Pequenas lideranças
Ises de Almeida Abrahamsohn
Na sala de aula
daquele colégio de freiras de bairro havia uma hierarquia sutil, não oficial,
mas absolutamente clara para as meninas do terceiro ano. Se confrontadas, as
freiras negariam de maneira veemente essa estratificação social. Mas que havia,
havia...
Existiam as garotas
que se destacavam nas notas. Os resultados dos boletins mensais eram lidos em
voz alta. Primeiro, segundo e terceiros lugares ganhavam parabéns e fitinhas
coloridas a serem usadas na gravata do uniforme. A disputa pelo primeiro lugar
sempre gerava ansiedade. Havia também as que se destacavam nas aulas de
religião e as que eram apreciadas pelas contribuições feitas pelos pais para as
diversas caridades das freiras: missionários no Xingu, orfanato no sul, reforma
da capela, etc. Em geral as meninas riquinhas,
como eram chamadas às escondidas, não primavam pela inteligência ou boas notas,
mas mesmo assim recebiam afagos e fitas ou santinhos como recompensa.
Além de um meio de
campo com notas suficientes, mas não especialmente destacadas, havia algumas
poucas alunas desprezadas ou quase párias. Tinham dificuldade de acompanhar as
lições e vinham possivelmente de famílias menos educadas ou mais pobres. Algumas vezes a limpeza do uniforme deixava a
desejar. A maioria das alunas era de classe média remediada que fazia esforço
para pagar a mensalidade e as outras contas. Todavia a escola aceitava algumas
menos favorecidas. Essas alunas eram
cruelmente admoestadas quando deixavam de trazer a lição ou quando não sabiam a
resposta a alguma pergunta feita na sala de aula. Desnecessário dizer que
também não contribuíam para as caixinhas missionárias.
Entre essas garotas
lembro-me bem de uma. Vamos chamá-la de Cléo. Era gordinha, de óculos, tímida, com
tranças que não combinavam com seu rosto redondo. Era filha do açougueiro do
bairro que a trazia todo dia sentada de lado no cano da sua robusta bicicleta
de entregas. Cléo era de fato ignorada
pelos diversos clãs estabelecidos entre
as meninas do terceiro ano.
Mas no segundo
semestre daquele ano da década de 1950, alguém apareceu no recreio com uma bola
de borracha grossa vermelha e
resistente. Ninguém sabia muito bem como aproveitar a bola numa brincadeira com
muitas crianças. Foi então que Cléo se
revelou.
̶ Vamos brincar
de queimada! Sugeriu, com voz tímida, sem muita esperança de que a ouvissem.
Mas todas as meninas do grupo olharam com interesse para a esquecida Cléo.
Formaram-se as duas turmas com ela capitaneando uma. Foi o maior sucesso. A
garota, antes ignorada, passou a líder de um time do qual todas as colegas
queriam fazer parte. À medida que o tempo passava, quanto mais as
colegas se empolgavam, mais Cléo se destacava e deixou de ser ostracizada. As
notas foram melhorando e em dezembro
para surpresa de todos o seu nome foi chamado pela freira para receber também
um a fitinha; conseguira a terceira melhor nota em matemática, geografia e
história.
No ano seguinte, as
garotas aprenderam a jogar vôlei. Queimada foi esquecida, mas de novo Cléo se
destacou no esporte e manteve boas notas.
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