FAÍSCA - MÁRIO AUGUSTO MACHADO PINTO.


                                                              


FAÍSCA

MÁRIO AUGUSTO MACHADO PINTO.


Dia de tensão, ansiedade, desconforto físico. Sinto a cabeça virar de lado. Boca aberta, falo comigo mesmo. Escuto ronco, longo, distante. As pálpebras pesam toneladas, os lábios tremelicam.

Como é que cheguei até aqui? Sinto mal-estar moral e me pergunto: como entrei nesta roda em perene movimento onde um é jogado de lado, inútil descartável lançado ao lixo como recompensa e consolo por serviços prestados? O prêmio é este amplo quarto com disponibilidades para a picada da agulha anônima destinada a acalmar a mente que ainda domina o corpo que vai ser invadido? A todo instante dizem fique calmo, respire fundo, feche os olhos, conte as batidas do coração... É fácil? Difícil é responder. Ele se contorce para ouvir o que considera falatórios a esmo “não consigo entender picas, saco! Não entendo picas, saco!

- Podemos ir? Perguntam.

-Claro, quero responder, mas o som é engrolado, é quase um rugido. Desisto.

E lá vamos nós. O clac clac das rodas da maca me trazem lembranças, figuras, cenas com elas. É verdadeiro “streaming”...

A tropelia avisava: são muitos pés. Jagunços? Volantes? Macacos? Cangaceiros não eram; eles andariam em silêncio pra coiteira. Então, o quê? Não importa. É fugir, correr, se esconder, sumir senão a bala fura o corpo, a peixeira corta a cabeça e tudo acaba.

Correu pra grota, espantou o tatu bola, enfiou-se no buraco, encolheu-se e tremeu de medo ao ver o pé com a sandália de tiras de couro do jagunço pertinho de suas pernas. Urinou-se todo quando ouviu “Fica calado e quieto, Faísca da peste!” Ficou e saiu a tempo de ver o aceno do seu salvador correndo atrás do tatu que comeria logo mais.

Cresceu sozinho, ao deus dará, selvagem, feroz. Para sobreviver comia raízes e sementes, roubava roupas, cabras e galinhas. Evitava gente. Aos que sabiam de sua estória dizia que Gumercindo era seu nome.

Vez ou outra aparecia no vilarejo agora já com roupa de couro. Começou a ser chamado de Faísca e com ele ficou. Conheceu pessoas: algumas gostavam dele, ajudavam. Outras o detestavam sem saber bem o porquê. Companheiro de todas as horas, àquelas não perguntava, dava tudo não importando aonde nem quando; às outras servia a indiferença e o afastamento.

Assim era Faísca, franzino, ainda imberbe, aquele que foi preocupação dos pais, único sobrevivente dos sete irmãos, pais, avós, tios e primos desde quando da chegada daqueles jagunços. Sozinho naquele mundaréu, esguio de corpo e pequeno para a idade, sua estória era presente na região; todo mundo falava. É bom lembrar que na caça era verdadeiro carcará, não tinha erro. À noite, falava com os bacuraus. Tinha até cantador fazendo xote com o seu viver. Uma coisa era muito cantada: fazia de tudo, mas nunca matou uma pessoa.

Essa a vida que levava, sem rumo, sem qualquer querer, sem apego a nada ou alguém até o dia em que conheceu Camélia, irmã de um daqueles garotos com quem jogou e caçou. Era considerado irmão mais velho que mandava em todos e repartia tudo, mas raivoso e temido. Receosos, porém, rindo, diziam que contrariado soltava faísca pra todo lado. Só Melim pra acalmar o bicho feroz. Por sua vez, ele, quando aparecia no vilarejo, inventava discussão só pra chamar atenção e ver a garota. Todos sabiam, mas faziam de conta que não. Aceitavam.

O que para eles era brincadeira, pro Faísca era necessidade que aumentava mais e mais. Só queria ver o sorriso dela, ouvir sua voz, olhar sua figura. Ah, seu gingado...não entendia porque olhando ficava perturbado. Notava que ela percebia e, sorrindo, fazia de propósito.

Numa folha ilustrada de antigo gibi todo amassado encontrou o motivo pra falar com a Melim: que era aquilo? Pacientemente ela contou que era uma estória com desenhos de figuras que falam por escrito; que os sinais são letras que, juntas, formam palavras e a gente lê. Sim, é como estória de surdo mudo, disse sorrindo.  Sim, a gente guarda tudo numa espécie de armário cheio de gavetas que a gente tem na cabeça e na sua deve ter um armário grande. Ele não entendeu, mas se pra ficar junto dela o jeito era esse... falou que queria saber ler igual e ela concordou que ensinaria. Em pouco tempo aprendeu a ler e a escrever e não parou mais. Onde andava um estava o outro. Ela, rendeira; ele, namorador. Incentivado, foi pra Capital. Fez de tudo para pagar o Supletivo. Estava mudando sua vida de jagunço cangaceiro; estava dirigindo seu destino sem saber direito para onde. Queria ser doutor, isso sabia.

Pra aparecer e sabendo do seu progresso o usineiro da região prometeu pagar seus estudos como uma espécie de indenização pela morte de toda aquela família que era vigia da entrada do canavial da sua usina. Mandou avisar: se entrasse na universidade pagaria tudo incluindo mesada para sustento. Contava com desistência. Aconteceu justamente o contrário: Faísca estudou, entrou e formou-se em Ciências Sociais com a finalidade de saber e poder ensinar, guiar e ajudar seu povo melhorar de vida. Assim falava.

Voltou formado decidido a cumprir o que prometera. Começou percorrendo a região aliciando gente pra, inicialmente, só construir escolas e ensinar o gentio. Sempre dizia que se os outros fazem também podiam fazer. Conseguia a colaboração do povo de maiores posses que, meio pressionado, doava.  Melim sempre com ele. Ambos namoravam e teciam renda na coiteira.

Formaram o Grupo das Letras que tocava, cantava, fazia palhaçadas, piruetas e dava carinho especial às crianças e aos mais velhos. Juntava gente na praça da capelinha. Falavam o porquê de estar ali e o que queriam. Formavam grupos pra cumprir as diversas tarefas. Atacavam os problemas e só sossegavam quando, soltando rojões, Faísca fincava o pau de sebo da inauguração, fazendo o sino novo tocar o blém bélém da nova escola. Cantando, iam embora antes da festa terminar. Alegria era só o que o Grupo desejava e recebia.

Quando completaram a escolinha de numero vinte, promoveram uma cavalhada, torneio folclórico em que cavaleiros batalham com roupas típicas ricamente adornadas, sendo de couro as botas, o casaco com mangas apresentando franjas e de madeira o cajado com que imitam luta para derrubar o oponente.

Foram ampliando o numero de vilarejos em que construíam barracões pra servir de escola. Isso trouxe maiores responsabilidades, mais trabalho no cuidado com as crianças e os mais velhos desvalidos, mas Faísca e Melim controlavam tudo, desde a escolha do vilarejo até a doação dos sinos recebidos. Enfrentaram alguns opositores: os chefetes regionais dos donos das terras que queriam seu apoio aos candidatos dos chefes políticos regionais. Resistiram a tudo e a todos. Pareciam mulas empacadas no barranco. Tiveram reuniões e conversas com todos que os procuravam e a todos diziam que seguiam seus destinos, que era seu prazer fazer o que já faziam; não queriam misturar as coisas; seu trabalho era apolítico.

Melim chamou a atenção de Faísca para o fato da sua constante recusa já ter consequências: as doações diminuíam cada vez mais, seu trabalho pessoal não rendia o suficiente para pagar as despesas com as escolinhas, que falar em fazer novas. Era necessária solução urgente. Pensaria no assunto com ânimo para resolver foi a resposta.

Por uma dessas coisas que chamam de acaso, numa estradinha vicinal Faísca cruzou com Augusto, seu velho amigão gerente da usina do senador Cairi. Após acenos e cumprimentos apearam pra conversar e pitar. Falaram sobre problemas que cada um estava enfrentando e, naturalmente, o falatório sobre a politica regional o que levou o assunto de Faísca ser mencionado como candidato a prefeito de Quatí.

- Você deve aceitar. Terá mais trabalho, claro, mas poderá ter verba pra fazer mais escolinhas e contratar professoras.

- Augusto, aí vou ter muita briga e malquerença. As que eu tenho já enchem meu balaio. Não dá pra tanto.

- Dá sim, disse Augusto e passou a pregar a conversão de Faísca.

- Tá bom, Augusto. Vou dormir no assunto, mas se aceitar vou querer você junto.

Chegando à sua pequena casa, falou pra Melim sobre o encontro com Augusto, tio muito querido dela. Conversaram durante alguns dias e concluíram que era possível aceitar desde que concordassem com suas exigências e ele comandar tudo e a todos.

Falou com Augusto que levou a decisão aos chefes políticos e serviu de intermediário na distribuição das Secretarias entre os vereadores da coligação partidária.

Entrar na politica foi fácil. Permanecer e participar dela era difícil. Seu temperamento causava problemas. Apesar disso completou seus quatro anos, recandidatou-se e foi reeleito enfrentando os mesmos problemas agora em nível mais grave: todos queriam ser candidatos, todos queriam uma fatia do bolo da Tesouraria para gastar na propaganda eleitoral; caso não reeleitos, queriam ficar com “algum”. Faísca, conhecedor dos fornecedores de material de propaganda, comidas, etc...não aceitava as despesa apresentadas e não pagava. Foi o começo de uma guerra sem quartel à Melim e a ele; eram alvo de avisos ameaçadores.

E aconteceu. Na curva da rua que dava na sua antiga casinha foi cercado e recebeu cinco tiros. Caiu, foi chutado e arrastado até o portão da casa. Melim apareceu com a espingarda e recebeu dois tiros. Também caiu. Isso feito, os atiradores correram para um caminhão e sumiram.

Os vizinhos, apavorados, só apareceram algum tempo depois e ajudaram a levar os dois ao hospital. Melim morreu no caminho e, agora, Faísca vai sendo levado pra cirurgia. Que coisa!    

Não há mais o clac clac. Estou noutro lugar. Ouço alguém pedir para eu contar alguma coisa de minha vida. Então, ou não sabe quem eu sou e estou num lugar desconhecido ou está brincando. Consigo perguntar “Por que”? Ouvi a resposta: É pra saber se o anestésico está fazendo efeito. Claro que está, penso eu. Não vê que eu caminho na frente iluminando a estrada com meu fogaréu guiando meu povo ao seu destino? Venha, venha, você será aceito, eu garanto. Não escuto mais nada.

Como vou falar da minha vida e da Melim?



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