A menina que escapou de Corisco
Ises
A. Abrahamsohn
Tinha
vindo morar na casa da tia aos dez anos. Quando mãe morreu ela e mais cinco irmãos foram distribuídos entre os parentes.
Genilda foi levada pela meia irmã da mãe, Carolina, a tia Lina, para a
fazendola em Rio das Pedras. Sertãozão mesmo, longe, longe, lá em Sergipe. Isso
fazia agora dois anos.
Dois
anos trabalhando na cozinha e cuidando da filharada miúda da tia. Escola nem
pensar, precisava pagar o sustento e a
rede de dormir. Na modesta trouxinha tinha trazido de casa o caderno escrito até o meio, o lápis e a
borracha que usava na escola . Sabia ler, escrever era mais difícil. Aos domingos, debruçada na mesa da cozinha, enchia
as linhas do caderno: casa, cachorro, cavalo, casca.... Esbarra no cê-cedilha:
taça, ou tassa? E, maçã e massa? Queria uma
vez ver uma maçã. A professora mostrou no desenho, vermelha, brilhante... Que
gosto teria... De jambo, ou caju maduro? Algum dia ia embora dali. Não que a
tia a maltratasse. Isso não... Mas não se importava. Ruim mesmo era o marido.
Não chamava de tio, só de Seu Turíbio. Estava sempre esbarrando nela. Quando a
via sentada na cozinha, era só xingo. Preguiçosa, vai trabalhar, quer morar
aqui de graça...
Agora
que tinha doze anos, o tio até amansara. As vezes se achegava por trás
abraçando e dizendo: “tá ficando bonita Genilda, logo a rapaziada vai se
assanhar”. Quem ficava de marcação era a tia, percebendo a mudança do marido. “Cuidado,
Genilda, tá ficando moça. Não dê trela para ninguém...”
Não
que Genilda tivesse qualquer pensamento de homem. E muito menos de Seu Turíbio.
Fugia quando ele se aproximava. O homem, rechaçado pela garota e acuado pela
mulher, voltou a embirrar com a garota. Mandou-a tomar conta das cabras. Melhor,
pensou Genilda embora o trabalho fosse pesado. Mas até gostava mais. Ficava
longe da casa e do tio. Tinha se acostumado depressa com a lide dos animais.
Naquele
domingo do curral ouviu a chegada do
bando de cangaceiros. Tropel de cavalos, gritaria, alguns tiros para o alto. Se
escondeu atrás do palheiro. Viu o vulto
do tio aparecer contra a luz. “ Pode
vir, já está calmo”. E Genilda foi... Só quando chegou no terreiro em frente da
varanda percebeu o engodo. Lá estava o bando inteiro. Os cavalos amarrados, os
homens e as poucas mulheres sentados na varanda ao abrigo do sol. Foi levada ao
chefe do bando. Este a olhou interessado e se virou para o companheiro.
─
Então, Corisco, esta serve? É novinha e
bem desenvolvida.
O tal
Corisco acenou. “Serve bem demais, chefe”.
O
tio ordenou-lhe pegar os seus pertences e avisou de que agora iria com o bando.
A tia não estava à vista. Apenas as crianças se agarraram nas suas pernas
quando saiu da casa escoltada pelo tal Corisco. O tio ainda disse com
escárnio: ─ Se fez de difícil, menina, vai ver o
que lhe espera...
E
assim Genilda foi parte importante do
butim acertado entre o bando e o fazendeiro. Entrou no cangaço carregada pelo
seu legitimado dono e senhor, Corisco. Vida sofrida e muito mais para a garota
apenas passada a puberdade. O homem se fartava nela toda noite. Sangrou por uma
semana. O sujeito fedia como o bode da fazenda. Quando podia, a menina se
lavava, passava água de cheiro, óleo de cabelo, mas nada adiantava. Não
conseguia se livrar do fedor. Sentia o bodum do marido quando ele entrava no
acampamento. Genilda definhava. Mulher de cangaceiro tinha que aprender a viver
no ermo da caatinga. Buscar água de lata nas cacimbas, cuidar dos cavalos,
lavar roupa, costurar, conseguir lenha para o fogão improvisado, cozinhar o que
havia. Carne seca com angu, café ralo com rapadura, cuscuz, goiabada e feijão de corda conseguidos
nos assaltos aos vilarejos e sítios da região . E caça. Preá e tatú que Genilda
aprendeu a limpar e preparar ou, às
vezes, algum mutum descuidado. Vida de
acampamento. Tinha pavor de cobras. Cascavel , jararaca era o que tinha ali. As
outras mulheres tinham vida igual. A única lá por vontade própria era
Emerenciana a mulher do chefe. Assim
como Genilda todas se calavam e procuravam atender as necessidades dos maridos.
Besteira se rebelar porque só trazia pancada. Passado meio ano Genilda percebeu
as regras pararem e a barriga começar a crescer. Ficou desesperada. Ter filho lá no meio do mato, sozinha. Havia
outras lá que tiveram filhos. A maioria tinha tido vários, logo morridos e
enterrados no sertão. Os sobreviventes foram deixados nas vilas com algum parente ou
compadre para serem criados. Genilda não queria isso. Se fosse para ter o filho
queria criar ela mesma. Na casa de seu pai e sua mãe aprendeu o que era certo,
sabia ler e escrever, dava conta de conseguir se manter.
Começou
a arquitetar um plano de fuga. Só seria possível num dos ataques do bando a uma vila maior onde pudesse se esconder e de onde escapar quando dessem
por falta dela. Afinal chegou a oportunidade. Escondeu uma faca por dentro da roupa.
Vestia duas roupas, a de cima vermelha e a de baixo azul ainda trazida da casa
da tia. O terço de contas de vidro pendurou no pescoço. Agarrada ao marido na sela de cabeça dupla
rezava para Santa Luzia, devoção de sua mãe que era costureira.
Quando
o bando invadiu o vilarejo, Corisco apeou
do cavalo para se juntar aos
outros homens e deixou-a montada no animal para que o guardasse. Ela guiou o
animal até atrás da capela. Lá tirou o vestido vermelho. Cavalgou o animal ao redor do vilarejo até encontrar um
esconderijo. Mas tinha que devolver o animal. Afinal achou uma rua
que dava na praça e largou-o lá. Voltou ao abrigo, um casebre em ruínas num fundo de quintal atrás de um galinheiro. E
ali ficou imóvel. Só dariam pela sua
ausência ao anoitecer. Viriam procurá-la, mas com sorte não a achariam. O bando
teria que sair antes de amanhecer, antes que chegassem os volantes. O vilarejo era maior, tinha telégrafo. O
bando não iria arriscar de ficar mais tempo por lá.
Ouviu
barulhos a noite toda, até vozes e passos de gente na rua próxima. Porém não chegaram até ela. Quando começou a
clarear ouviu o tropel dos cavalos . Adormeceu para acordar com o sol a pino.
Arriscou e atravessou o galinheiro e o quintal até a modesta casa. Bateu à
porta da cozinha. Uma mulher atendeu e disse:
─
Você deve ser aquela que estavam procurando a noite toda. Já foram embora.
Estavam procurando uma moça de vestido vermelho, mas você está de azul. Um
deles ficou pela cidade para continuar a busca.
Genilda
contou-lhe a verdade e a sua história. A mulher ficou impressionada. Prometeu
escondê-la enquanto fosse necessário. Deu-lhe de comer e beber e esticou uma rede no
quarto ao lado da própria cama. Por uma semana Genilda ficou lá na casa,
só no quarto, até que o olheiro se fosse. Depois, a boa
criatura lhe deu algum dinheiro para sair da cidade com a jardineira que a
levaria até a capital. Tinha o endereço
de um irmão de seu pai em Aracaju. Lá teve sorte, foi acolhida, deu à luz e lá viveu com seu filho. Concluiu o curso
primário, depois o ginasial e conseguiu emprego numa escola.
Dez
anos depois, em 1940, leu a notícia no jornal. Corisco com a mulher Dadá foram
mortos no interior da Bahia por um jagunço atrás de recompensa. Os dois já
tinham abandonado o cangaço há tempo. Dois anos antes as forças do governo tinham acabado com os remanescentes do cangaço. A cabeça de Corisco ficou exposta durante 30
anos no Museu Nina Rodrigues ao lado das cabeças de Lampião e Maria Bonita. Ao
final, porém os restos mortais de Corisco foram cremados a mando de seu filho e
as cinzas jogadas ao mar.
O
filho de Genilda nunca soube quem era verdadeiramente seu pai.
Uauuu! Ises, dessa vez você foi fundo! Que imaginação hein, menina! Muito bom!
ResponderExcluirOlá Lê
Excluirobrigada.Bj.