DE SALTO ALTO: PRIMEIRA VEZ
Introdução
Outro dia conversando com o Prof. José
Otávio Costa Auler Junior, Diretor da Faculdade de Medicina da USP (Pinheiros)
ele me contou que o famoso Show Medicina acabou, por imposição do Ministério
Público, bem como as festas na Atlética, regadas a muita cerveja e noite afora.
Fiquei meio, senão completamente atordoado, como antigo palhaço senti um leve
estremecimento de saudade.
Para quem não sabe o Prof. José Otávio é
um competente anestesista. Arregalou o olho por quê? Paulista de Jaú, terra do
Prof. Benedito Montenegro, graduou-se em Medicina em Uberaba (Hoje Universidade
Federal do Triângulo Mineiro). Especializou-se em anestesia no Hospital do
Servidor Público do Estado de São Paulo (1973-1974). Agregou-se ao sistema HC
da FMUSP onde galgou todos os degraus, chegando a Professor Titular de
Anestesiologia em 1989. Chefia a anestesia do Incor substituindo o inesquecível
Ruy Rosinha (Ruy Vaz Gomide do Amaral). Já ganhou prêmio da CAPES (2011) por
ser o orientador da Tese do Ano.
É longa a tradição dos brilhantes
anestesistas do Hospital das Clínicas. No meu tempo o time era a glória do
Butantã: só tinha cobra:
Vamos a eles: Gil Soares Bairão (chefe),
Ednardo, Saraiva, Leitão, Eugesse, Altair, Luciano, Conceição, Valdolino (esse
como denota o nome vindo do agreste pernambucano), Leão, Hercília e Carmem.
Lembro-me com muito carinho de todos eles, eu andara fuçando a obra de um
francês Henri Laborit que condenava o emprego de doses maciças de noradrenalina
no tratamento do choque e esse assunto era a coqueluche do momento entre os
anestesistas. Valeu-me um honradíssimo convite para ser anestesista do HC.
Tinha outros sonhos e não fiquei, mas valeu a amizade, o respeito e o muito que
aprendi com eles.
Conceição era um médico educadíssimo,
negro, inteligente e extremamente competente. Quem sabe pela competência ou
pela fineza de trato era o anestesista do famoso Prof. Edmundo Vasconcelos.
Este detestava que o sangue invadisse o campo operatório, por isso queria
sempre, nas suas operações a hipotensão induzida. Procedimento até hoje
discutido, consistia em bloquear os gânglios simpáticos de modo a produzir uma
queda da pressão supostamente tolerável e controlada. Com a pressão arterial
máxima em 80, 90 mmHg, a media circulando pelos 50, 60 mmHg, o sangramento no
campo operatório era bastante reduzido para alegria do cirurgião. Tinha lá o
seu preço, no começo com o uso do hexametônio o bloqueio era de longa duração.
Com o aparecimento do Arfonad
(trimetafano), supostamente de mais curta duração seu uso tornou-se mais comum.
Mais comum era modo de falar, que eu me lembre, só era empregado nas cirurgias
do Prof. Vasconcelos, mesmo assim com seus truques, como aprendi com o Dr.
Conceição. O Arfonad quando usado no tratamento de hipertensos não raro causou
mais danos do que benefícios e foi logo abandonado.
Conceição tinha aprendido ali onde o
livro encontra a vida, que o Arfonad dado a um paciente anestesiado, não era de
tão curta duração assim e se você bobeasse ia ficar mais umas duas horas até o
doente se recuperar completamente, se e quando alguma outra coisa não
acontecesse devido à hipotensão prolongada.
Onde eu entrava nessa história toda?
Como residente eu era o auxiliar do Conceição. Quem já viu ou entrou numa sala
de operação, sabe que colocados os campos operatórios, uma série de panos
esterilizados, o ambiente fica meio dividido. O cirurgião e sua equipe de
auxiliares e, fora deste conjunto, junto à cabeça do doente o anestesista e
seus múltiplos aparelhos e drogas. A piadinha recorrente é que se trata de um
quase dormindo cuidando de um quase acordado.
Cabia a mim controlar a pressão arterial
do doente e transmitir essa informação ao Conceição de modo discreto, para não
dizer de modo absolutamente sigiloso.
─
Conceição, urgia o Prof. Vasconcelos, como está a pressão? O residente era
totalmente ignorado, como um verme, ele nem sequer cogitara de perguntar o meu
nome.
─
Oswaldo (para fazer contraste com a ignorada do professor), veja como está a
pressão. Eu me enfiava embaixo dos panos e transmitia a informação pedida, por
meio de sinais, sem pronunciar uma palavra, 140 x 90.
─
A máxima esta em 90, professor.
─
Acho que está alta, aqui esta sangrando muito. Você deveria dar mais Arfonad.
─
Será feito professor. Oswaldo injete mais dois mls da solução de Arfonad e
unindo o ato ao fato passava-me uma seringa cheia da mais pura solução de soro
fisiológico. Seringa que nunca vira nem viria a ver o famoso Arfonad.
A cirurgia se desenvolvia sem maiores
problemas, o Vasconcelos operava bem e nós rapidamente recuperávamos o doente
pensando nas demais tarefas que nos esperavam, além do almoço, é claro.
Show Medicina
Fiz parte do Show medicina na categoria
Artistas Acadêmicos (palhaços). Talvez pela pouca presença feminina entre os
alunos da Faculdade naquele tempo, minha turma a 44ª na história da Faculdade
tinha 8 mulheres num total de 80 ingressantes, as moças não participavam
diretamente do show. Trabalhavam muito fazendo a costura dos trajes usados em
cenas.
Lia-se no convite ao show: COSTUMES
desenhados e executados pelo “atelier” de: Angelita Habr Gama (mais tarde
expoente internacional na cirurgia gastroenterológica), Lor Cury (foi
Secretária Geral da USP, com um desempenho extraordinário), Claudete Hajaj
Gonzalez (expoente da genética clínica), apenas citando algumas. Havia
Iluminadores, gente não menos famosa: Joaquim José Gama Rodrigues e Nélio
Garcia de Barros.
Havia ainda músicos, contrarregras,
sonoplastas, desenhistas (entre estes meu particular amigo e pai do transplante
cardíaco: Euclydes Fontegno Marques).
Faço esta relação para mostrar a
importância que o show medicina tinha na vida da Faculdade e o quão esperado
ele era.
O show era constituído basicamente de
esquetes, tendo um quadro de abertura considerado fundamental para o que vinha
depois, e um quadro final em que os participantes, doutorandos recebiam as
homenagens de todos, uma flâmula (ainda tenho a minha) e cantavam um hino que até hoje sei de cor:
Esperamos tê-los feito esquecer,
Por momentos, as agruras
Desta vida que todos nós levamos,
E do estudo que nos dá tanta amargura.
Reunidos aqui estamos
Para nossa despedida,
E aqueles com quem nos brincamos,
Nos desculpem, são coisas da vida.
Outro show igual a este,
Não procurem que não tem
Mas, se outro tão bom
Vocês quiserem ver,
É só voltar no ano que vem.
O pedido de desculpas era sério porque
era como que obrigatório um ou mais esquetes, caindo em cima dos professores ou
de um professor em particular.
Havia alguns que eram “carta marcada” no
show, o Vasconcelos entrava ano saia ano era “homenageado”. Havia todo um folclore em torno dessa figura,
na sala de aula da clínica dele, um móvel que se dizia, vindo de uma igreja
barroca mineira, como que dividia o espaço em altar, onde ele pontificava, e a
nave onde ficava, o populacho, que éramos nós, os alunos. A uma canto um busto
dele e em volta os seus assistentes todos com fama de puxa-sacos empedernidos. Fazia
exceção o Silvio de Barros que até rosnava para ele. Silvio tinha prestigio
político (parente do Governador Ademar de Barros) e foi inclusive Superintendente
do Hospital das Clinicas, cargo que exerceu com notável competência.
O busto era famoso e foi alvo de muitos roubos.
Se algum dos assistentes se apoiava no busto lá vinha o tradicional:
─ Desencosta
de mim.
Entre outros havia um bajulador que já
atingira o grau de emérito. Vamos chama-lo de Salim. Pois é, alguém contou para
o Salim que ele ia aparecer no show e ele resolveu ir com a esposa. Nós que não
prestávamos, fazia tempo, fornecemos lugares numerados para ele e dispusemos a
volta vários capangas para registrar o desenvolver da trama. Pena não houvesse
celulares naquela época.
E ai começou a judiação. O palhaço que
fazia o Vasconcelos (no caso o Maksoud que mais tarde se tornaria Titular de
Cirurgia Infantil e óbvio alvo do show) apalpava os bolsos procurando por um
cigarro e vociferava:
─
Salim, você fuma?
─
Fumo, professor, mas se o senhor quiser eu largo!
Dai a pouco o Vasconcelos (do show)
estava escrevendo num prontuário e gritava:
─
Salim, acabou a tinta.
Salim se aproximava solicito esticando o
braço e fazendo uma espécie de garrote como quem fosse doar sangue. A plateia
se esborrachava de rir e a esposa do Salim murmurava:
─
Isso é assim mesmo? - Fato devidamente anotado pelos capangas que o rodeavam.
Bem como acabou o show? As moças que
agora já eram mais da metade das turmas, reivindicavam participação efetiva,
não mais como costureiras, mas como artistas (você não achou que eu ia escrever
palhaças, achou?). Razão elas tinham, na Escola rival a Paulista de Medicina as
moças já eram rainhas do palco fazia tempo.
O tempo fechou, machista tem em toda
parte, no show então nem se fala! Ainda cruzou com trote violento dado nos
palhaços novos. O Ministério Público apareceu e fez um Termo de Ajustamento de
Conduta que previa entre outras coisas a participação das moças no palco e não
atrás dele. O resultado final: acabou o show. No pacote fora-se embora também
as festas na Atlética regadas a muita cerveja, barulho, confusão e altas horas
da noite. O diretor da Faculdade passou a ter um sono mais tranquilo.
Tenho a impressão de que no mundo
moderno ou será pós-moderno, certas tradições se tornam anacrônicas e não
conseguem subsistir. Uma pena, os velhinhos ficam tristes, parados na saudade.
Um momento, por favor, a crônica
chama-se Salto Alto e ele não apareceu. Explico: se as moças não podiam ser artistas
o show se desenvolvia segundo a melhor tradição shakespeariana, os rapazes
faziam os papeis femininos.
Vai dai coube-me fazer o papel de uma
italiana, a genética ajudava, ascendência calabresa da mais legitima. A roupa tinha sido providenciada pelo atelier
das moças e a maquilagem era muito boa, o show tinha um maquilador próprio.
Faltava o calçado, ai apareceu um sapato que entrava no meu pé e foi usado com
meia soquete, lançando moda precocemente.
Creio que o salto era de altura 6 cm
suficiente, para quem nunca usara nada parecido, sentir-se no alto da Torre
Eiffel, pronto a desabar. Nem consigo imaginar os saltos de hoje em dia
beirando os 15 cm, teria tido vertigens fatais.
Consegui caminhar até o centro do palco
onde a cena se desenvolveria. Quando parei os dois pés dobraram para dentro,
num movimento totalmente involuntário. O riso estourou na plateia ante o
inusitado. Como sabem o artista não só tem que ir onde o povo está como
preconizava Milton Nascimento, mas tem de ter uma sintonia fina com a plateia.
Se tinham rido tão fortemente da primeira vez, o negócio era repetir a façanha,
agora voluntariamente.
Foi um sucesso, riam de se esborrachar e
fui muito cumprimentado nos dias que se seguiram ao show. Esta é a primeira vez
que conto que a juntada inicial dos de pés foi involuntária. Morre o artista
fica a fama
Bem o que pensara de tudo isso meu
grande amigo Dr. José Otávio. Vai ser difícil saber, nascido em Jaú, caipira de
coração, mineiro de jeito tem o dom de conduzir as maiores encrencas com
suavidade e retidão. Se foi palhaço o circo era em outro lugar, Uberaba. Entre
o dilema de ver acabar um espetáculo que sempre deu muita dor de cabeça ao
Diretor e cotejar com o destino glorioso de muitos palhaços que pensará? Dou
graças a Deus pelo inglório fim ou lamento com os diabos a perda dessa fonte de
ilustres profissionais.
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