Nasci, vive e aqui morrerei!
Angela Barros
Ao
despertar naquela manhã
Santiago sentiu as ondas do mar chicotear ferozmente os rochedos. O uivo do
vento prenunciava um daqueles dias em que o frio gela até a alma. Agitada
abanando o rabo, fazendo coro com o vento, a cadela Tetê avisa o dono que é
hora de sair da cama.
É
no local conhecido como o fim
do mundo, derradeiro pedaço de terra habitado antes da Antártica, o Cabo Horn
que divide os oceanos Atlântico e Pacífico, que os dois vivem isolados tomando
conta do pequeno farol local, cujo único meio de comunicação com o continente é
por ondas de rádio.
Santiago
homem dos seus sessenta anos, cheira a fumo, tem os olhos embranquecidos pela
catarata, cabelos e barba prateados, estatura mediana, atarracado mais forte.
Herdou o posto de faroleiro do seu pai. Quando perguntam a quantos anos ele
trabalha no farol ele responde que não lembra, trabalha ali desde que se conhece por gente ligando o farol
ao anoitecer e desligando ao amanhecer.
O
faroleiro está muito doente e já
foi comunicado que sua permanência no local chegou ao fim. Com o termino do
verão, deverá embarcar no último navio que aportar na ilha. Depois disso, os
ventos alcançarão cento e vinte quilômetros por hora, tornando impossível o
aceso.
Golpes
fortes na porta fazem Santiago pular da cama. Calma, já vou abrir! Dá de cara com um jovem com o rosto roxo, tilintando
de frio. — — Entre, entre, vou lhe servir um café bem quente. Quieta Tetê,
deixa o moço em paz.
—
Obrigado
senhor!
—
Por
Deus, o que você está fazendo aqui?
—
Vim
com o navio, sou jornalista de uma revista de São Paulo, escrevo sobre
aventuras. Vamos voltar juntos para Ushuaia e quero muito entrevistar o senhor
antes de voltar para o continente. Meu nome é Thiago, soube que será o último
faroleiro a ficar no local antes de instalarem os novos equipamentos para
monitoramento tecnológico no farol.
—
Eu
não quero saber de entrevista, tome seu café e me deixe em paz.
O
jornalista volta para o navio, sabe que tem pouco tempo antes dele zarpar de
volta para a Argentina. Todos os dias fica perambulando em volta do farol
vigiado de longe pelo faroleiro. Até que numa manhã quando faz suas andanças escuta o gemido da cadela ao
lado do dono caído no chão com a cabeça ensanguentada. Corre para socorrer o
homem que sob protesto de que não é nada de grave, aceita a ajuda.
Thiago
carrega o faroleiro até
seu pequeno quarto no primeiro piso do farol, cuida do ferimento, um corte
provocado pela queda. Olha em volta, o local é decorado franciscanamente apenas
uma cama, mesa com uma cadeira, uma poltrona de pele de lhama e uma lareira
salamandra de ferro fundido alimentada a carvão.
Depois
de reclamar bastante, o velho pergunta o que o jovem quer saber.
—
Quero conhecer um
pouco da sua vida aqui isolado do mundo durante tanto tempo, seu dia a dia, o
porque de nunca ter saído
daqui.
—
Seu jornalista, não conheço outro tipo de vida. Minha infância foi
passada aqui brincando em volta desse velho farol. No verão olhando pinguins,
leões marinhos, baleias, focas e aves. Perdi minha mãe ainda criança, meu pai
me ensinou tudo que sei. Quando ele morreu assumi seu posto.
—
Como é o clima na ilha?
—
No
verão é frio e venta mas pode-se ver o azul imenso do mar casando-se com o do
azul celeste do céu. No inverno acontece a união dos flocos de algodão que vem
do alto com as ondas avassaladoras que se desmancham esbranquiçados batendo nas
pedras. Em seguida vem os ventos, a neve, os glaciares. As aves e os animais
marinhos migram para lugares cálidos. Eu e minha cadela já estamos acostumados,
faça sol, chuva ou neve esse é nosso lar.
—
Conte sobre as
tempestades que costumam assombrar essa região.
—
Moço,
não foram poucas as vezes que ondas gigantes abraçaram esse farol a ponto de
ser engolido. Aqui os ventos sopram furiosos o que provoca a diminuição da
profundidade do mar para depois formar ondas de oito metros de altura. Mas, já
vi ondas de trinta metros! Muitas vezes precisei amarrar meu corpo com uma
corda, aquela ali, para trocar as lâmpadas do farol, já cheguei a ficar
pendurado algumas vezes, mas como pode ver sobrevivi.
—
E quanto a solidão? Nunca quis casar, ter filhos?
—
Quem
moraria comigo nesse fim de mundo? Minha mãe não aguentou, foi definhando aos
poucos até adoecer e morrer. Estou bem aqui com minha companheira Tetê que
perdeu também seus pais e irmãos. Nós dois ficamos rabugentos e sozinhos. Não
sei quem vai primeiro dessa para a melhor, eu ou ela.
—
Posso
tirar uma foto de vocês?
—
Melhor
não moço.
E
assim Thiago conseguiu fazer sua entrevista. Como faltava ainda dois dias para
o navio içar a âncora
continuou visitando o velho que passou a gostar da sua companhia.
No
dia da partida o jornalista vai até o faroleiro perguntar se precisa de ajuda com sua bagagem. Chegando lá
bate na porta, nada. Espera um pouco, silêncio, nem mesmo o latido da cadela se
escuta. Estranho, pensa. Uma lufada de vento abre a porta, ele entra no pequeno
lar do faroleiro, ninguém. Sai, olha em volta.
—
Santiago!
Santiago! - grita.
Resolve
voltar para o navio quem sabe eles se desencontraram e o velho já está lá? Anda pelo convés da embarcação, vai até a
cabine de comando, a casa de máquinas, o restaurante. Não, ninguém viu o
faroleiro.
Nisso escuta o
disparo do apito indicando a todos que o navio vai iniciar as manobras de
desatracação dentro de instantes
O
jornalista pede para esperarem mais um pouco, pergunta se pode voltar para
tentar encontrar o velho. Quem sabe sofreu algum acidente outra vez.
—
Impossível, responde o comandante, devemos partir agora,
aproxima-se uma tempestade, a névoa está baixando cada vez mais o que tornará
nossa saída cada vez mais difícil.
Thiago se lembra da
última conversa com Santiago:”Eles acham
mesmo que eu vou embora? Essa ilha é o meu lar, não conheço nada no continente,
não tem ninguém me esperando, estou velho para começar uma vida nova. Do que
adiante uma casa montada para viver o resto dos meus dias? Quem vai tomar conta
de mim na velhice? Não, eu não saio daqui! Só morto!” .E o jovem jornalista
teme pelo pior.
Devagar
o navio inicia sua jornada. Thiago no convés aproveita o ambiente fantasmagórico do oceano
naquele instante para fazer as últimas imagens do local, quando de repente o obturador da sua máquina
fotográfica detecta algo inesperado. Santiago e sua cadela estão no alto de um
penhasco acenando para o navio.
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