Procissão ou leilão? - Angela Barros

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Procissão ou leilão?
Angela Barros    

        Coronel Severino da Paixão acorda com o capeta, tava todo aperreado naquela manhã,  deixando a mulher ensandecida, dando ordens para todos os empregados da fazenda. Julieta passou as roupas que chegaram? Meu terno foi engomado? E o vestido da patroa tá pronto? E a roupa dos meninos? Oh, Padinho bem que o senhor podia ter mandado uma chuvarada ontem a noite. Tinha que está essa quentura da égua hoje?

        Bom, vamos ver se esqueci algo: alpargatas e chapéu de couro, camisa e terno de linho que mais branco só a lua cheia. Tudo de primeira comprado na capital. Esse ano aquele coronel Bastinho vai ver quem dá  o lance mais alto nesse leilão!

        Conceição minha filha vê lá se não esquece de colocar a meia de seda, o colar e os brincos de pérola  Ah, o chapéu também, temos que estar nos trinques no leilão. Já falei com o padre Tonho, ele vai ver o que é arrecadar dinheiro grosso!

        Acho melhor explicar para vocês esse tal de leilão, oh raios leilão não, procissão. Ela acontece aqui na cidade todo dia dez de julho, em homenagem a Nossa Senhora das Luzes, aquela que conduz a luz. Ela é o candelabro, Jesus é a luz. Ideia de um padre que apareceu por essas bandas com grande influência social, religiosa e política. Era coronel também. Padre coronel? Já viste?

        Como vocês sabem, padre e necessidade estão sempre de mãos dadas. Sabe como é, igreja com pintura descascando, cálice pedindo outro,  com toda essa gente para a procissão, já pensaram quantas hóstias vamos precisar? E a capa pluvial do padre, meu Deus, precisa de uma reforma urgente! Afinal, o padre Tonho não pode conduzir a santa na procissão em mulambos. Para tudo isso, a santa amada igreja precisa de dinheiro.

        Mas, não precisa se preocupar, o padre Tonho tem a solução, fazer um leilão na procissão da santa das velas, uma procissão/leilão. Fica estipulado assim: vamos leiloar os quarteirões da praça que leva até a igreja. Assim, quem quiser carregar o Andor com a santa, paga pelo trecho, dando um lance, como são quatro quarteirões, quem der os melhores lances, ganha, disse ele! Esse padre é político mesmo! A procissão deve sair da praça da estátua do Padim Ciço, parar em cada uma das quatro esquinas e percorrer um quarteirão, local onde as famílias darão os seus lances.

        Não se falava em outra coisa na cidade. Qual dos coronéis dará o lance mais alto? As apostas estavam correndo soltas no bar do Raimundo, até aquele momento davam como certa a vitória do coronel Honório.

        O grande dia chegou. E lá vai a família do coronel Severino para o leilão, quer dizer, procissão. Severino avista de longe, o Coronel Bastinho e a patroa numa elegância só. Logo adiante estão o Coronel Honório e Dona Marieta com um vestido de cambraia azul celeste, todo drapeado, sapatos e bolsa no mesmo tecido e um coque alto na cabeça sustentado a base de muita cerveja e bobes para não se desmanchar naquela quentura.

        Já o coronel Tenório, esse não tem jeito, com todo o dinheiro que tem não tira as botas, o chapéu e o colete de couro. Oh, cabra desajeitado! Já o vestido da sua digníssima esposa é de organdi rosa choque com sapatos, bolsa e um grande laço nos cabelos platinados, tudo combinando. Batom vermelho sangue nos lábios. Verdadeira Marilyn Monroe do sertão nordestino.

        O Coronel Chico como sempre fica na moita, só na hora saberemos.

        A multidão é grande em volta da praça. Chega o padre. Dá-se inicio a procissão. Nesse momento o sol inclemente lança seus raios luminosos nos rostos dos devotos que compenetrados rezam com suas velas  nas mãos para a Santa das Luzes.

        A cada esquina os lances são dados e nada do coronel Severino. Estão todos curiosos já que era sabido na cidade que esse ano de 1950 ele queria a todo custo dar o lance mais alto. Dessa vez, vou mostrar para a cidade, dei um jeito de ficar na última esquina, com isso saberei os lances de todos e o meu será o maior de todos os tempos. Mulher, quero que antes do meu lance nosso filho João toque triângulo e o Pedro sanfona, quero estardalhaço na hora, que todos me vejam.

        E a procissão se aproxima da última esquina. Os filhos começam a tocar. Onde diacho foi parar minha mulher?

        Severino não sabia, mas sua digníssima esposa durante as duas semanas anteriores a procisleilão esteve ocupadíssima organizando uma surpresa para quando o marido fosse dar o lance dele.

        Tinha providenciado tudo sem ele saber. Foi até a capital comprar tecidos, rendas, chapéus, fogos de artifícios, candelabros, velas e não sei mais o quê. Era só o marido sair de casa que a movimentação no quartinho da costureira começava. O barulho da velha máquina de costura Singer não parava, a bordadeira com seu picinez pendurado no nariz trabalhava até altas horas trancada no quarto, coitada, já estava pescando peixe de tanto sono.

        Na noite da véspera da procisleilão Conceição estava com tudo pronto. Chamava cada um por um dos participantes para entregar a fantasia com a recomendação para ter muito cuidado com a roupa, nada poderia sair errado. Chama os filhos. Meninos, como combinamos toquem o mais alto que puderem e nada de contar para o painho o que vamos fazer!

        Quando os devotos estão a poucos passos da esquina começa o rugido dos instrumentos e ao mesmo instante ouve-se o estrondo de um trovão  alumiando o escuro seguido de estrelas cadentes caindo do céu. Milagre! Milagre! Grita o povaréu. Não, não é um milagre, é uma tempestade de fogos de artifícios como nunca tinha se visto antes por aquelas bandas.

        De supetão, como num passe de mágica, deslizando como num carro alegórico aparece a Nossa Senhora das Luzes rodeada por seis padres Cíceros. Cabisbaixa, olhos semi serrados, a santa traja um longo vestido vermelho, tem as iniciais do marido  bordadas com miçangas da mesma cor. Sobre o vestido, um manto de tafetá de seda azul com rendas douradas. Ostenta uma coroa prateada na cabeça e carrega nas mãos uma vela acesa de meio metro.

        Minha Nossa Senhoras das Luzes! grita o coronel Severino Paixão. Padre Tonho pode somar tudo que já foi dado até aqui no leilão e multiplique por dois, cabra da peste, hoje é seu dia de sorte!


        Já que procissão pode ser leilão. Hoje é o dia da Conceição!

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