TIROS FACADAS E SIMILARES
QUASE DEUSES? NÃO, HUMANOS, MUITO
HUMANOS.
Oswaldo
U. Lopes
As
lembranças me vieram à mente ao ver a foto nos jornais. Dói e arrepia só de
olhar. O pobre toureiro mexicano encarou uma cirurgia complicada de
reconstrução do reto que para seu sucesso requer ainda uma colostomia. É
preciso desviar as fezes das suturas feitas, a boa prática recomenda para tanto
uma colostomia (abertura do cólon – segmento do intestino também chamado de
intestino grosso – a montante). Tenho viva memória das encrencas que resultaram
quando esse procedimento cautelar não é realizado.
As cirurgias que envolvem os intestinos
são comuns no que chamamos de laparotomia exploradora. Láparos em grego
refere-se ao flanco e tomia a corte, laparotomia seria então um corte no
flanco. Todo médico sabe, no entanto que por laparotomia entende-se a abertura
cirúrgica da cavidade abdominal. A tentativa dos puristas de introduzir o termo
celiotomia, onde celio do grego seria abdômen e, portanto corte no abdômen, não
vingou. No mundo médico o termo é laparotomia e estamos conversados.
No Pronto Socorro tiro no abdômen ou
facada penetrante é igual à cirurgia. Há até um instrumento chamado tentacânula
que foi desenhado para cortar o freio da língua, mas que, por ter uma ponta
delicada, é muito usado para ver se uma facada penetrou ou não em direção as
vísceras. Lembro-me de um filme em que o mocinho esta ensinando um garoto como
atirar nos xerifes. Os xerifes são em geral gordos e é mais fácil atingi-los na
barriga do que na cabeça e, ensinava ele, mata do mesmo jeito. No século XIX
era a mais pura verdade.
Tenho boas lembranças de laparotomias,
uma delas inesquecível. Era aniversário do Dr. Cláudio Oscar Bélio, um dos mais
conceituados e competentes cirurgiões assistentes do Pronto-Socorro. Tinha por
ele muito respeito e admiração, tanto que o convidei para ser meu padrinho de
casamento.
Estávamos de plantão no Pronto Socorro
de Cirurgia, na condição de residentes de segundo ano, portanto donos da bola
eu e meu compadre Dr. José Gonzalez, hoje um conhecido e respeitado cirurgião
vascular. Não me lembro porque, mas naquela noite estávamos sem residente de
primeiro ano e o faz tudo na cirurgia era o Doutorando Jacyr Pasternak, hoje um
infectologista de primeira linha.
Como a coisa estava surpreendentemente
calma, resolvemos dar um pulo na casa do Dr. Bélio para comemorar o aniversário
dele. Ele morava perto e não pretendíamos demorar, naquela época não havia
celular, mas o Bélio tinha um telefone fixo.
Comemoramos de fato e acho que eu
comemorei como se não tivesse mais o que fazer, mas ia ter e, tive. Quando nos
aproximamos da porta do PS, Jacyr nos aguardava, do lado de fora, ligeiramente
ansioso, mas não afobado. Dera entrada, um rapaz que tomara, presumimos que por
boa conduta, um tiro no abdômen. Isso era igual à laparotomia sem discussão.
Jacyr já tomara todas as providências. Decidimos que o José ia operar, não me
lembro bem porque, mas é provável que o estado etílico dele fosse bem melhor do
que o meu.
De longa data eu sei que o álcool me dá,
de cara muito sono. Isso em nada comprometeria minha atividade como auxiliar. O
segredo da função do auxiliar é não se mexer e isso é uma coisa que você não
faz quando esta com sono. As pessoas ficariam muito surpresas se soubessem as
variadas posições em que jovens cansados conseguem dormir num Pronto Socorro.
Encostados numa parede, segurando um foco de iluminação, apoiados numa maca
etc.
Quando José precisava que eu me mexesse
ou segurasse os afastadores em outra posição ele simplesmente me cutucava na
barriga com o bisturi e eu mudava de posição A cirurgia era fácil a bala de
pequeno calibre causara dois furos no intestino delgado que não exigiram muito
trabalho. Ai, porém, entrou o diabo que mora nos detalhes. Na hora de sair a
bala resolveu caminhar na direção do sacro que é o osso do fim da coluna óssea
que nos sustenta.
A aorta é a grande artéria que leva o
sangue para todas as partes do corpo. Lá pelas alturas da coluna lombar ela se
divide em cinco ramos que são muito bem individualizados nos animais. Duas
ilíacas externas, direita e esquerda, duas ilíacas internas e uma artéria final
que é a artéria sacra que nos animais leva sangue para o rabo.
Quando a evolução decidiu tirar da
espécie humana o rabo esqueceu de remover a artéria sacra que seria o certo já
que não há mais o apêndice que alguns animais usam para exprimir sentimentos ou
até para se agarrar em arvores como nossos primos os macacos. Ela existe nos
humanos e embora pequena, acreditem sangra um bocado. Foi um duro danado. Ela
corre contra um osso, não da margem para ser pinçada e compete ao auxiliar espremê-la
enquanto o cirurgião tenta dar um jeito. O José conseguiu, apesar do seu sonado
compadre (esqueci que aquilo parecia uma família, sou padrinho de um dos filhos
do José).
Como é que acaba essa história? Final
feliz! Ao terceiro dia o doente estava apto a ter alta e passava muito bem
obrigado.
O outro caso foi mais grave. Um tiro no
abdômen que entrara na altura do fígado e, o doente estava em choque por uma
perda quase incontrolável de sangue. Caso para assistente operar e lá foi o Dr.
William Saad Hossne, também meu padrinho de casamento. Já expliquei que era
tudo uma mistura de padrinhos, compadres e afins. Um filho do José acabou
casando com uma filha do Saad. Bem voltemos ao sangrante. O tiro dilacerara a
veia cava inferior no momento em que ela entra pelo fígado adentro. Eu era o
auxiliar e por uma dessas felicidades, além de sóbrio, consegui com o dedo
bloquear o sangramento lá nas profundezas do abdômen. Com muita habilidade o Saad
conseguiu a duras penas dar os pontos necessários para fechar o ferimento da
veia sem obstruí-la.
Maravilha, mais uma cirurgia fantástica
nas precárias condições do Pronto-Socorro. Ai o auxiliar, eu, o Oswaldo vai
tirar o dedo e descobre horrorizado que uma parte mínima da luva que cobria o
dedo fora suturada junto da veia. Desfazer a sutura? Nem pensar. Cortou-se o
pequeno pedaço da luva preso na sutura eu tirei a mão calcei outra luva e
prosseguimos. O doente teve alta, tranquilo, no sétimo dia. Segui-o durante
anos no ambulatório, nunca manifestou nenhum problema por ter no seu abdômen um
pedacinho da minha luva.
Não dizem que Deus protege as crianças,
os bêbados e os inconsequentes. Vai ver que caibo com folga nas três
categorias.
Bem,
nem tudo são flores num Pronto-Socorro. Houve o caso trágico daquele perigoso
bandido que entrou em confronto com a policia e o policial, bom caráter,
resolveu atirar, para não matar, atingindo a nádega direita do pobre infeliz.
Estraçalhou o ceco, parte inicial do intestino grosso onde está localizado o
famoso apêndice, das também famosas apendicites. Por falar nelas nunca se provou
que caroço de uva pudesse causa-las.
Todos
sabemos que ingerimos muito líquido e mesmo alimentos sob forma pastosa o que
poucos sabem é que no processo de digestão, quando o conteúdo intestinal passa
do íleo (parte final do intestino delgado) para o ceco (parte inicial do
intestino grosso) começa um processo de secagem do volume o que vai dar origem
as fezes mais sólidas.
No
caso do notório meliante foi necessário fazer uma ileostomia (lembremos que
tomia é corte) de modo que o conteúdo intestinal era desviado para a pele antes
de passar pelo cólon. O resultado é uma quantidade grande de líquido saindo
para uma bolsa precária que se coloca na pele onde esta o orifício. Resulta em
irritação grande da derma e numa dificuldade de manter o equilíbrio hídrico do
doente.
O
nosso, sofreu muito e veio a falecer de complicações renais. Posso assegurar
que foi tratado todo o tempo com carinho e cuidado. É algo que me envaidece e a
classe médica m geral, nunca nos arvoramos de juízes, caberá a outros julgá-los
a nos cabe trata-los. Claro havia piadas, opiniões sobre o que estava
acontecendo no nosso país, mas isso nunca e repito, nunca interferiu no
tratamento.
Como
está escrito lá no titulo, humanos somos. Se você entrava no centro cirúrgico
do Pronto-Socorro para dar uma espiada na cirurgia de um notório bandido era
saudado de cara pelo cirurgião:
─ Seja bem vindo, mas não vá dar uma
de distraído e pisar no tubo de oxigênio, para não cair em tentação chega um
pouquinho para lá.
Como
enfatizei não há registro de pisada em oxigênio nem de desvio de conduta no
tratamento desses infelizes que eram e acho que continuam sendo seres humanos
como nós.
O outro caso que acompanhei, mas não
tive participação na cirurgia foi de um rapaz, coitado, que começara a trabalhar numa fábrica de
compressores e o trote com os novatos era enfiar uma mangueira no reto do
infeliz e dar uma descarga de ar comprimido. A brincadeira saiu mal e perfurou
o reto.
O rapaz estava muito envergonhado e mesmo
depois de operado relutava muito em contar como ocorrera o acidente. Graças a
Deus deu tudo certo. Como no caso do toureiro foi necessária uma colostomia o que
atrapalhou a vida dele por dois meses.
Eu confiei que aquela seria a ultima vez
que o maldito trote fora feito. Com a intervenção policial acho que tomaram um
bom susto e jeito. Por que será que nossa espécie gosta de certo grau de
violência e às vezes se deleita e mesmo se diverte com ela? Nesse ponto não me
orgulho nem aprecio fazer parte dela, mas também ainda não descobri como é que
se sai da própria. Não leitor amigo a morte não resolve, você morre, mas ainda
pertence a espécie.
Nenhum comentário:
Postar um comentário