LEITE NO LEITO
Oswaldo
U. Lopes
A
campainha tocou na casa do artista. A cama quente o segurou até que ouviu, num
grito estridente, seu nome, o que definitivamente o empurrou para fora da cama
e do quarto num átimo.
Abriu a porta e viu na calçada o tipo
que gritava seu nome, segurando uma cesta cheia do que parecia ser vários
litros de leite.
─
Bonnaterra?
─
Si, respondeu.
─
Encomenda para o senhor
─
Cosa é?
─
Uma dúzia de litros de leite.
─
Persona errada. Desde que abandonei os peito da mama, nunca tomei altra cosa
que não fosse água, vinho e suco de uva.
─
É presente! Não precisa nem pagar, basta assinar e já é seu.
─
E o que eu faço com essa porqueria. O gato sumiu faz três meses e ainda não
voltou. Leva pra você.
─
Posso até levar, mas preciso sua assinatura.
─
Gino, agora era uma voz feminina. Em que confusão você se meteu agora. Vai
pintar hoje ou é melhor eu ir embora.
Era Tereza, uma mulher bonita de seus
trinta e poucos anos, esguia, lembrava mais as figuras de Boticcelli do que as
gorduchas de Renoir. Gino adorava pintá-la e com ela de modelo fizera alguns de
seus mais famosos quadros. Ela gostava do jeito que ele a reproduzia e ele
adorava o ar etéreo com que ela impregnava suas obras. Nunca haviam cruzado a
linha. Havia ali uma mistura de que eram partes importantes, Clara, Boticcelli,
respeito, saudade e um pouco de angústia, resultando num amor totalmente
platônico.
─
Entra Tereza. O problema é que esse cara me trouxe um pacote de litros de leite
e insiste em dizer que é um presente para mim. Eu não bebo dessa porcaria desde
que era bambino. E da parte de quem é o presente?
─
Não sei, ganho só para entregar. Tem um cartão aqui dentro, mas para ler o
cartão vai ter que assinar a entrega.
─
Não provoque que eu mando ou eu mesmo enfio tudo isso, você sabe dove!
─Gino
para com isso. Era a voz de Tereza. Eu mesmo assino e assim o rapaz deixa o
pacote, você lê o cartão e eu me preparo para pousar.
Gino (Ângelo) Bonnaterra era um bom
pintor. Moderno, cores claras, desenho sóbrio e forte. Sempre vivera d’arte...
Vissi d’arte. Só que depois da morte de Clara, sua moglie, se tornara um
ermitão solitário e meio rancoroso.
Tereza tentou amenizar e puxar conversa:
─ Noticia dos filhos?
─ No, nessuna.
Silvio, o mais velho, agora trabalhava
no Rio de Janeiro e nem parecia filho de um artista. Era um gênio, porém, nas
finanças. Transformava qualquer coisa em lucro. Arrojado, tinha um enorme
prestigio como comprador de negócios enroscados os quais desenroscava e vendia
com lucros, como diziam, indecentes.
Sua corretora a B & O (Business
& Opportunity) era particularmente sólida e dava-se ao luxo de recusar
investidores. Às vezes, poucas, enviava retratos tirados a beira mar, em que
aparecia com a mulher, bonita, alta, que irradiava uma presença forte e duas
filhas, as netas que Gino pouco via.
A filha, querida filha, se formara
brilhantemente em medicina, pela USP, fizera anos de residência, cardiologista
fora de série, criou com os colegas, uma clínica especializada em Fortaleza.
Também enviava retratos, com os três filhos e o marido colega de trabalho.
Pobre Gino, nem só de whatsapp e fotos
vive o homem, mas de carne, osso, abraço e amasso. Que falta fazia Clara. Sem
ela o meio de campo era um deserto, maledetto o guai! Voltava às temperas e aos
pincéis. Tivera escola, aprendera com mestres, era dos poucos, muito poucos, capazes
de fazer afrescos. De que valia isso tudo na solidão.
Resolveu não pensar mais, acomodou
Tereza, descobriu a tela inacabada e ia começar o trabalho quando se lembrou do
maldito cartão.
Abriu, a letra era feminina ou próxima
disso e leu pausadamente:
“Sei
que você não bebe essa porcaria, mas o gato esta com saudades de você e pronto
para voltar. Como você, também descobri que ninguém é dono de um gato. Porca
miséria.”
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