Estranhas emoções - Maria Verônica Azevedo

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Estranhas emoções
Maria Verônica Azevedo

       
        Finalmente ela estava tranquila para poder amamentar sua filhinha que completara três meses de idade. O pai já tinha saído para trabalhar levando os dois meninos para deixar na escola infantil. Enquanto a menina mamava, seu pensamento voava observando o cabelo ondulado com mechas douradas da pequena. Onde ela teria ido buscar esse colorido tão bonito?

        De repente ouviu a campainha. Quem seria àquela hora? Achou que poderia ignorar. Seria uma judiação interromper a mamada. Se for importante voltam mais tarde, pensou.

        Mas foi inútil. A campainha voltou a tocar em seguida com insistência. Levantou com a criança no colo e chegou perto da janela aberta. Viu um senhor bem apessoado de terno e gravata com um envelope nas mãos. Ela já tinha visto aquela cena e não fazia muito tempo.

        - Eu não credito! Um oficial de justiça de novo! Não é possível.

        Colocou a menina no berço, ajeitou sua roupa e desceu para atender a porta.

        Boa tarde senhor, do que se trata?

        — Boa tarde senhora. É uma intimação para comparecer ao fórum para testemunhar no julgamento de três responsáveis por um assalto.

        Ela ficou bastante perturbada. O homem esperava impaciente.

        — Assine logo senhora. Eu tenho outras entregas para fazer.

        Ela pegou o envelope através da grade e assinou o papel sem nem ao menos abrir o portão.

        Teria que encarar os assaltantes de novo. Será que aquele tormento não iria acabar nunca?

        Lembrou-se de tudo o que tinha acontecido quatro meses antes.

        Tinham finalmente encontrado uma casa para sua pequena família com um filho já esperto com seus dois anos de idade, outro de dez meses e o próximo que chegaria dali a três meses.  A nova casa, embora fosse um sobradinho geminado com um quintal bem pequeno, mas com uma bela cozinha, era a realização de um sonho, para quem vinha de uma moradia de três cômodos num prédio com cozinha comunitária.

        No dia seguinte à entrega das chaves, confiaram os pequenos à vovó e foram tomar posse da casa. Chegaram cedo, deram uma olhada em tudo e planejaram juntos como dividir o espaço na medida de suas necessidades. Com uma pequena lista de compras a fazer, saíram em direção ao carro que haviam estacionado na frente do portão. Ela, com a gravidez já avançada, entrou logo no carro e aguardava... Quando uma caminhonete repentinamente parou atravessada na sua frente. Surgiram três homens empunhando armas reluzentes. Dois entraram no carro e o terceiro rendeu seu marido, no portão da casa, gritando:

        — Entrega a grama ai e não fala nada...

        Ele hesitou, pois estava de bolsos vazios... Virou os bolsos do avesso e ficou parado congelado de medo.

        Os outros dois entraram no veículo, um no banco do motorista e o outro no banco de trás, dizendo:

        — Desce do carro anda, logo.

        Ela, com o cano da arma encostado à sua barriga, branca de pavor, sentindo seu bebê mexer, com dificuldade conseguiu descer.

        O terceiro bandido entrou no carro e saíram cantando pneus.

        Ele e ela ficaram parados na calçada ainda congelados com o susto. Só depois de alguns segundos é que perceberam os vizinhos na calçada do outro lado da rua, observando o espetáculo e sem fazer nada. Aos poucos foram se aproximando penalizados oferecendo ajuda.

        Uma mulher entrou em sua casa dizendo que ia chamar a polícia. Outra mais jovem trouxe dois copos de água. Ao ver a reação de pessoas que nem ao menos conhecia, ela pensou:

        — Que começo esquisito para uma nova vida!

        Ela ainda estava aflita, pois sentia um desconforto na sua barriga.

        Aos poucos outros foram se aproximando. A dona da quitanda vizinha veio dizer:

        — Que absurdo! Eu vi tudo.

        Outros conversavam animadamente sobre o fato, sem perceber a aflição estampada no rosto dos dois.

        De repente, ouviram a sirene e o ronco do motor do carro que subia a rua de apenas dois quarteirões, fazendo um alarde enorme. Era a polícia.

        O carro parou de qualquer jeito no meio da rua e desceram dois policiais armados.

        — O que houve aqui?

        Após ouvirem um breve relato, disseram:

        Os senhores têm que vir à delegacia prestar depoimento e registrar a ocorrência.

        Ela, com um desconforto crescente, sentindo a barriga pesar, falou:

        — Não estou bem. Preciso ir para casa.

        — Não senhora. Sinto muito. A senhora é vítima. Precisa vir também.

        Assim, fizeram o casal entrar no banco de traz e rumaram para a delegacia.

        Logo ao virar a primeira esquina, o policial já se comunicava com o comando pelo rádio e recebeu um aviso de que tinham suspeitos ali por perto. Então começou a busca pelos arredores ignorando o casal assustado no banco de trás.

        Depois de darem várias voltas com a sirene ligada sem encontrar nada, rumaram para a delegacia.

        Sentados na frente do delegado sem dizer nada, o casal esgotado pelo estresse aguardava. Um dos policiais fez um relato resumido, mas o delegado exigiu que as vítimas contassem tudo com detalhes. 

        — Foi muito rápido senhor. Os fatos são esses que o senhor ouviu. Agora precisamos ir para casa descansar. Por favor!

        A voz dela saia com dificuldade e o suor escorria pelo rosto.

        — Não temos como encontrar o seu veículo. Tem que esperar alguém avisar que tem um carro abandonado. Eles são fugitivos da cadeia. Só queriam trocar de carro para facilitar a fuga. Eles vão fazê-lo de novo. Sargento! Leve os dois para onde eles indicarem.

        - Assinem aqui os depoimentos e aguardem em casa.

        Quando chegaram à casa dos pais dele, no camburão da polícia, já passava muito da hora do almoço.

        No final da tarde, tocou o telefone e alguém falou que tinha encontrado um carro abandonado com uma nota fiscal no porta luvas que indicava aquele telefone.

        De posse do endereço fornecido pela voz do outro lado da linha, ele foi com o cunhado buscar o carro levando a chave reserva. 

        O veículo estava abandonado num terreno baldio bem longe do local do assalto. Voltaram para casa com o carro e o deixaram na garagem.

        — Temos que ir à delegacia para avisar que nosso carro foi achado.

        — Eu não volto lá de jeito nenhum.

        Então ele foi à delegacia, de carona com o cunhado.

        Deu o que fazer para acalmar a raiva do delegado. Ele afirmava que não podiam ter tirado o automóvel do lugar onde fora achado. Só a polícia poderia fazê-lo.

        Ele teve que assinar um documento se responsabilizando pelo estado em que o carro foi encontrado. Ou seja, não poderia mais reclamar por danos encontrados no veículo.

        Depois de uma visita ao médico, ela ficou tranquila com a saúde no bebê.        Dali a um mês, eles estavam instalados na nova casa com os dois meninos e a filhinha recém-nascida.

        Um dia ela recebeu das mãos de um oficial de justiça, uma convocação para uma audiência de acareação, pois os três assaltantes tinham sido presos. Eles deram detalhes e inclusive tinham descrito a casa e o endereço. Era preciso comparecer em juízo para confirmar o ocorrido e reconhecer os assaltantes.

        Os dias que antecederam a audiência foram um inferno. Só de pensar em encontrar de novo aqueles homens, ela sentiu o estomago revirar. Foram muitas noites mal dormidas e a aflição diante da perspectiva do interrogatório judicial atrapalhar a rotina de amamentação do bebê.

        Eles nem se lembravam direito do rosto dos assaltantes. Queriam encontrar uma maneira de não encontrá-los mais. Mas não tinha jeito. E ainda havia o medo da represália, pois sabiam que os três não ficariam para sempre presos e ainda por cima sabiam onde eles moravam. Então combinaram que iriam à audiência, mas não os reconheceriam.

        No dia do auto de acareação compareceram à sala do juiz e aguardaram por um longo tempo, sentados diante de uma mesa simples numa sala ampla e abafada. Primeiro chegou o juiz, depois um investigador e em seguida entraram os três detentos cabisbaixos algemados com as mãos na frente ao corpo. Ficaram ali imóveis o tempo todo, com os olhos focados no piso. Dava para notar marcas estranhas nos braços e um deles tinha marcas semelhantes no lado esquerdo do rosto. Ela pensou que eles provavelmente tinham apanhado.

        O investigador iniciou a sessão lendo a confissão que os três teriam assinado. Em seguida descreveu o depoimento do casal. O juiz perguntou a cada um dos dois se reconhecia os presos ali presentes como sendo os assaltantes. Eles então disseram que não podiam reconhecê-los, por não se lembrarem mais dos rostos e que na ocasião não os tinham encarado devido ao nervoso e à forte sensação de medo.

        Na verdade ela os reconheceu na hora em que entraram na sala, mas como tinham combinado, com medo, negou o reconhecimento por prudência.

        E agora, tudo de novo. Era o julgamento... Encarar de novo aqueles homens...

        Os três foram condenados, mas era sabido que não ficariam para sempre presos. A vida continuou, mas a sensação de insegurança do casal perdurou por um longo tempo.

        Depois de três anos naquela casa, mudaram para outro endereço no outro extremo da cidade.

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