com frio. Fiquei observando aquela briga, vi quando ele rasgou a blusa dela enquanto puxava mais os cabelos exigindo que a moça a fizesse alguma coisa. Coitada, estava com os seios à mostra. Eu me escondia para assistir os acontecimentos por parte. Espreitava pela janela que começava a embaçar.  Os gritos dela vinham pelo buraco da janela, misturados aos plóc plóc das batidas das gotas da forte chuva. Ela aos pés dele implorava que a libertasse, estava com um corte no peito. Pensei em chamar alguém. A rua vazia. Uma densa corredeira se fez aos meus pés. Eu me espremia mais contra a porta que de repente se abriu! Tratei de cobrir minha cabeça com o casaco preto. Fiquei de costas. Nervoso, ele nem deve ter me visto. Parecia afobado,  olhou de um lado para o outro da rua,  e de súbito  lançou-a na sarjeta. Agora podia vê-la com clareza. Estava com os cabelos raspados de um lado só, sangrava, uma orelha que parecia cortada e a faca enfiada na altura do estômago.

Escorreguei sobre minhas pernas. O pavor me dominava naquele instante. Ao entrar, ele me viu. Parou. Olhou-me furioso. Fiquei em estado de choque. Pensei em correr. Ele entrou deixando a porta aberta,  voltou com um quadro nas mãos, e o colocou perto de mim e:

— Hoje não tenho dinheiro para dar, fique com este quadro e  venda-o, é de grande valor.

Petrificada junto ao chão, vi o sangue se misturar à chuva na sarjeta.   Estava morta! A moça parecia morta! A porta outra vez se abriu. Não olhei. Encolhi-me mais. Ele saiu levando uma mala debaixo do guarda-chuva preto. Nunca mais foi visto. A corredeira movia lentamente o corpo da jovem que sangrava a água da chuva. A intensidade da enxurrada aumentou em segundos e levou o corpo adiante, parecendo que ela o queria seguir.

Não sei por quê. Guardei esta porcaria. Nunca contei nada para alguém. Nunca souberam o que aconteceu com a moça, naquela época, era apenas uma moça encontrada morta.

— Ah! Sim! Onde estávamos? Fique com o pouco que restou do quadro.

— Não, não, muito obrigada.

— Eu insisto. É seu!

O quadro já enfiado na sacola foi-me empurrado porta afora. A porta se fechou. Nunca mais retornei às aulas.

Sem alternativa, lá estava eu de posse do famoso quadro. Antes de entrar em casa, acabei de quebrá-lo acidentalmente dentro da própria sacola, alguma coisa fez minha mão sangrar.

— Maldito! – reclamei, ainda vou herdar um tétano.

 Ao verificar, deparei-me com o brilho de muitas, mas muitas pedras incrustadas numa espécie de cimento, que davam suporte às desbotadas flores.

Cintilava na dança do brilho o fascínio dos meus olhos.